UOL


São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HISTORIADOR DESCREVE O LONGO DIA DE TRABALHO DE UM CATIVO EM UMA FAZENDA NO VALE DO PARAÍBA, INTERIOR DE SÃO PAULO, NO SÉCULO 19

O COTIDIANO DE UM ESCRAVO

Victor Frond
"A Cozinha na Roça", foto de Victor Frond feita no vale do Paraíba (publicada em "Brasil Pitoresco", de Charles Ribeyrolles, nos anos 1860)


Flávio Gomes
especial para a Folha

Mundos do trabalho são sempre complexos. Os quase 400 anos de trabalho compulsório com feitorização, castigo e violência não podem ser obstáculos para ampliarmos o nosso entendimento na direção de uma história do trabalho que articule experiências dos escravos e dos trabalhadores livres, com africanos, imigrantes europeus e indígenas. E os descendentes de todos. Já nos Seiscentos, índios aldeados e africanos dividiam as mesmas e péssimas condições de trabalho das unidades do açúcar colonial. Não seria diferente no último quartel do século 19, quando crioulos escravos -filhos dos africanos aqui nascidos- e imigrantes europeus, principalmente italianos e portugueses, compartilharam (com as devidas especifidades, é bom destacar) da dureza da labuta e da intolerância de fazendeiros nas áreas cafeeiras, com dietas alimentares, condições de moradia e cotidiano muito semelhantes. A história do trabalho é uma só. Africanos escravizados, sem dúvida, formaram a base dessa classe operária por mais de três séculos. Mas não eram uma multidão ou massa trabalhadora -sem rosto ou forma- como ainda insistem em dizer alguns manuais. Por detrás da coisificação jurídica e social, um semovente, como não esquecem de lembrar, milhões de africanos redefiniram suas identidades, os mundos e a cultura do trabalho. Ainda que houvesse escravidão em diversas áreas, com variadas economias e modelos de exploração, o cenário típico do trabalho escravo era a plantation: monocultura e latifúndio. O nordeste açucareiro e o sudeste cafeeiro produziram as principais paisagens. Desvela-se o cotidiano do trabalho numa fazenda do sudeste, em meados dos Oitocentos. De qual trabalhador falamos ? Podia ser um José. Um africano com nome cristão. Nunca esqueceu, porém, que era um Machibeta, aliás Chipeta. Não um qualquer e sim oriundo de um povo do mesmo nome localizado no nordeste do vale Zambezi, na província de Tete. Lá para as bandas da África Oriental. Mas no Brasil todos o chamavam de José Moçambique. Tinha 17 anos quando embarcou aprisionado no porto de Quilimane, chegando ao Brasil no navio Brigue-Ganges em 1834, já durante o período de ilegalidade do comércio atlântico de escravos. Melhor sorte tiveram outros malungos (como se denominavam os companheiros de viagem dos tumbeiros) que vieram embarcados nesse mesmo navio, numa viagem em 1839. Abordados em alto mar pela marinha inglesa, mobilizada na repressão ao tráfico ilegal, foram considerados "africanos livres". No Rio de Janeiro, José não ficou muito tempo na desértica praia em que desembarcara. Nem sequer ficou sabendo o nome do lugar. Outra viagem se fazia urgente. Rumo às fazendas de café. Chegaria a Vassouras, coração do mundo cafeeiro, dos barões do vale do Paraíba. Inserção e aprendizado ali foram imediatamente realizados com a ajuda de outros africanos que encontrou. E, não passados duas dúzias de anos, foi a vez de José iniciar na rotina daquela fazenda outros trabalhadores "estrangeiros" recém-chegados. Estes não eram africanos, nem tão iguais. Eram crioulos escravos provenientes do Maranhão, Ceará, Piauí e Sergipe, vendidos no lucrativo comércio interprovincial no pós-1850. Interessante é que trouxeram outras histórias dos mundos do trabalho das suas regiões de origem. Aquelas fazendas, onde milhares de homens e mulheres (estas sempre em menor número), transformados em escravos e, depois, em africanos e crioulos, conheceram uma outra face da opressão, vivenciada, entre outras coisas, pela carga de trabalho extenuante, formaram também o ambiente em que organizaram suas vidas. José lembra que muitos Joãos, Pedros, Beneditos, Marias e outros tantos, apesar de oriundos de povos e regiões diferentes eram chamados -a maioria- pelo sobrenome Cabinda, Angola, Congo e Benguela. Tinham uns chamados por fulano Cassange, beltrano Monjolo, sicrano Ganguela, Rebolo, e igualmente vários Moçambique. E posteriormente muitos crioulos. E de muitos lugares. Dessas inventadas diferenças todos reinventaram culturas da classe trabalhadora. De um lado a outro, plantações que cercavam centenas de fazendas com milhares de escravos.

Outra história
No fim da década de 1940, a partir de pesquisa arquivística e de relatos de ex-escravos e de seus descendentes, o historiador norte-americano Stanley Stein reconstituiu a rotina diária de trabalho nas grandes fazendas em Vassouras. Uma outra história da vida cotidiana.
Muito antes que os primeiros raios de sol alcançassem aquele "mar de colinas", que caracterizava tal região, os cativos eram despertados pelos feitores e capatazes. Nas grandes propriedades, o início do dia de trabalho podia ser anunciado por um sino que soava estridente por todo o terreiro. Algumas escravas cozinheiras acordavam mais cedo, visando a preparar a alimentação matinal dos demais, que invariavelmente consistia num café fraco e rapadura, talvez pedaços ressecados de angu.
Em Vassouras, a maior parte deve ter habitado senzalas coletivas, talvez divididas entre homens e mulheres solteiros, sendo que os casados, muitas vezes, residiam em pequenas senzalas separadas. Despertados pelo irritante badalar, os cativos dirigiam-se a um grande tanque d'água, onde se lavavam. Tudo muito rápido. Ainda sonolentos, iam se agrupando no terreiro da fazenda. Aguardavam a presença do administrador ou quase raramente do próprio dono da fazenda, os quais dariam as instruções para mais um dia na lavoura. Só depois de distribuídos em turmas, respeitando-se ocupações e as necessidades diárias do serviço, recebiam a primeira refeição.
Dirigiam-se então ao paiol da fazenda, onde pegavam ferramentas: enxadas, foices, facões, peneiras e cestos. Uma parte da escravaria permanecia na fazenda. Afora os considerados incapacitados e doentes, era constituída de cativos domésticos e alguns com ocupações específicas. Ali ficavam mucamas, lavadeiras, costureiras, cozinheiras e demais empregadas no serviço da casa-grande e os de ofícios especializados, como ferreiros, carpinteiros, pedreiros, tropeiros etc., que realizavam tarefas diversas no âmbito das fazendas. Nas grandes fazendas de café, como não poderia deixar de ser, a maior parte dos escravos se ocupava do serviço de roça. Esse era o trabalho do nosso José, embora tivesse, depois da sua chegada, aprendido alguma coisa de carpintaria.
Os escravos da roça seguiam para plantações distantes numa grande caravana. O sol ainda não estava firme, mas sim olhares vigilantes dos feitores e capatazes, muitos dos quais também podiam ser cativos. Conduziam uma pequena carroça puxada por uma junta de bois, levando caldeirões e mantimentos para prepararem a refeição no campo.
As crianças, mesmo bem pequenas, muitas vezes acompanhavam seus pais. Era comum as mulheres carregarem seus filhos para as plantações, podendo também os recém-nascidos ficar na sede da fazenda sob os cuidados de alguns velhos, aleijados ou avaliados como incapazes para o trabalho no eito. Era, por exemplo, a rotina das africanas Florinda, Diolinda, Narciza, Luiza, Emerenciana e outras tantas, que levavam seus filhos menores diariamente para a roça. A mortalidade infantil era altíssima e José conheceu dezenas de crianças que não passaram dos primeiros meses.
Na lavoura todos eram redistribuídos em grupos, sendo destacados para partes diversas dos cafezais. Passava pouca coisa das seis horas da manhã. Separados num sistema de trabalho por "gangs" ou turmas, denominado "corte" e "beirada", os cativos considerados mais aptos, sempre os jovens e mais robustos, eram escolhidos para ditar o ritmo da colheita. Quatro trabalhadores colocados na beirada dos cafezais, sendo o cortador e o contra-cortador de um lado e o beirador e o contra-beirador do outro. Os mais velhos e lentos colocados no meio. Homens e mulheres na mesma turma. Colhiam em média cinco a sete alqueires diariamente. Não demorou muito José percebeu que os ritmos do trabalho não tinham somente os sons do chicote e da gritaria imposta pelos feitores. Aprendeu e logo se animava com os vissungos, cantigas africanas. Sob formas de versos cifrados, repetidos refrões e com significados simbólicos, também serviam como senhas, por meio das quais resenhavam suas vidas e expectativas e mesmo avisavam uns aos outros sobre a aproximação de um feitor. O "ngoma" -como diziam- podia estar perto. A despeito da violência e péssimas condições, tentar definir alguns sons e ritmos do trabalho era uma face fundamental da organização de suas próprias vidas escravas.
Alguns eram destacados para prepararem as refeições coletivas no campo. Dez horas da manhã ou um pouco mais tarde: uma pausa. O almoço. Formavam fila em frente a um rancho improvisado que servia de cozinha. Recebiam em pequenas cuias refeições, constituídas de angu -a base da alimentação escrava- e um pouco de feijão temperado com pedaços de toucinho e gordura de porco. Não raro alguns legumes, como batata-doce e abóbora, e farinha de mandioca. Muitas escravas aproveitavam para amamentar seus filhos. O total da pausa não durava uma hora. Logo retornavam ao trabalho e só bem mais tarde havia outro breve intervalo.
Na ocasião, sem se afastarem dos locais da colheita, recebiam um pouco de café, substituído nos dias frios e chuvosos por pequenas doses de aguardente. O trabalho continuava até às 16h, quando era servido o jantar, via de regra a sobra do angu do almoço. Essas cenas cotidianas foram desenhadas por Victor Frond e posteriormente acompanharam como litografias a publicação dos relatos de viagens de Charles Ribeyrolles.
Era também nesse longo dia de penoso e extenuante trabalho que os cativos, castigados pelo sol escaldante, pelos espinhos dos arbustos de café ou pelo chicote dos feitores truculentos, procuravam formas diversas de socialização. O castigo era uma realidade que rondava. Mas aproveitando uma fugidia frouxidão na vigilância, conversavam a respeito de seu cotidiano, alimentando sonhos de melhores dias. Ao escurecer, quase às 19h nos dias de verão, preparavam-se para voltar à fazenda. Novamente formavam fila em frente ao terreiro e reuniam-se aos que tinham permanecido trabalhando na sede da fazenda. Retornariam às senzalas. A jornada de trabalho podia continuar madrugada adentro na separação e ensacamento dos grãos de café colhidos. À noite, em torno das pequenas fogueiras que mantinham -nunca apagavam as brasas!- no interior das senzalas, o cansaço dominava absoluto. Uma esperança renovada semanalmente surgia nas vésperas dos domingos. Poderiam cultivar suas roças próprias, produzindo alimentos para seu consumo. Eram concessões senhoriais que souberam transformar em conquistas e direitos costumeiros, podendo obter recursos extras com a comercialização dos excedentes. Nos dias santos promoviam seus jongos e caxambus. Alimentavam tanto seus espíritos como os daqueles não mais presentes.
Talvez na mente destes trabalhadores escravizados tais jornadas tenham sido longos dias-noites que nunca terminavam.... como a história do trabalho. Sem fim.


Flávio Gomes é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Texto Anterior: João José Reis relança "Rebelião Escrava no Brasil"
Próximo Texto: + brasil 504 d.C.: Os senhores de engenho e as conspirações
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.