São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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Ponto de fuga

A palavra do teatro

Jorge Coli
especial para a Folha

Gerald Thomas vem ao palco, ajunta o público disperso na arquibancada, brinca com a jornalista Glória Maria, sentada na segunda fileira, apresenta seus atores com piadas sobre privadas. Reclama, avisa aos incautos: "Vocês estão com cara de tragédia. Isto não é tragédia. É comédia. Uma comédia escrota". Na verdade, não é uma coisa nem outra. "Ventriloquist", em reestréia no Teatro do Sesc Copacabana (RJ), é um "divertimento", um "divertissement", como o século 18 chamava certos espetáculos leves e elegantes. Gerald Thomas é chique demais para chegar ao escroto. "Ventriloquist" pode fazer pensar em "Capriccio", ópera de Richard Strauss (1864-1949): numa festa sofisticada, os convidados, de modo obsessivo, gravitam em torno dos poderes e dos limites da palavra. Tema caro aos românticos, tema angustiado do "Moisés", de Arnold Schoenberg (1874-1949), obra à qual a peça de Thomas foi insistentemente associada e que buscava uma palavra capaz de traduzir a essência divina sem traí-la.
Mas a angústia, no "Ventriloquist", não é declamatória: ela surge em filigrana, atrás do riso provocado por invenções que não cessam, conduzidas por maravilhosos atores. No final, essa angústia termina por se dissolver, na medida em que a palavra mostra-se, cada vez mais, amorosamente, fala de teatro. Aquilo que é dito por meio dos personagens, do espetáculo, do diretor termina impondo uma presença elegíaca, e o ventríloquo se metamorfoseia em sua voz verdadeira. É o teatro afirmando-se, nesse admirável espetáculo, para além das palavras incertas.

Fel - Há alguns pontos comuns ao "Ventriloquist" e ao "Louca Turbulência", este no teatro Dulcina (Rio), dirigido por Antônio Abujamra. Ambos fazem piadas sobre Paulo Coelho. Ambos apresentam atores que dublam outros ou que dublam fala gravada. Em ambos, os diretores estão presentes por meios eletrônicos. Ambos fazem rir. Ambos revelam afeto visceral pelo teatro. Mas Abujamra parece avesso à leveza. Ele arrasta uma certa amargura rancorosa, cujo caráter persistente enfraquece suas intenções críticas.
Há ironia sempre, muitas vezes sobre o próprio espetáculo ou sobre o próprio grupo teatral, os "Fodidos Privilegiados", criado pelo diretor em 1991. As piadas não hesitam em ser grossas, e o todo apresenta um curioso tom "chanchada-cabeça". Um telão, no alto, integra projeções. Ele traz o momento mais hilariante de todos: uma entrevista de Abujamra com a Tiazinha. No final, a cara forte do diretor, projetada em close, domina e impõe um longo monólogo. É o epílogo de um melancólico deus ex machina.

Longe - Em certas peças, os atores podem ser incapazes de dizer uma frase com justeza ou de encarnar seus personagens com convicção. Alguns textos podem ser celebrados internacionalmente e revelarem-se ocos. Diretores de renome, montagens ambiciosas, cenários luxuosos nem sempre conseguem acender uma centelha mais viva. O que não impede, muitas vezes, o sucesso.
A peça "Mais Perto", de Patrick Marbe, estrelada por Renata Sorrah e dirigida por Hector Babenco, fez casas lotadas em São Paulo. Agora, no Rio de Janeiro (teatro Villa-Lobos), os espectadores esparramam-se até nos degraus das escadas para assisti-la.

Golpe - Há um projeto da prefeitura para transformar o teatro Municipal de São Paulo em fundação de direito privado. Muitos artistas daquela casa protestam, não contra a idéia de uma fundação, mas contra o que lhes parece pouco amadurecimento e debate. Pedem vigilância por parte de todos, já que, como informam, o futuro corpo diretor, a ser escolhido pelo atual prefeito, em fim de mandato, assumiria o governo do Municipal por, no mínimo, cinco anos e não poderia ser destituído pelas próximas administrações. A novíssima fundação exerceria, ainda, direito exclusivo sobre o teatro durante 50 anos...


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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