São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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+3 questões sobre patriotismo

1. Qual é a origem do sentimento patriótico?
2. Como relacioná-lo com a idéia hegemônica de globalização?
3. Ele não pode ser visto como uma forma disfarçada de racismo?

José Carlos Reis responde

1.
É o sentimento de pertencer a uma história, a linguagens, a referências e significações reconhecíveis. O patriotismo está associado a palavras intensas: espírito nacional, alma comum, fidelidade à tradição, aos ancestrais, patrimônio cultural comum, auto-reconhecimento, solidariedade, coesão. O antipatriotismo também é expresso com palavras fortes: traição, desvio, matricídio, morte cívica, exílio, ostracismo. Enfim, a pátria é vida compartilhada, singular, um valor particular-universal. Esse profundo sentimento é superável? Sim, em sua versão conservadora, chauvinista e expansionista, que reprime toda expressão interna nova e toda comunicação humana com a diferença; não, em sua versão pluriculturalista, que valoriza os diversos mundos históricos em sua diferença, sem reivindicar superioridade ou perfeição.

2.
A globalização não impede ou bloqueia o sentimento patriótico. Pelo contrário, ela o intensifica, pois cada um se sente mais próximo da sua diferença. Ela é um modo genérico de ser que explicita a diversidade cultural em dimensões menores, regionais. O individualismo e a fragmentação predominam em plena hegemonia de uma linguagem homogeneizadora. O sentimento patriótico protege contra o anonimato, a indiferenciação. O sentimento patriótico mudou: não se pode mais ser exclusivista, xenófobo, avesso à diferença. A identidade cultural patriótica exige a diferença, em relação à qual se define. Ela se tornou uma identidade reconhecível em uma complexa unidade, aberta, citando linguagens e valores do outro, aprendendo e se modificando com a troca cultural.

3.
Pode ser. O ufanismo patrioteiro, chauvinista, exclusivista pode levar ao confronto étnico. E a questão racial está longe de estar resolvida, sobretudo para europeus e americanos. Os nacionalismos europeus apoiaram-se sempre em uma argumentação racista.
O sentimento patriótico pode degenerar em racismo, mas ele não se define como racista. Gostar de ser brasileiro, sentir-se confortável no ambiente natural e cultural brasileiro, falar a língua portuguesa com prazer, torcer pelos heróis olímpicos brasileiros, curtir a poesia musical brasileira, reviver a história brasileira, inquietar-se com o nosso futuro, apreciar a literatura e arte brasileiras, comer a comida regional brasileira, gostar da terra, de nossos compatriotas, que compartilham tudo isso, não significa querer mal e excluir os não-brasileiros! Pelo contrário, o diálogo, a comunicação só são fecundos e prazerosos -e até mesmo possíveis- na diferença, na alteridade.

Boris Fausto responde

1.
Tal como o entendemos hoje, o sentimento patriótico nasce no século 19, vinculado ao surgimento do movimento romântico e à criação e fortalecimento de novos Estados nacionais, como é o caso da Itália e da Alemanha. O patriotismo é portanto uma derivação do nacionalismo, próximo conceitualmente dele. Uma diferença entre ambos consiste no fato de que, enquanto o nacionalismo diz mais respeito à ideologia e à luta política, o patriotismo constitui um sentimento, mas que, nem por isso, deixa de ser um potente mobilizador das ações humanas.

2.
É evidente que, com a limitação dos Estados nacionais e do princípio de soberania nacional, o sentimento patriótico sofreu um forte impacto. A afirmação desse sentimento em uma ordem mundial globalizada mudou de rumo. Nos países chamados emergentes, não é mais possível apegar-se ao passado e identificar o patriotismo com a defesa de uma autarquia nacional, cercada por um mundo ameaçador, embora haja quem mantenha essa perspectiva.
Hoje, o sentimento patriótico tem razão de ser quando se refere ao interesse nacional. Este mudou de caráter, mas não desapareceu, projetando-se tanto no plano interno quanto no plano das relações internacionais.

3.
Não creio, o que não significa que o sentimento patriótico não possa ser um dos caminhos para o racismo, pois ele contém em si mesmo um princípio de diferença e, às vezes, de superioridade de um povo com relação a outros. O exemplo da Alemanha nazista é claro demais para que tenhamos dúvidas a respeito. Mas estamos falando de um sentimento que engloba muitas coisas, boas e más.
Exemplificando, no século 19, ele esteve ligado aos ideais da Revolução Francesa e à afirmação dos Estados nacionais. No século 20, foi um instrumento poderoso para alimentar carnificinas como a Primeira Guerra Mundial, provocando uma grande desilusão entre os socialistas, ao descobrirem que o proletariado tinha pátria. Ao mesmo tempo, porém, teve um papel positivo na resistência contra o nazismo, principalmente na França ocupada e na União Soviética.

QUEM SÃO

José Carlos Reis
é professor no departamento de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de, entre outros, "As Identidades do Brasil, de Varnhagen a FHC" (Ed. da FGV).

Boris Fausto
é colunista da Folha e professor no departamento de história da Universidade de São Paulo, autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras) e "História do Brasil" (Edusp), entre outros.



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