São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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Quem se arrisca por pimenta?



É difícil entender por que navegadores europeus enfrentaram a morte para comprar especiarias

HERMANO VIANNA
especial para a Folha

Quem chegou ao final da "Relação do Piloto Anônimo", publicada neste Mais! no último domingo de agosto, pode ter ficado surpreso ao se deparar, depois de toda a narrativa deliciosa das desventuras da frota de Cabral em terras indianas, com dois quase apêndices bastante singulares: o primeiro dá os preços e o segundo os lugares de origem das especiarias. Essas listas -tão minuciosas- em mim redespertaram uma dúvida que nenhum professor primário (sou do tempo pré-primeiro grau), ou mesmo universitário, conseguiu dissipar: afinal, por que os europeus gostavam tanto de especiarias, a ponto de -para controlar seu valioso comércio- arriscarem suas vidas em mares tenebrosos, até então habitados por monstros canibais?
Para o meu paladar de criança, que não suportava nem a canela muito menos o cravo (no arroz-doce), aquela odisséia lusitana, da qual o Brasil é produto, tinha o sabor ainda pouco definível do irracional. Mesmo quando aprendi a venerar a culinária tailandesa e mesmo depois de ter lido a seção "A Metamorfose das Mercadorias" de "O Capital", ainda assim continuo com a certeza de que não colocaria minha vida em risco por pimenta ou gengibre, nem que isso me tornasse tão rico quanto Bill Gates.
Não devo magoar ninguém ao afirmar que o mundo poderia viver muito bem sem as especiarias. Nossas refeições seriam menos saborosas, é claro, mas cravo e canela não são exatamente artigos de primeira necessidade. Lição óbvia, mas nem sempre explicitada: a história humana não é o reino da primeira necessidade. Sim, o mundo poderia viver sem especiarias, mas foram elas que criaram o nosso mundo de hoje.
A paixão pelos temperos asiáticos não tomou conta da Europa subitamente. A mudança do gosto europeu aconteceu lentamente, durante vários séculos. Luís da Câmara Cascudo, na sua imprescindível "História da Alimentação no Brasil", diz que a introdução da pimenta em Roma foi saudada com as "zombarias letradas de Horácio, Marcial e Juvenal". Diante da moda apimentada, o naturalista Plínio estranhava a "aceitação de um produto longínquo, hostil e acre ao paladar". De nada adiantou esse pouco caso intelectual: 80% das receitas de Apicius, o grande gastrônomo romano, continham pimenta-do-reino.
No fim da Idade Média, justamente quando os navegadores portugueses planejavam suas viagens, a "necessidade" de especiarias atingiu seu apogeu. Não podia haver nenhuma refeição aristocrática sem o consumo excessivo de temperos asiáticos comprados a preços exorbitantes de mercadores italianos (que se abasteciam por intermédio de mercadores árabes, os monopolizadores do comércio no Oceano Índico). Especiarias eram sinônimo de luxo, riqueza, sofisticação. Eram produtos de gala.
Os autores da enciclopédica "História da Alimentação", dirigida por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari e lançada no Brasil pela editora Estação Liberdade, rejeitam todas as explicações que tentaram dar sentido prático ou "necessário" para tal fascínio ou vício gustativo. A mais "vã" e "improcedente" das razões seria aquela que afirma que o principal uso das especiarias era conservar as carnes (muito antes de a geladeira ser inventada). O método de conservação mais difundido utilizava o sal e o "que se poderia criticar na gastronomia medieval é o consumo de carne demasiadamente fresca e não o de carne estragada!".
Com o nosso paladar atual não podemos nem imaginar as delícias que o consumo de sabores tão raros -e tão caros!- provocava em comilões medievais. O fato é que as caravelas lusitanas voltavam da Índia abarrotadas de pimenta e noz-moscada. Resultado: o preço caiu e o povo começou a se entupir de sabores exóticos como os aristocratas. A ressaca foi radical, produzindo até aquilo que hoje chamamos de culinária francesa, que se tornou clássica por considerar o uso "exagerado" de especiarias um superado barroquismo. Voltaire escreveu: "Como o mau gosto em nível fisiológico consiste em só se deleitar com temperos muito picantes e elaborados, assim o mau gosto nas artes consiste em só se comprazer com ornatos rebuscados e não apreciar a beleza natural".
Não adiantava reclamar: o mundo, incluindo sua beleza natural, já era outro. As "grandes navegações" desencadearam uma transformação rápida e sem precedentes, principalmente por causa da rapidez, nos ecossistemas e regimes alimentares planetários. O cravo passou a ser plantado no Brasil; o caju virou planta indiana; a mandioca se espalhou pela África. Os europeus continuaram a se deliciar com novidades exóticas: o chocolate, o tomate, o milho, o chá... Espécies "alienígenas" como a cana e o café se tornaram a base da economia brasileira por séculos e séculos.
A globalização atual, com seus 500 milhões de vôos internacionais a cada ano (além de todo o resto...), acelerou ainda mais esse remix biológico. Qualquer uma das mais de 2.000 filiais do Starbucks Coffee, a cadeia vitoriosa que sofisticou o conceito de fast-food nos Estados Unidos dos anos 90, deveria conter um altar para Vasco da Gama ou para a Companhia das Índias. É o caminho inverso do McDonald's (agora território do lúmpen norte-americano), que impõe a coca-cola para todo o planeta: no Starbucks, o consumidor pode escolher entre o Brazil Ipanema Bourbon, o Ethiopia Sidamo, o decaf Sumatra ou o decaf Guatemala Antigua, entre dezenas de outras possibilidades.
Na cadeia do Whole Food Market, também um sucesso dessas duas últimas décadas, na qual o capitalismo pós-selvagem e "ecologicamente consciente" virou um paraíso mercadológico no Primeiro Mundo, é possível comprar os grãos dos café Organic Sumatra Gayo Mountains, Yemen Mocha Mattari ou Colombian Supremo, para moer em casa. Isso para não falar nos diferentes tipos de arroz (fiquei tonto só ao contemplar a parede de mini-silos -é o êxtase do consumo pós-pós-moderno): Thai; Organically Produced Brown Basmati; Near East Pilaf; Low Fat Cantonese etc., etc.
O Starbucks Coffee propagandeia sua "missão ambientalista". O Whole Food Market valoriza produtos "cruelty-free" (isto é, nenhum animal foi usado como cobaia em seus testes de produção) e "crescidos organicamente" (seja lá o que isso signifique). É interessante confrontar suas visões do ecologicamente correto com o que alguns ativistas verdes combatem hoje utilizando o recentíssimo conceito de bioinvasão.
Um recente anúncio de página inteira publicado no "New York Times", assinado por organizações como o Greenpeace US, o Wild Earth e o International Forum on Globalization, anunciava a catástrofe: "Pegando carona nas cargas e lastros de navios, em aviões e carros, milhões de insetos, bactérias e vírus, sementes, plantas e animais ganharam nova mobilidade global. Transplantados entre continentes, eles se tornam agentes importantes na crise de extinção global. Você pode ajudar a parar com isso".
Nesse contexto, as prateleiras da Whole Food Market ou as garrafas térmicas do Starbucks Coffee seriam potencialmente centrais da extinção, onde bactérias do planeta inteiro podem se encontrar para conspirar contra a biodiversidade. Exemplos mais graves se multiplicam: a kudzu, planta japonesa que se espalhou pelo sul dos Estados Unidos matando espécies locais; ou a árvore Melaleuca, "invasor australiano" que cobre parte do território da Flórida na velocidade de 50 acres por dia.
A bioinvasão já faz parte das preocupações urgentes do governo norte-americano. Em fevereiro deste ano, o presidente Bill Clinton publicou a Executive Order 13.112, criando o Invasive Species Council, órgão do qual fazem parte vários de seus principais secretários-ministros, para organizar um plano de ataque a essa "segunda principal ameaça à biodiversidade nos EUA perto da perda de hábitat": US$ 29 bilhões estão previstos no orçamento do ano 2000 para atacar o problema das "espécies invasoras", também chamadas de "espécies alienígenas" ou, menos belicosamente, "espécies não-nativas" (tecnicamente, o invasor seria o não-nativo nocivo, mas quem pode dizer o que é ou não nocivo com certeza?). Uma das recomendações do documento parece estar se referindo a imigrantes clandestinos mexicanos: "Interditar rotas que possam estar envolvidas na introdução de espécies invasoras".
O anúncio do "New York Times" terminava com outra recomendação, mais educada, mas nem por isso menos assustadora: "Reduzir o transporte global. Começar a desenfatizar o comércio e as viagens globais, substituindo-os por uma ênfase na auto-suficiência regional e nas economias locais".
A situação ambiental é séria, certamente. Mas é preciso tomar cuidado para não ser contaminado por um extremismo ecológico que está permeado por um pensamento que identifica a mistura, o diferente, o "alienígena", com o perigo, a (bio)poluição e a destruição. Estamos diante de um "Colombo! fecha a porta dos teus mares!" repetido em pregação eco-apocalíptica?
Veja só onde fomos parar. Da próxima vez que você se balançar numa rede tomando água-de-coco, pense que o coqueiro é uma espécie alienígena que tomou conta de mais da metade do litoral brasileiro só porque um dia, cerca de 500 anos atrás, alguns europeus malucos enfrentaram mares nunca dantes navegados em busca de especiarias.


Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.


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