UOL


São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 504 d.C.

O historiador discute o papel exercido pela aristocracia açucareira nas revoluções de 1817 e 1824

Os senhores de engenho e as conspirações

Divulgação
"Aclamação de d. Pedro 1º no Paço Imperial", quadro de Jean-Baptiste Debret (1768-1848)


Evaldo Cabral de Mello

Joaquim Nabuco idealizou o movimento de 1817 quando pretendeu que fora levado a cabo pela "camada superior da sociedade pernambucana, as antigas famílias, os senhores de engenho, os ricos proprietários", que teriam sido "os que mais se apaixonaram pela Independência e pela revolução". No outro extremo, Fernando de Azevedo acentuaria que "a posição da aristocracia rural, nas lutas que agitaram Pernambuco, foi sempre definida: uma atitude de reação conservadora", tanto assim que "na revolução de 1817, quase nenhum senhor de engenho (havia) entre os conspiradores", o que é verdade, mas ignora a participação de bom número deles uma vez iniciada a insurreição. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Em Dezessete, a participação açucarocrática limitou-se a proprietários rurais da mata norte e da Paraíba, que eram também produtores de algodão e, como tal, vitalmente interessados na preservação da liberdade de comércio. O viajante francês Tollenare, testemunha ocular da insurreição, refere que a esmagadora maioria dos engenhos confiscados devido ao envolvimento dos seus proprietários situava-se naquela região. No decurso do movimento, a mata seca e a várzea do Paraíba comportaram-se com um zelo que destoou da mata úmida e do seu prolongamento alagoano, nitidamente contra-revolucionários. Malgrado ser cabeça de numerosa parentela de senhores rurais da mata sul, Francisco Pais Barreto, o morgado do Cabo, não logrou recrutá-la para Dezessete, embora viesse depois a fazê-lo para reprimir a Pedrosada (1823) e a Confederação do Equador (1824). O que deu relevo à ação do grande proprietário, por abastado que fosse, decorreu da circunstância, embora derivada de tal condição, de deter o comando das milícias rurais. Salvo a mata seca e a Paraíba, foi nas áreas não-açucareiras que Dezessete teve contornos eminentemente rurais, como no Crato, sublevado pela clientela da família Alencar, ou no Rio Grande, onde a rebelião foi empresada pelo morgado de Cunhaú, dono da maior fortuna da capitania. Na época, já havia, aliás, quem sobrestimasse o potencial revolucionário da açucarocracia. No seu plano de recolonização do Brasil (1823), Sierra y Mariscal salientava que, para aquele fim, a coroa portuguesa só poderia contar com o "partido português", composto sobretudo pelo comércio. Os senhores de engenho não formavam "ordem", na acepção de corpo privilegiado do Antigo Regime, pois qualquer um "pode ser senhor de engenho e há muitas qualidades de engenho". "Como essa classe de proprietários está sempre no campo, sem o que ficariam perdidos, são muito estúpidos; como não conhecem economia e tampouco conhecem a ordem, tem chegado a maior parte deles a tal estado que, para comerem carne de vaca duas vezes na semana e terem um cavalo de estrebaria, se faz necessário que morram 200 pessoas de fome, que são os escravos do engenho, a quem lhes dão unicamente o sábado livre, para com o seu produto sustentarem-se e trabalharem o resto da semana para seus senhores." Destarte, os senhores de engenho pertenciam ao "partido democrata", "porque é o partido das revoluções e com ela se vêem livres dos seus credores". Contra esse raciocínio, poderia, aliás, utilizar-se outro dos argumentos do autor. Com efeito, se "a falta de meios" dos senhores de engenho privava-os de "formar clientes e de fazer-se um partido entre povo, porque eles mesmos são fraquíssimos e precisam da proteção dos negociantes (portugueses) com que se honram muito", como esperar que viessem a desempenhar papel politicamente desestabilizador?

Rotina agrária
À raiz da derrota do partido da nobreza na Guerra dos Mascates, a açucarocracia havia-se recolhido à rotina agrária, parte dela desclassificando-se socialmente na esteira da crise setecentista do açúcar.
Quando o processo emancipador veio abrir novas perspectivas, a liderança já não lhe caberá, mas às camadas urbanas, e ironicamente aos descendentes dos antigos mascates, que representavam a verdadeira gente endinheirada que dava as cartas no começo do século 19 e que forneceu vários protagonistas ao ciclo revolucionário. "Nacionalizados" ao longo de duas ou três gerações por meio da burocracia régia, da oficialidade e do clero secular, eram eles, "não a nobreza da terra", que compunham, segundo J.A. Gonsalves de Mello, "a totalidade dos estudantes universitários de Pernambuco em Portugal". Como assinalou Gilberto Freyre, "valorizados pela educação européia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terras", quando não superiores, tornando-se mais receptivos ao ideário político do tempo do que os rebentos açucarocráticos, cuja educação lastimável o padre Lopes Gama descrevia em traços crus mesmo depois da criação do curso jurídico de Olinda.
Ao contrário da previsão de Sierra y Mariscal, Dezessete, como lembrou Oliveira Lima, foi liquidado "pelos próprios elementos conservadores e até populares da capitania", por tal devendo-se entender os senhores de engenho da mata úmida e seus clientes e aderentes, os mesmos que o dr. Portugal, deão da Sé de Olinda, designava por "sevandijas do sul", equiparados na sua condenação aos "escravos do norte", isto é, os cearenses, que, salvo no Crato, haviam repudiado o movimento.
Foi em vão que o governo de Recife tentou ganhar o apoio da mata sul ou ao menos imunizá-la contra a influência dos "aristocratas insensatos que vos fazem guerra para defesa dos seus velhos e carunchosos pergaminhos". Aos açucarocratas da mata meridional, não os motivaria a fidelidade monárquica, tão-somente "a baixa saudade que conservam dos seus tortuosos e mal fundados títulos e brasões, das humildes zumbaias que recebia a sua prostituída e mal fadada senhoria, o horror de se conhecerem iguais em direitos aos outros homens, entre os quais se julgam como uma raça distinta, nascida para mandar, e finalmente o desejo que ainda lhes arde nos orgulhosos corações de vos pisarem e cobrirem de desprezo".
Por conseguinte, "essa rançosa e abastardada fidalguia do sul é o vosso único inimigo; o povo que os acompanha ou é seduzido ou arrastado à força; e que podem recear homens livres dessa chusma de escravos, que seguem quatro ou cinco pseudofidalgos sem letras, sem talentos, sem virtude, que não sabem senão vegetar e arrotar embófias e fanfarrices e que não estudaram outra ciência senão a história genealógica de suas arruinadas casas?". Quando falhou em romper a ascendência desses homens sobre a população da mata sul, o governo republicano rompeu com a região, apregoando que "os inimigos únicos que temos a vencer sois vós, que, enganados, rejeitais o dom inestimável de uma liberdade racional".
Sob esse aspecto, Dezessete prefigurou a história política da Província, transformando-a no seu baluarte monárquico. Embora seus capitães-mores e oficiais da milícia houvessem feito ato de adesão, a república fora mal recebida por ali. Seguindo o exemplo da comarca de Alagoas, onde a causa fora repudiada de entrada, a mata úmida formou as guerrilhas realistas que, embora batidas em Utinga, lograram isolar Recife pelo lado do sul, a ponto de a tropa revolucionária ter de recuar para Candeias; e de se julgar o corpo expedicionário realista além do Persinunga quando ele já se encontrava em Sirinhaém. Malgrado dispersar o núcleo contra-revolucionário de Utinga, o coronel Suassuna se absteve de sair-lhe ao encalço, consciente de que pisava terreno minado. Quando o Exército enviado de Recife desfez-se diante dos contingentes realistas em Merepe e Ipojuca, estes já se compunham majoritariamente de efetivos pernambucanos que se lhes haviam agregado, lavradores e condiceiros dos engenhos locais, índios das aldeias e a companhia de pardos de Penedo, os quais correspondiam a 65% do total. Daí que o Exército de Sua Majestade não houvesse "encontrado o mais leve obstáculo na sua marcha", como reconhecia o ex-revolucionário e historiador do movimento, o padre Muniz Tavares.
É, aliás, notável o paralelismo do desfecho militar em Dezessete com o da Confederação do Equador. Como a reação de d. João 6º em 1817, a de d. Pedro 1º foi imediata: Recife achou-se submetida a bloqueio naval e atacado por terra a partir de Alagoas. Como em Dezessete, a mata sul cooperou com as forças do Rio. Suas Câmaras apoiaram a Constituição outorgada e a marcha da tropa do brigadeiro Lima e Silva. Certo senhor de engenho de Una alertava o presidente da confederação, Manuel de Carvalho, sobre o fanatismo monárquico da mata meridional: "Vossa Excelência não sabe, esses povos do mato cá do sul o como são com o nome d'El Rei". Como as tropas de d. João 6º em Dezessete, o Exército imperial agregara à brigada trazida do Rio a parte da guarnição provincial que havia anteriormente tentado derrubar Carvalho, quantidade de portugueses refugiados pelos engenhos da mata úmida e contingentes alagoanos e de índios de Jacuípe.
A vanguarda que atacou o Recife compunha-se sobretudo de partidários do morgado do Cabo e trajavam os mesmos uniformes dos efetivos carvalhistas. Conquistada Recife, Lima e Silva se vangloriará de que "nós fomos senhores de todo o sul da Província de Pernambuco até o Cabo sem darmos ou recebermos um só tiro".
Não aduziu, porém, o essencial, isto é, que, como a marcha do general Congominho em Dezessete, a sua havia sido sobremaneira facilitada pelas guerrilhas morgadistas atuando na retaguarda do exército carvalhista, imobilizado na fronteira alagoana e cujo comandante queixava-se de que "o inimigo incomoda-nos em todo o lugar e hora, pois como ao mesmo tempo é de matutos criados nesta parte da província, metem a cabeça no mato donde a seu salvo nos fazem fogo sem lhe podermos ser bons". Tornara-se "dificultoso bater as tropas do morgado", de vez que elas estavam "fazendo a guerra do país", enquanto o exército da Confederação fazia-lhe "a dos europeus ou portugueses", motivo pelo qual Carvalho era aconselhado a seguir o exemplo. Graças à atuação dessas guerrilhas, o forte de Tamandaré se rendeu, antes mesmo da entrada de Lima e Silva em território pernambucano.
Contra elas, nada puderam os batalhões de Carvalho e os contingentes de segunda linha que arregimentou. Devido às guerrilhas, o exército carvalhista teve de abandonar sua posição e de regressar à praça pelo interior das matas, sendo perseguido pelos matutos até o Cabo. Contra os corpos volantes do morgado, os confederados não contaram com as guerrilhas que haviam desde janeiro espalhado pelo interior, mas que não atenderam ao chamado, malgrado haverem recebido paga adiantada. Os guerrilheiros do imperador também se estenderam pelo centro da Província, como indica a decisão de Carvalho de adiar a Constituinte confederal, devido a que a população interiorana se amotinara, impedindo o trânsito para Recife e obrigando as autoridades locais a permanecerem a postos.
Quanto à mata norte, suas Câmaras permaneceram fiéis até o fim à causa confederal, recusando-se a reconhecer Pais Barreto como presidente da Província ou a jurar a Constituição outorgada pelo imperador. Daí que, como o exército de Dezessete após a queda de Recife, o da confederação também marchou para o norte na esperança de continuar a resistência e de juntar-se aos correligionários das Províncias vizinhas. Frei Caneca registrou a hospitalidade que a tropa invariavelmente encontrou nas casas-grandes da região, nem foi diferente a acolhida dispensada aos restos do exército que, havendo capitulado, retornarão a Recife.
Ao invés do que já se asseverou, a quase totalidade dos "homens de 1817" não foram "homens de 24". Há muito, Adelino de Luna Freire chamou a atenção para o fato de que muitos dos patriotas que se haviam distinguido na primeira não haviam tomado parte na segunda. Se em Dezessete já preexistia a clivagem entre partidários da monarquia constitucional e da república, a partir de 1822, com a vitória constitucionalista em Portugal e o projeto emancipacionista de d. Pedro, ela novamente se fará sentir, cindindo irremediavelmente o processo da Independência na Província. A recíproca, porém, é verdadeira: quase todos os homens de Vinte e Quatro é que haviam sido de Dezessete. Numa lista de 33 dezessetistas que tiveram atuação política destacada após seu regresso a Pernambuco em 1821, como deputados às cortes de Lisboa, à Constituinte ou membros das juntas provinciais, apenas cerca de 1/3 participou da Confederação do Equador, enquanto os dois terços restantes haviam apoiado o imperador.
Destarte, mesmo dividida, a elite política que dominará a Província nos primeiros decênios pós-Independência tinha algo em comum, a experiência da rebelião. Como acentuava Lopes Gama em 1845: "Dos homens que hoje se acham colocados na mais elevada posição social, poucos haverá que se possam dizer limpos e escoimados da pecha de desordeiros. Muitos envolveram-se na nossa rebelião de 1817, outros na de 1824, outros em tais e tais rebuliços e sedições que apareceram pelas províncias e até na Corte". O publicista ironizava as metamorfoses que ofereciam ao observador "o quadro histórico das revoluções", admirando-se de "ver homens que tanto se influíram e entranharam nesses devaneios, homens que queriam a Confederação do Equador sem pés nem cabeça, fazendo a cama sem ver a noiva, homens que eram mesmo umas republicazinhas ambulantes e de tarracha [...], hoje tão trocados de sentimentos, hoje tão convertidozinhos que não sofrem a mais leve reforma na Constituição".

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.".


Texto Anterior: O cotidiano de um escravo
Próximo Texto: + livros: A epopéia moderna da recriação
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.