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Em "Casei com um Comunista" Philip Roth faz da verborragia uma metáfora da tomada de poder na sociedade de consumo intolerante
"Talk show" pelo avesso
Silviano Santiago
especial para a Folha
No seu último romance traduzido entre nós, "Casei com um
Comunista", Philip Roth usa e
abusa de travessões e de aspas
duplas e simples. Há nele também um
número significativo de repetições, não
só de passagens-chave da trama como de
situações dramáticas pungentes. Aparentemente, estamos diante de problemáticos e graves defeitos de composição.
No entanto, bem contextualizados, os
possíveis defeitos do romance indiciam,
desde meados dos anos 50, a marca original da arte verbal norte-americana assumidamente étnica, como a dos moradores ou ex-moradores dos guetos judaicos, africanos ou latinos.
Philip Roth no romance, Woody Allen
no cinema, Tony Kushner no teatro, para citar alguns expoentes da arte judaica,
dão continuidade nos nossos dias ao impacto das cachoeiras de palavras ritmadas que nos encantaram nas infindáveis
canções de Bob Dylan (nascido Robert
Zimmerman), como as do disco "Highway 61 Revisited" ou "Blonde on Blonde". Enxurradas de palavras em ritmo
musical que nos encantam hoje nos rappers de lá, de outros continentes e de todos os Carandirus da vida.
Gasto simbólico
O desperdício de
palavras, que resulta em redundância
verbal por parte do artista que tudo gasta
porque nada tem a lucrar, é metáfora para o exercício frustrante do gasto simbólico como tomada de poder na sociedade
de consumo intolerante e capitalista. A
verborragia passa a ser o fundamento do
jogo social e político do marginalizado.
Este sempre perde e nada ganha no plano econômico. A verborragia é também
o acicate que morde os ouvidos e perturba a alma dos bem posicionados na vida.
O lado direito da verborragia é o "talk
show" à la Jô Soares. Vida de artista rima
com palavras em "ade": visibilidade, vaidade e publicidade.
O lado do avesso do "talk show" é o espetáculo de falação (modo como temos
traduzido a dominância da estética do
"talk show" na contemporaneidade), cujos princípios se encontram na melhor
arte verbal de origem étnica. A obra de
arte como espetáculo de falação tem sido, nos Estados Unidos, um modo de
afirmação cultural alternativo aos princípios estéticos institucionalizados pela
tradição britânica.
Pelo desperdício de palavras, pela fala
sensual e derramada, livros, peças, filmes
e canções conspurcam os valores parcimoniosos, puritanos e minimalistas da
produção verbal de fatura nitidamente
"wasp" (sigla para branco, anglo-saxão e
protestante). É o dendê étnico no cravo
bem-temperado dos caucasianos. Críticos mais severos, como James Wood, da
"The New Republic", classificam a fala
(pois de fala se trata, e não de escrita) ficcional de Philip Roth de sentimentalista.
A sentimentalidade judaica é o chantagista que sempre bate à porta do escritor
por ocasião de um novo romance. Não
podia ser diferente.
Ao caracterizar o livro da sua vida como "um livro de vozes", um dos narradores de "Casei com um Comunista",
Nathan Zuckerman -alter ego de Philip
Roth e frequentador inveterado dos seus
romances-, também caracteriza o forte
da sua arte narrativa. Complementa ele:
"Olhando para o passado, penso na minha vida como um longo discurso que
estive ouvindo" e "quando me pergunto
como cheguei aonde cheguei, a resposta
me surpreende: "ouvindo'".
Ao final do romance, o narrador constata: "O poder divino que é ter um ouvido!". Ouvindo os amigos, os mentores e
os livros de sua predileção, eis os caminhos da educação sentimental no gueto
de Newark. Que o burguês Gustave Flaubert feche os ouvidos no seu retiro normando. Viver, ouvir, agir
e narrar são sinônimos e
criam o circuito fechado
da prosa ficcional de Philip Roth.
Nesse romance de nítida fatura autobiográfica,
as cachoeiras de falas dos
vários personagens que
ditam frases à ficção (não
se esqueçam dos travessões e das aspas duplas e simples) subvertem não só os princípios da arte tipicamente gringa, orientada desde sempre
por Henry James, como também os princípios, numa sociedade protestante, da
genealogia que não é genética.
Labirintos para o leitor
De uma
forma e de outra, cria-se para o indivíduo que se automodela em palavra fortes
e definitivos vínculos estéticos e ideológicos que extrapolam a voz do sangue e
as relações escolares. São rompidos os
vínculos com mãe, pai, irmão, bairro onde se cresce e escola, para que o indivíduo escolha, na rua, na guerra, na fábrica
ou na prisão, os seus definitivos "brothers" e mentores. A escolha se faz, alerta
o romance, mediante uma série de acidentes e uma boa dose de arbítrios. Alguns e muitos dos escolhidos chegam a
você e você se chega a eles pela palavra.
Emaranhado qual aranha no trançado
de todas as vozes (faladas e escritas), o
indivíduo cresce entre os pares de infortúnio e o escritor insere-se como porta-voz dum grupo étnico desprivilegiado.
Aqueles mentores, ou "pais adotivos",
são os que "encarnam ou esposam idéias
poderosas e ensinam a navegar pelo
mundo e pelos seus apelos". Feita a navegação, é preciso saber o momento em
que será necessário jogá-los para fora do
barco com o seu legado. Dessa forma é
que a fala de todos abre espaço "para a
orfandade que é completa e que é da condição humana".
O romance autobiográfico, segundo
Roth, em lugar de ser a expressão de uma
voz única, introspectiva e original, que se
alteia e fala em linha direta e exclusiva
com o leitor, nada mais é que a orquestração de múltiplas vozes que se dão como embaralhadas. São elas que, des/ordenadamente, ocupam o palco da ficção.
Ao abrirem múltiplos
caminhos para a narração, desenham labirintos
para o leitor. Daí a repetição de cenas e de situações dramáticas e o excesso de travessões e de aspas
duplas e simples, que encontramos em "Casei
com um Comunista".
A ação do romance se
passa na cidade de Newark, no Estado de
Nova Jersey, nos anos que seguem ao final da Segunda Grande Guerra. O presente da narrativa se dá 50 anos depois. O
jovem professor de inglês Murray Ringold, agora com 90 anos, reencontra o
seu aluno predileto, Nathan Zuckerman,
agora com 64 anos, na região dos Berkshires. O ex-professor segue um curso sobre Shakespeare para a terceira idade.
O ex-aluno vive sozinho, trancado numa cabana. Escreve livros. Durante seis
noites, Murray e Nathan conversam e
conversam, lembrando o mais jovem irmão de Murray, Ira Ringold, ousado, feroz e rebelde. É membro radical do Partido Comunista. A vida de Ira se assemelha como nenhuma outra à história e à
geografia americanas e sua experiência
reflete o cotidiano dos americanos pobres da Depressão à Guerra Fria. Ira traz,
como diz o romance, "um coração sem
dicotomias".
O encontro entre os três se deu em Newark, no dia em que o politizado Ira conhece na casa de Murray o adolescente
Nathan e por ele se entusiasma. Leva-o
naquela mesma noite para o batismo de
fogo. Participar de um comício do Partido Progressista, em que se apresentava o
cantor negro e ativista Paul Robeson.
O comício era em favor das forças progressistas que apoiavam a candidatura
de Henry Wallace à Presidência da nação. Queriam dar continuidade ao governo Roosevelt, prevendo já a onda reacionária e anticomunista que brotava da
candidatura de Harry S. Truman. Para
Wallace, que mereceu o elogio do nosso
Oswald de Andrade em artigos de "Ponta de Lança", o único mercado livre era o
do pensamento.
Por ser um ator de peças patrióticas,
Ira servirá de ligação entre os deserdados
e a indústria de comunicação de massa,
cinema e rádio. Mais influente se torna
quando se casa com a antiga estrela do
cinema mudo e, na época, famosa rádio-atriz, Eve Frame, proprietária de uma
"open house" no Village. Saem todos dos
cortiços de Newark para a vida mundana
de Manhattan.
"Casei com um Comunista" esguicha
idéias por todas as falas e por todos os
poros. Noite após noite, professor e aluno trocam palavras, lembranças e opiniões, tentando reconstituir a vida e a
voz possante de Ira, enquanto na verdade constituem a história política, social e
econômica dos Estados Unidos do pós-guerra. Ao constituir esta, a narrativa
surpreende três vidas paralelas, a de três
judeus que optam pela defesa da paz, da
cooperação entre Estados Unidos e Rússia e pela justiça social. Lutam contra o
plano Marshall e Truman, contra o racismo negro e o anti-semitismo. A partir de
junho de 1950, contra o macarthismo.
Arte como arma
Naquele mês, é publicada uma primeira lista com 151 nomes de pessoas do rádio e do cinema
com supostas ligações com a causa comunista. Começam a pipocar, diz Ira,
"listas (com os nomes) de todo mundo
na América que alguma vez na vida já se
mostrou descontente com alguma coisa
ou já criticou alguma coisa ou protestou
contra alguma coisa, todos eles agora são
comunistas...".
Uma semana depois, estourava a Guerra da Coréia. Era o início do longo período da Guerra Fria.
Mais do que um motivo para a ação
política, Ira passa ao jovem Nathan uma
estética. A arte como arma, como slogan,
a arte a serviço do povo, a força da arte na
luta pela classe trabalhadora, a arte como
advogada das grandes causas. Esses são
os princípios que norteiam o início da
carreira artística de Nathan. Chegado o
momento, o jovem provinciano matricula-se na Universidade de Chicago, onde encontra um professor de inglês que,
pela radicalidade da sua fala esteticizante, combate a radicalidade da fala política
de Ira e Murray.
Além de ser um extraordinário libelo
contra a intolerância política norte-americana, "Casei com um Comunista" dramatiza também o fascinante abalroamento da arte realista e engajada, originada na miséria da Depressão, de que
John Steinbeck (1902-68) talvez seja o
melhor exemplo no romance, pela refinada arte da pureza dos materiais artísticos, de que o "Partisan Review", grupo
ao qual pertencerá Philip Roth, será o
modelo. Destaque para as passagens do
romance em que Nathan dialoga com o
seu professor de inglês na universidade,
Leo Glucksman. É este quem o admoesta
contra "a arte como arma", pois é ela
uma arte que é "lixo grosseiro, primitivo,
tosco e propagandista", cujo desejo mais
sinistro "é o de provar que o artista é
bom". Também é ele quem lhe dá a lição
definitiva:
"Quer abraçar uma causa perdida? Então não lute em favor da classe trabalhadora. Eles vão se dar muito bem na vida.
Vão se empanturrar de carros Plymouth
até seu coração se fartar. (...) Você quer
uma causa perdida para defender? Então
lute pela palavra. (...) Lute sim pela palavra que afirma aos poucos alfabetizados
condenados a viver na América que você
está do lado da palavra."
Philip Roth data politicamente o momento em que a "luta pela palavra", a luta pela pureza dos materiais artísticos,
torna-se a condição "sine qua non" para
fazer arte comprometida e contemporânea na América.
Casei com um Comunista
421 págs., R$ 34,50
de Philip Roth. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia
das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3846-0801).
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no
Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Cia. das Letras), entre outros.
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