São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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Em "Casei com um Comunista" Philip Roth faz da verborragia uma metáfora da tomada de poder na sociedade de consumo intolerante
"Talk show" pelo avesso

Silviano Santiago
especial para a Folha

No seu último romance traduzido entre nós, "Casei com um Comunista", Philip Roth usa e abusa de travessões e de aspas duplas e simples. Há nele também um número significativo de repetições, não só de passagens-chave da trama como de situações dramáticas pungentes. Aparentemente, estamos diante de problemáticos e graves defeitos de composição. No entanto, bem contextualizados, os possíveis defeitos do romance indiciam, desde meados dos anos 50, a marca original da arte verbal norte-americana assumidamente étnica, como a dos moradores ou ex-moradores dos guetos judaicos, africanos ou latinos. Philip Roth no romance, Woody Allen no cinema, Tony Kushner no teatro, para citar alguns expoentes da arte judaica, dão continuidade nos nossos dias ao impacto das cachoeiras de palavras ritmadas que nos encantaram nas infindáveis canções de Bob Dylan (nascido Robert Zimmerman), como as do disco "Highway 61 Revisited" ou "Blonde on Blonde". Enxurradas de palavras em ritmo musical que nos encantam hoje nos rappers de lá, de outros continentes e de todos os Carandirus da vida.

Gasto simbólico
O desperdício de palavras, que resulta em redundância verbal por parte do artista que tudo gasta porque nada tem a lucrar, é metáfora para o exercício frustrante do gasto simbólico como tomada de poder na sociedade de consumo intolerante e capitalista. A verborragia passa a ser o fundamento do jogo social e político do marginalizado. Este sempre perde e nada ganha no plano econômico. A verborragia é também o acicate que morde os ouvidos e perturba a alma dos bem posicionados na vida. O lado direito da verborragia é o "talk show" à la Jô Soares. Vida de artista rima com palavras em "ade": visibilidade, vaidade e publicidade. O lado do avesso do "talk show" é o espetáculo de falação (modo como temos traduzido a dominância da estética do "talk show" na contemporaneidade), cujos princípios se encontram na melhor arte verbal de origem étnica. A obra de arte como espetáculo de falação tem sido, nos Estados Unidos, um modo de afirmação cultural alternativo aos princípios estéticos institucionalizados pela tradição britânica. Pelo desperdício de palavras, pela fala sensual e derramada, livros, peças, filmes e canções conspurcam os valores parcimoniosos, puritanos e minimalistas da produção verbal de fatura nitidamente "wasp" (sigla para branco, anglo-saxão e protestante). É o dendê étnico no cravo bem-temperado dos caucasianos. Críticos mais severos, como James Wood, da "The New Republic", classificam a fala (pois de fala se trata, e não de escrita) ficcional de Philip Roth de sentimentalista. A sentimentalidade judaica é o chantagista que sempre bate à porta do escritor por ocasião de um novo romance. Não podia ser diferente. Ao caracterizar o livro da sua vida como "um livro de vozes", um dos narradores de "Casei com um Comunista", Nathan Zuckerman -alter ego de Philip Roth e frequentador inveterado dos seus romances-, também caracteriza o forte da sua arte narrativa. Complementa ele: "Olhando para o passado, penso na minha vida como um longo discurso que estive ouvindo" e "quando me pergunto como cheguei aonde cheguei, a resposta me surpreende: "ouvindo'". Ao final do romance, o narrador constata: "O poder divino que é ter um ouvido!". Ouvindo os amigos, os mentores e os livros de sua predileção, eis os caminhos da educação sentimental no gueto de Newark. Que o burguês Gustave Flaubert feche os ouvidos no seu retiro normando. Viver, ouvir, agir e narrar são sinônimos e criam o circuito fechado da prosa ficcional de Philip Roth. Nesse romance de nítida fatura autobiográfica, as cachoeiras de falas dos vários personagens que ditam frases à ficção (não se esqueçam dos travessões e das aspas duplas e simples) subvertem não só os princípios da arte tipicamente gringa, orientada desde sempre por Henry James, como também os princípios, numa sociedade protestante, da genealogia que não é genética.

Labirintos para o leitor
De uma forma e de outra, cria-se para o indivíduo que se automodela em palavra fortes e definitivos vínculos estéticos e ideológicos que extrapolam a voz do sangue e as relações escolares. São rompidos os vínculos com mãe, pai, irmão, bairro onde se cresce e escola, para que o indivíduo escolha, na rua, na guerra, na fábrica ou na prisão, os seus definitivos "brothers" e mentores. A escolha se faz, alerta o romance, mediante uma série de acidentes e uma boa dose de arbítrios. Alguns e muitos dos escolhidos chegam a você e você se chega a eles pela palavra. Emaranhado qual aranha no trançado de todas as vozes (faladas e escritas), o indivíduo cresce entre os pares de infortúnio e o escritor insere-se como porta-voz dum grupo étnico desprivilegiado.
Aqueles mentores, ou "pais adotivos", são os que "encarnam ou esposam idéias poderosas e ensinam a navegar pelo mundo e pelos seus apelos". Feita a navegação, é preciso saber o momento em que será necessário jogá-los para fora do barco com o seu legado. Dessa forma é que a fala de todos abre espaço "para a orfandade que é completa e que é da condição humana".
O romance autobiográfico, segundo Roth, em lugar de ser a expressão de uma voz única, introspectiva e original, que se alteia e fala em linha direta e exclusiva com o leitor, nada mais é que a orquestração de múltiplas vozes que se dão como embaralhadas. São elas que, des/ordenadamente, ocupam o palco da ficção.
Ao abrirem múltiplos caminhos para a narração, desenham labirintos para o leitor. Daí a repetição de cenas e de situações dramáticas e o excesso de travessões e de aspas duplas e simples, que encontramos em "Casei com um Comunista".
A ação do romance se passa na cidade de Newark, no Estado de Nova Jersey, nos anos que seguem ao final da Segunda Grande Guerra. O presente da narrativa se dá 50 anos depois. O jovem professor de inglês Murray Ringold, agora com 90 anos, reencontra o seu aluno predileto, Nathan Zuckerman, agora com 64 anos, na região dos Berkshires. O ex-professor segue um curso sobre Shakespeare para a terceira idade.
O ex-aluno vive sozinho, trancado numa cabana. Escreve livros. Durante seis noites, Murray e Nathan conversam e conversam, lembrando o mais jovem irmão de Murray, Ira Ringold, ousado, feroz e rebelde. É membro radical do Partido Comunista. A vida de Ira se assemelha como nenhuma outra à história e à geografia americanas e sua experiência reflete o cotidiano dos americanos pobres da Depressão à Guerra Fria. Ira traz, como diz o romance, "um coração sem dicotomias".
O encontro entre os três se deu em Newark, no dia em que o politizado Ira conhece na casa de Murray o adolescente Nathan e por ele se entusiasma. Leva-o naquela mesma noite para o batismo de fogo. Participar de um comício do Partido Progressista, em que se apresentava o cantor negro e ativista Paul Robeson.
O comício era em favor das forças progressistas que apoiavam a candidatura de Henry Wallace à Presidência da nação. Queriam dar continuidade ao governo Roosevelt, prevendo já a onda reacionária e anticomunista que brotava da candidatura de Harry S. Truman. Para Wallace, que mereceu o elogio do nosso Oswald de Andrade em artigos de "Ponta de Lança", o único mercado livre era o do pensamento.
Por ser um ator de peças patrióticas, Ira servirá de ligação entre os deserdados e a indústria de comunicação de massa, cinema e rádio. Mais influente se torna quando se casa com a antiga estrela do cinema mudo e, na época, famosa rádio-atriz, Eve Frame, proprietária de uma "open house" no Village. Saem todos dos cortiços de Newark para a vida mundana de Manhattan. "Casei com um Comunista" esguicha idéias por todas as falas e por todos os poros. Noite após noite, professor e aluno trocam palavras, lembranças e opiniões, tentando reconstituir a vida e a voz possante de Ira, enquanto na verdade constituem a história política, social e econômica dos Estados Unidos do pós-guerra. Ao constituir esta, a narrativa surpreende três vidas paralelas, a de três judeus que optam pela defesa da paz, da cooperação entre Estados Unidos e Rússia e pela justiça social. Lutam contra o plano Marshall e Truman, contra o racismo negro e o anti-semitismo. A partir de junho de 1950, contra o macarthismo.

Arte como arma
Naquele mês, é publicada uma primeira lista com 151 nomes de pessoas do rádio e do cinema com supostas ligações com a causa comunista. Começam a pipocar, diz Ira, "listas (com os nomes) de todo mundo na América que alguma vez na vida já se mostrou descontente com alguma coisa ou já criticou alguma coisa ou protestou contra alguma coisa, todos eles agora são comunistas...".
Uma semana depois, estourava a Guerra da Coréia. Era o início do longo período da Guerra Fria.
Mais do que um motivo para a ação política, Ira passa ao jovem Nathan uma estética. A arte como arma, como slogan, a arte a serviço do povo, a força da arte na luta pela classe trabalhadora, a arte como advogada das grandes causas. Esses são os princípios que norteiam o início da carreira artística de Nathan. Chegado o momento, o jovem provinciano matricula-se na Universidade de Chicago, onde encontra um professor de inglês que, pela radicalidade da sua fala esteticizante, combate a radicalidade da fala política de Ira e Murray.
Além de ser um extraordinário libelo contra a intolerância política norte-americana, "Casei com um Comunista" dramatiza também o fascinante abalroamento da arte realista e engajada, originada na miséria da Depressão, de que John Steinbeck (1902-68) talvez seja o melhor exemplo no romance, pela refinada arte da pureza dos materiais artísticos, de que o "Partisan Review", grupo ao qual pertencerá Philip Roth, será o modelo. Destaque para as passagens do romance em que Nathan dialoga com o seu professor de inglês na universidade, Leo Glucksman. É este quem o admoesta contra "a arte como arma", pois é ela uma arte que é "lixo grosseiro, primitivo, tosco e propagandista", cujo desejo mais sinistro "é o de provar que o artista é bom". Também é ele quem lhe dá a lição definitiva:
"Quer abraçar uma causa perdida? Então não lute em favor da classe trabalhadora. Eles vão se dar muito bem na vida. Vão se empanturrar de carros Plymouth até seu coração se fartar. (...) Você quer uma causa perdida para defender? Então lute pela palavra. (...) Lute sim pela palavra que afirma aos poucos alfabetizados condenados a viver na América que você está do lado da palavra."
Philip Roth data politicamente o momento em que a "luta pela palavra", a luta pela pureza dos materiais artísticos, torna-se a condição "sine qua non" para fazer arte comprometida e contemporânea na América.



Casei com um Comunista
421 págs., R$ 34,50 de Philip Roth. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3846-0801).



Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Cia. das Letras), entre outros.


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