São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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Sistema imperial adapta-se ao modelo político dos EUA, hegemônico a partir de 1991
O contra-Império ataca

por André Singer

O imperialismo é um fantasma do passado. Hoje o planeta é dominado pelo Império, formação política que tende a se tornar predominante desde a queda do Muro de Berlim. Essa a tese fundamental de "Empire", livro redigido a quatro mãos por Antonio Negri, ex-professor de ciência política na Universidade de Paris, e Michael Hardt, professor de literatura na Universidade Duke, nos Estados Unidos. A novidade está em que, mesmo visto pelo ângulo crítico de dois militantes comunistas, o Império que surge das mais de 500 páginas escritas em tom de manifesto é surpreendentemente benigno. Para decepção de quem espera ataques ferozes à nova ordem mundial, há nele até um elogio ao projeto constitucional norte-americano. A diferença entre imperialismo e Império precisa ser entendida no contexto daquilo que Negri e Hardt chamam de passagem da soberania moderna para a soberania pós-moderna. A soberania moderna é aquela típica do Estado-nação. Ou seja, um poder central que exerce o monopólio da força sobre um determinado território e a população que o habita. O imperialismo, então, consiste na propagação desse poder nacional para outras áreas do planeta, também delimitadas por fronteiras rígidas. Ao ser conquistada por uma potência imperialista, a região em causa trocava de bandeira (ou começava a ter uma) e passava a funcionar como extensão de um poder nacional já estabelecido em certo lugar original. Já a soberania pós-moderna tem fronteiras flexíveis, aquelas características do Império romano, configuração própria da Antiguidade. Para Negri e Hardt, não existem mais Estados soberanos capazes de buscar, por si mesmos, uma ampliação de riquezas e de poder por meio da ocupação territorial. Todas as nações vivem hoje sob a sombra do grande Império. Ao contrário do Estado-nação moderno, em que a delimitação rígida do território constitui condição fundamental de existência, o Império nunca sabe bem onde inicia e onde termina a sua área de influência. A razão é clara. Enquanto o Império tem uma pretensão desmedida, quer se expandir "urbi et orbis", o Estado nacional compete com outros Estados nacionais de força equivalente ou semelhante. Sabe, portanto, que a sua movimentação exterior implicará confronto armado. A guerra imperialista foi sempre o complemento inevitável da soberania moderna. A evidente supremacia militar dos Estados Unidos sobre o resto do planeta depois que a União Soviética deixou de existir pôs um fim à competição imperialista. Na realidade, mostram Negri e Hardt, o processo de descolonização iniciado após a Segunda Guerra Mundial já havia colocado em marcha uma transformação da dinâmica imperialista, antes mesmo que desaparecesse a única potência capaz de rivalizar com os EUA. Mais ainda, desde 1945 o modelo de competição interimperialista estava em questão devido ao brutal custo em vidas humanas e sacrifícios de todo gênero ocasionados pelas duas guerras mundiais. A criação das Nações Unidas, cujo eixo central sempre foram os Estados Unidos, após a Segunda Guerra, pretendia opor um obstáculo institucional para o ressurgimento da loucura imperialista dos Estados nacionais. Após o desmanche do bloco soviético, nada mais impediu Washington de exercer, em nome da ONU, o papel de polícia da Terra, o que hoje inviabiliza os projetos imperialistas de expansão territorial. A Guerra do Golfo, em 1991, foi o sinal de que a transição estava completa. Ao invadir o Kuait, em nome dos seus interesses na região, e assim violar as regras de convivência internacional, o Iraque tornou-se a primeira vítima do novo sistema mundial. Os EUA assumiram a condição de xerife do planeta e garantiram com a força das bombas a supremacia do Império.

Destino manifesto
Com a Guerra do Golfo, aliás, cumpria-se o destino manifesto dos americanos. Em uma detalhada análise das diferenças entre o tipo de política externa adotada por europeus e americanos ao longo da história, os autores assinalam que, a não ser por um breve período durante a presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909), os Estados Unidos nunca cultivaram um projeto imperialista. As intervenções norte-americanas, com exceção da colonização das Filipinas, foram sempre feitas sob a justificativa de preservar aspectos da ordem mundial: o equilíbrio, a liberdade, a democracia.
O aspecto mais original de "Empire" está em perceber o quanto o modelo político norte-americano, inventado no século 18, quando as 13 colônias se fizeram independentes, é adequado ao sistema imperial, hegemônico a partir de 1991. A noção de soberania nacional, que surge na Europa com o fim da Idade Média, é substituída nos Estados Unidos da Independência pela idéia de poder constituinte.
O conceito de poder constituinte remonta a Maquiavel (século 16), o qual inspirou os imigrantes ingleses que foram para a América no século 17. Maquiavel, por seu turno, havia se mirado na Roma antiga para formular uma teoria capaz de conciliar poder político e liberdade. O problema a ser resolvido é dos mais difíceis. Se poder significa que um manda e outro obedece, como este último pode ser livre? Apenas na medida em que participar do próprio poder que o comanda. A República, por permitir a participação política era, assim, a melhor saída para o impasse.
Embebidos da tradição republicana renascentista, os fundadores dos Estados Unidos conceberam um sistema político em que a soberania é continuamente gerada por redes de poder e de contrapoder existentes na sociedade. Em lugar de erigir um Leviatã, fruto de um primeiro e único contrato de renúncia individual ao poder, como na Europa, o modelo americano pressupõe que o conflito social permanente irá reconstituindo a soberania a cada passo.
Embora republicano, tal regime favorece a expansão imperial. À medida que permite e até estimula o conflito por ser a garantia da liberdade, a República precisa sempre de mais riqueza, de modo a satisfazer os apetites sociais gerados na luta das classes. Só que, diferentemente do jogo imperialista (que precisa destruir para dominar), o Império, ao crescer, integra, incorpora o diferente à sua rede de poderes e contrapoderes. A grandeza de Roma se fez pelo domínio, cada vez mais estendido, dos povos vizinhos. Não havia limites para a sua expansão. Tudo cabia dentro do Império.
É assim que Negri e Hardt enxergam a situação atual. Washington é o coração do poder militar que controla o mundo. Está no ápice da pirâmide que dirige o Império, atuando sob o guarda-chuva das Nações Unidas. Logo abaixo, ainda no primeiro dos três estratos em que os autores dividem a organização imperial, estão os países ricos, aqueles que integram o G-7. Eles controlam os mecanismos de regulação monetária e, portanto, detêm o controle do sistema internacional de trocas. Na segunda camada, se encontram as grandes corporações multinacionais. Aqui circulam os meios materiais que sustentam o Império. Na base da pirâmide se acham os representantes da multidão: entre eles, os Estados nacionais e organizações não-governamentais.
O que faz um militante comunista diante desse quadro cambiante, em que os papéis ainda não foram bem distribuídos, em que a Anistia Internacional, uma ONG da maior importância porque defende direitos humanos vitais, se encontra em confusos foros internacionais com religiosos fundamentalistas e com ativistas pró-preservação dos corais australianos?
A primeira coisa a fazer, segundo Negri e Hardt, é não tentar girar para trás a roda da história. O Império pode ser ruim por fazer guerras de videogame no golfo e por espalhar pelo globo o controle do capital sobre os corpos, mas a velha soberania imperialista era bem pior. Na Constituição do Império, ainda embrionária, mas cujo modelo é a dos Estados Unidos, o poder é imanente. Isto é, a multidão, mergulhada no fértil mundo da vida, pode gerar formas de contrapoder que são alternativas ao vazio de sentido produzido e reproduzido pelo capital. Uma vez que o poder constituinte se encontra disperso na multidão, ela pode utilizá-lo para gerar um contra-império.
A segunda tarefa do comunista é andar por aí como um São Francisco redivivo. Não por acaso, os autores evocam um santo da Idade Média. Não se deve esquecer que, por ser pré-Estado nacional, o medievo ainda guarda muito do período imperial anterior. Francisco de Assis decidiu mergulhar na vida do povo, de modo a reencontrar nele uma nova fé. Negri e Hardt dizem não saber que forma acabada terá o contra-Império. Afirmam que ele nascerá da prática da multidão. Ao comunista cabe, portanto, estar no meio dela.


André Singer é professor do departamento de ciência política da USP, autor de "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) e repórter especial da Folha.


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