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Ponto de fuga
A palavra do teatro
Jorge Coli
especial para a Folha
Gerald Thomas vem ao palco, ajunta
o público disperso na arquibancada,
brinca com a jornalista Glória Maria,
sentada na segunda fileira, apresenta
seus atores com piadas sobre privadas.
Reclama, avisa aos incautos: "Vocês estão com cara de tragédia. Isto não é tragédia. É comédia. Uma comédia escrota". Na verdade, não é uma coisa nem
outra. "Ventriloquist", em reestréia no
Teatro do Sesc Copacabana (RJ), é um
"divertimento", um "divertissement",
como o século 18 chamava certos espetáculos leves e elegantes. Gerald Thomas é chique demais para chegar ao escroto. "Ventriloquist" pode fazer pensar em "Capriccio", ópera de Richard
Strauss (1864-1949): numa festa sofisticada, os convidados, de modo obsessivo, gravitam em torno dos poderes e
dos limites da palavra. Tema caro aos
românticos, tema angustiado do "Moisés", de Arnold Schoenberg (1874-1949), obra à qual a peça de Thomas foi
insistentemente associada e que buscava uma palavra capaz de traduzir a essência divina sem traí-la.
Mas a angústia, no "Ventriloquist",
não é declamatória: ela surge em filigrana, atrás do riso provocado por invenções que não cessam, conduzidas por
maravilhosos atores. No final, essa angústia termina por se dissolver, na medida em que a palavra mostra-se, cada
vez mais, amorosamente, fala de teatro.
Aquilo que é dito por meio dos personagens, do espetáculo, do diretor termina impondo uma presença elegíaca,
e o ventríloquo se metamorfoseia em
sua voz verdadeira. É o teatro afirmando-se, nesse admirável espetáculo, para
além das palavras incertas.
Fel - Há alguns pontos comuns ao
"Ventriloquist" e ao "Louca Turbulência", este no teatro Dulcina (Rio), dirigido por Antônio Abujamra. Ambos
fazem piadas sobre Paulo Coelho. Ambos apresentam atores que dublam outros ou que dublam fala gravada. Em
ambos, os diretores estão presentes por
meios eletrônicos. Ambos fazem rir.
Ambos revelam afeto visceral pelo teatro. Mas Abujamra parece avesso à leveza. Ele arrasta uma certa amargura
rancorosa, cujo caráter persistente enfraquece suas intenções críticas.
Há ironia sempre, muitas vezes sobre
o próprio espetáculo ou sobre o próprio grupo teatral, os "Fodidos Privilegiados", criado pelo diretor em 1991.
As piadas não hesitam em ser grossas,
e o todo apresenta um curioso tom
"chanchada-cabeça". Um telão, no alto, integra projeções. Ele traz o momento mais hilariante de todos: uma
entrevista de Abujamra com a Tiazinha. No final, a cara forte do diretor,
projetada em close, domina e impõe
um longo monólogo. É o epílogo de
um melancólico deus ex machina.
Longe - Em certas peças, os atores
podem ser incapazes de dizer uma frase com justeza ou de encarnar seus personagens com convicção. Alguns textos podem ser celebrados internacionalmente e revelarem-se ocos. Diretores de renome, montagens ambiciosas,
cenários luxuosos nem sempre conseguem acender uma centelha mais viva.
O que não impede, muitas vezes, o sucesso.
A peça "Mais Perto", de Patrick Marbe, estrelada por Renata Sorrah e dirigida por Hector Babenco, fez casas lotadas em São Paulo. Agora, no Rio de
Janeiro (teatro Villa-Lobos), os espectadores esparramam-se até nos degraus das escadas para assisti-la.
Golpe - Há um projeto da prefeitura
para transformar o teatro Municipal de
São Paulo em fundação de direito privado. Muitos artistas daquela casa protestam, não contra a idéia de uma fundação, mas contra o que lhes parece
pouco amadurecimento e debate. Pedem vigilância por parte de todos, já
que, como informam, o futuro corpo
diretor, a ser escolhido pelo atual prefeito, em fim de mandato, assumiria o
governo do Municipal por, no mínimo, cinco anos e não poderia ser destituído pelas próximas administrações.
A novíssima fundação exerceria, ainda, direito exclusivo sobre o teatro durante 50 anos...
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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