São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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ENTREVISTA COM ANTONIO NEGRI E MICHAEL HARDT
Se muitos impérios foram declarados ao longo dos últimos 2.000 anos, só agora o conceito está se realizando integralmente, pois é a primeira vez que se vê uma forma verdadeiramente ilimitada de poder, que ultrapassa a própria noção de Estado
A nova soberania

Reprodução
"Autoritratto" (1985), obra de Franco Angeli


Victor Aiello Tsu
da Redação

O Império está se materializando diante de nossos olhos." A nova ordem mundial, produto de uma nova forma de soberania, baseada no poderio econômico, no monopólio da "arma final" e na ampliação da velocidade e quantidade da troca de informação em nível global, constituiu-se. Dela não se pode fugir. O Império não tem concorrentes e engloba toda e qualquer faceta da vida humana. Só se pode esperar que os trabalhadores se organizem e consigam se emancipar do círculo vicioso do capital. Isso se for desejável criar uma "globalização democrática", em oposição a uma "globalização capitalista".
Essas são as premissas do livro "Empire" (Império), de Antonio Negri e Michael Hardt, que tem causado controvérsias na discussão política contemporânea, principalmente por se propor um "Manifesto Comunista" -bem ao estilo de Marx, como se pode ver pela frase que abre o livro e é reproduzida no início deste texto- para o século 21. Publicado há pouco nos EUA pela editora da Universidade Harvard e com lançamento previsto para o Brasil no ano que vem pela Record, o volume negro de mais de 500 páginas, no entanto, parece estar bem longe daquilo que seria a leitura de cabeceira de um operário médio.
Além disso, ele não é tanto uma proposta de ação para a parcela dos dominados no regime capitalista quanto uma crítica à sociedade que vem se constituindo nos últimos anos, marcada, entre outros acontecimentos, pelas trocas cada vez mais aceleradas de informação e pela intervenção militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em Kosovo em nome da justiça e contra a limpeza étnica -já que o Império dedica suas ações à paz, mas suas práticas sempre envolvem forte poderio militar.
O cientista social e filósofo Antonio Negri, após viver 14 anos exilado em Paris (França), retornou voluntariamente à Itália e, desde 1997, cumpre pena na prisão de Rebibbia, em Roma -atualmente em regime semi-aberto. Negri havia sido condenado a 13 anos de prisão por associação com movimentos subversivos e participação em grupos guerrilheiros urbanos nos anos 70. Ele não concorda com as acusações e há, desde a sua prisão, uma campanha da comunidade intelectual européia em favor de sua anistia.
O norte-americano Michael Hardt, professor de literatura e filosofia na Universidade Duke (EUA), conheceu o italiano em 1987, quando vertia para o inglês "A Anomalia Selvagem" (lançado no Brasil pela Ed. 34), livro em que Negri estuda a obra do filósofo Espinosa (1632-1677). Ambos se encontraram em Paris para discutir a tradução. De Hardt já foi lançado no Brasil "Gilles Deleuze - Um Aprendizado Filosófico" (também pela Ed. 34). "Empire" é o segundo livro da parceria. Os autores dividem as tarefas: cada um escreve uma parte, os textos são trocados e cada um reescreve o que o outro havia anteriormente feito. A obra anterior da dupla fora "Labor of Dionysus" (Trabalho de Dioniso, Minnesota University Press, 1994).
Na entrevista que segue, Negri e Hardt falam sobre a inevitável -e talvez boa- globalização e a impossibilidade de questionamento da nova ordem mundial.


Onde encomendar:
"Empire" (Império, Harvard University Press, 512 págs., US$ 35), de Antonio Negri e Michael Hardt, pode ser encomendado, em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/ 3097-0022), e, no RJ, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).


 


O que é o Império?
Antonio Negri - O Império é a Constituição do mercado global. Naturalmente, quando se fala em Constituição, entendem-se duas coisas: o ordenamento jurídico e o comando. O comando imperial já está constituído, o ordenamento jurídico está em via de constituição.
Michael Hardt - Império é o nosso nome para a forma política da globalização capitalista. O termo Império, no entanto, tem uma longa história. Nossa compreensão do termo deriva primariamente da Roma antiga e é filtrada pela civilização européia. A noção tradicional do Império é definida por domínio ilimitado em pelo menos três sentidos. O Império é ilimitado no sentido espacial, não há fronteiras para o seu domínio; não há nada externo a seu poder. O Império domina a totalidade.
O Império também é ilimitado no sentido temporal, já que seu domínio é posto como necessário e eterno, em vez de temporário e transicional. Finalmente, o Império é ilimitado em um sentido social, pois busca controlar toda experiência social; o objeto do Império é a própria forma de vida. Nossa hipótese é de que, enquanto muitos impérios foram declarados ao longo dos últimos 2.000 anos, atualmente pela primeira vez o conceito foi realizado de modo integral. É a primeira vez que vemos uma forma verdadeiramente ilimitada de poder.
Acreditamos ser muito importante distinguir o Império do imperialismo. Por imperialismo nós entendemos as estruturas políticas e econômicas ao longo das quais os Estados-nação europeus estenderam seu poder sobre outras nações e territórios do século 17 ao 20. Os vários regimes europeus imperialistas foram necessariamente limitados uns pelos outros e estavam em constante conflito. Em contraste, o Império atual é único e não possui competidores semelhantes a ele. Além disso, e esse é o ponto mais importante e que leva boa parte do livro para explicar, o Império opera por meios e princípios diferentes dos que operavam os velhos imperialismos europeus e, portanto, o Império coloca uma forma fundamentalmente diferente de soberania. Um aspecto dessa diferença é que o Império não depende do Estado-nação como base de seu poder do mesmo modo que dependiam os imperialismos europeus.
Uma consequência dessa argumentação é que nós não acreditamos ser exato definir nossa ordem contemporânea global como um regime imperialista norte-americano. Os Estados Unidos têm de fato um papel privilegiado no Império, mas isso não basta para pensar que hoje os EUA completaram o projeto imperialista que os britânicos e franceses haviam tentado realizar anteriormente. No Império, nenhum Estado-nação pode funcionar como centro de poder.

"Agora que o capital foi constrangido a desenvolver o Império, essa nova forma constitucional de exercício do poder, nós podemos reconhecer que o Império é o nosso inimigo e combatê-lo em torno de objetivos de "cidadania imperial'"
Antonio Negri

"A globalização capitalista trouxe formas novas de exploração, mas isso não significa que nós devamos ressuscitar os poderes do Estado-nação; a globalização capitalista atual apresenta as condições para uma globalização não-capitalista alternativa"
Michael Hardt



Os senhores afirmam que as bases do Império são o poder militar, a globalização da economia e a Justiça. Como funciona a Justiça no Império? Por que os poderes imperiais se manifestam no caso do Kosovo e não no caso das guerras na África?
Negri - As bases do Império são o poder militar (ou, na verdade, a arma absoluta e o seu monopólio), o poder monetário ("um dólar vale um dólar") e a comunicação (ou a capacidade de formar sujeitos). Quanto à Justiça, que devemos ver como um ordenamento em formação, é a combinação disposta desses poderes: a Justiça, de fato, não é o navio, mas sim a mão que guia o navio por sua rota; e naturalmente este vai aonde sopra o vento... Por isso, ela funciona, de certo modo, em Kosovo, onde se trata de afirmar os direitos do homem diante da opinião pública anti-soviética do Ocidente; não funciona na África (por enquanto) porque (além de motivos extrínsecos, como a crise da intervenção na Somália, a pressão ambígua da opinião pública afro-americana e da cultura pós-colonial etc.) na África a exigência do Império se afirma por intermédio dos massacres recíprocos das etnias e dos grupos sociais...

O que significa dizer que o Império é "bom em si mesmo", mas não "bom para si mesmo"?
Hardt - Estamos jogando com a terminologia hegeliana quando dizemos isso e estamos tentando explicar que, apesar de a criação do Império trazer devastadoras e violentas estruturas de opressão e exploração, ela também cria as condições para a liberação. Um modo de entender essa afirmação é concebê-la em termos dos processos contemporâneos de globalização capitalista. É verdade que a globalização capitalista trouxe formas novas e mais intensas de exploração mundo afora, mas isso não significa que nós devamos tentar ressuscitar os poderes do Estado-nação como uma defesa contra a globalização. O que afirmamos é que a globalização capitalista atual apresenta as condições para uma globalização não-capitalista alternativa.
Isso tem a ver, creio eu, com muito da confusão sobre os movimentos de protesto contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle no ano passado, bem como aqueles contra o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial em Washington e, logo, logo, novamente em Praga. Esses movimentos são sempre vistos na mídia como sendo contra a globalização, mas isso não é verdade. A vasta maioria dos envolvidos são contra a forma atual de globalização, contra a globalização capitalista, e favoráveis a uma globalização nova, democrática. A tarefa que eles colocam, para a qual aponta nosso livro, é transformar a atual globalização capitalista em uma globalização democrática.
Negri - Tentamos entender um conceito fundamental de nossa pesquisa: a internacionalização, a liberdade de movimento sobre a cena mundial, o cosmopolitismo intelectual etc. são virtudes que -desde sempre- foram próprias da classe operária e do proletariado (branco ou negro, verde ou amarelo)... Toda a história das lutas contra a exploração pressiona contra as leis do Estado e os seus limites "nacionais". O mercado mundial, a superação da miséria, das burguesias nacionais, a internacionalização das trocas foram sempre um objetivo das revoltas e revoluções proletárias (brancas, negras, amarelas, anárquicas ou bolcheviques que fossem). Do nosso ponto de vista (ponto de vista que desejava interpretar o movimento proletário), a mundialização é, portanto, um bem. O capitalismo foi constrangido a se globalizar (não é uma novidade, mas uma lei histórica, que o capital seja sempre seguido de lutas proletárias e operárias).
Mas, agora que o capital foi constrangido a desenvolver o Império, essa nova forma constitucional de exercício do poder, nós podemos reconhecer que o Império é o nosso inimigo e combatê-lo, em base internacional, dentro de movimentos antagonistas globais, em torno de objetivos de "cidadania imperial" (com relação à mobilidade, ao salário, à apropriação e à distribuição do saber etc.).

Como se dão as relações de trabalho na nova ordem? Não se tornam elas ainda mais violentas?
Negri - Existem várias formas de violência no Império relativas às relações de trabalho, isto é, às relações entre capital e força de trabalho. As mais vulgares são, na fase atual, aquelas formas de violência que se exercem contra as livres migrações de força de trabalho, em nome de privilégios nacional-corporativos ou, mais exatamente, nacional-socialistas e que acabam por cobrir a troca desigual entre o Norte e o Sul e a exploração mais feroz que atinge as faixas mais frágeis do proletariado mundial. As mais perigosas são aquelas cuja formação prevemos: violência do poder contra a vida proletária, construção sanitária ou biológica de uma humanidade inferior, governo da fome e da doença, o objetivo de extrair mais-valia de setores do globo etc. O Império constrói essa violência, as organizações internacionais fingem tratá-la: é possível a revolta?
Hardt - Relações de trabalho sempre serão violentas na sociedade capitalista pela simples razão de que trabalhadores sempre se recusarão a trabalhar; isso significa que sempre se rebelarão contra o controle do capital e o comando sobre o trabalho deles. É natural que aqueles que são oprimidos e explorados recusem a autoridade -e devemos nos alegrar por isso.
O que mudou, ao contrário, são as formas dominantes de trabalho e, portanto, as formas das relações de trabalho e revolta. Nós tentamos compreender o câmbio primário nas formas de trabalho na sociedade contemporânea por meio de nossa discussão do "trabalho imaterial", isto é, trabalho que tem produtos imateriais, como comunicação, informação ou afeto. O trabalho material é ainda extremamente importante e prevalente na maior parte do mundo em termos quantitativos, mas nossa argumentação é que o trabalho imaterial vem se tornando mais e mais o foco da economia global capitalista. Esse câmbio na forma de trabalho dominante traz consigo novas formas de exploração, mas também, novamente, novas possibilidades de liberação.

A legitimidade do Império é dada por um circuito construído pelo próprio Império. Até que ponto é possível questionar essa nova ordem mundial?
Negri - Não é possível. É preciso sair da ordem da representação, tanto daquela nacional (parlamentar) quanto das diplomáticas, internacionalistas e humanitárias. O êxodo é a única via de liberação que o Império nos deixou. Êxodo, resistência e construção de territórios liberados, em nível mundial.

Hoje em dia, as pessoas aparentemente perderam a sua "imaginação sociológica", isto é, a percepção da conexão entre suas vidas e a sociedade como um todo. Qual é o lugar dos pobres dentro do Império e quais as suas expectativas para o futuro?
Hardt - Sim, é muito difícil reconhecer a si mesmo no mundo e como a própria vida se situa nas estruturas da sociedade como um todo. Essa é claramente uma tarefa de trabalhos teóricos como o nosso: auxiliar em nosso entendimento das estruturas que definem a sociedade e nos ajudar a reconhecer como nossas lutas são iguais às lutas de outros. Esse é o uso da teoria política como um todo.
Mas você poderia também acrescentar que, além de nossa "imaginação sociológica", nós aparentemente também perdemos a nossa "imaginação utópica". Porque é tão difícil compreender a natureza da ordem social e porque o poder que nos encara parece tão esmagador, é difícil imaginar como poderíamos transformar o mundo. Essa é certamente uma segunda tarefa para um livro como o nosso: ajudar-nos a imaginar como o mundo pode ser melhor e identificar o nosso real poder de transformá-lo. Negri - No Império, os pobres têm apenas um lugar: a pobreza. Do futuro, espero que, "mutatis mutandis", mantenham aquele lugar de pobreza que o capitalismo imperial lhes propõe. A não ser que a situação seja ulteriormente piorada por modificações genéticas ou pelo uso impensado da bioengenharia para lhes fixar as características e as funções sociais do pobre.
Quem é o sujeito da história? Qual seria uma proposta de ação para esse sujeito?
Negri - Sujeito da história? São as multidões de trabalhadores e hoje -sempre mais- as de trabalhadores intelectuais. A enorme transformação que o século 20 determinou na organização do trabalho pôs a imaterialidade/intelectualidade do trabalho vivo e cooperante no centro da valorização econômica e social. Não creio que existam propostas que a esse sujeito, a essa multidão, possam ser feitas. Pode-se no máximo pedir a eles que escutem as recomendações do "Intelecto Geral" que constitui hoje o trabalho vivo. Dizem essas recomendações: reúnam e organizem politicamente na cooperação do trabalho cada forma de trabalho vivo, ou seja, o trabalho material dos escravos, o trabalho intelectual dos pesquisadores, o afetivo da reprodução doméstica da vida, o imaterial dos serviços superiores etc.
Todo o trabalhador explorado deve encontrar, na sua própria dignidade de trabalho vivo e no reconhecimento da tendência de se tornar plenamente cooperativo e intelectual, a força de desatrelar-se do capital, de ir embora, de levar a luta a um ponto final.

Como funcionam as relações pessoais no Império? Há ainda sentido em dividir as coisas em termos de "público" e "privado"?
Hardt - Não, não faz sentido dividir a sociedade em esfera pública e esfera privada. É útil recordar o velho adágio feminista de que o pessoal é político, significando que, para nos dirigirmos às estruturas sociais de poder, nós devemos também transformar o reino das relações pessoais. Mas isso é também o que queremos dizer quando falamos que o Império domina todas as fases da vida. É nesse sentido que nós usamos a noção de biopoder de Michel Foucault, poder que domina a própria forma de vida.



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