São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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Um discípulo de Sísifo


Em romances, peças e poemas, Grass fez do engajamento não-utópico a matriz de seu projeto literário

MARCUS VINICIUS MAZZARI
especial para a Folha

O Nobel de Literatura deste ano foi concedido a um dos escritores mais engajados que a tradição alemã já produziu. Nascido na antiga cidade livre de Danzig (a atual Gdansk) a 16 de outubro de 1927, Günter Grass tornou-se para os setores conservadores da sociedade alemã uma espécie de "escândalo satânico", usando a expressão com que H. M. Enzensberger profetizou, em resenha de 1959, o impacto do romance "O Tambor". Com a publicação, dois anos depois, da novela "Gato e Rato", que teria "conspurcado" um dos maiores símbolos militares do país (a Cruz de Ferro), e do romance "Anos de Cão", em 1963, os ataques e acusações ao escritor recrudesceram e chegaram a tomar a via judicial.
Com essas obras, conhecidas hoje como "Trilogia de Danzig", Grass tocou de fato em pontos nevrálgicos da sociedade pós-guerra, em consonância com o seu projeto narrativo de empenhar-se no esclarecimento radical do passado nacional-socialismo e, ao mesmo tempo, desmascarar as tendências conservadoras do governo de Konrad Adenauer (1949-63). Mas houve também motivações mais pessoais para o extraordinário esforço literário de que resultou, em tão curto espaço de tempo, a "Trilogia". Em um texto de 1992, lê-se a seguinte observação: "A perda tornou-me eloquente. Somente aquilo que está inteiramente perdido provoca com paixão invocações infinitas, essa mania de chamar tantas vezes o objeto desaparecido pelo nome até que ele apareça. Perda como pressuposto para a literatura. Estou quase inclinado a apresentar essa experiência como tese".
E foi assim que a rememoração literária do pequeno mundo de sua infância, em que alemães e poloneses, judeus e cachúbios (1) ainda conviviam em paz, suscitou também o escândalo, a "provocação", que desde então acompanha a trajetória desse narrador, manifestando-se mais recentemente com o romance "Um Campo Vasto", ampla crônica picaresca da reunificação alemã que foi a contrapelo das tendências dominantes no país.
Grass, como é fácil de entender, não nutre grandes simpatias pela obra de Goethe, cuja genialidade sempre pairou olimpicamente sobre as miudezas da agitação política. Tampouco pode o seu engajamento, embora enraizado nas tradições do socialismo democrático, ser comparado com o marxista de Brecht, por exemplo. Com a entranhada desconfiança em relação a tudo o que lhe soa como utopia, Günter Grass prefere inserir-se na estirpe daquele Sísifo concebido por Albert Camus, o alegre e incansável "operário" da pedra que encontra nesse esforço o seu sentido de vida, alheio às promessas de um estado final de imobilidade utópica.
Se, portanto, a grande obra épica de Grass -desde o "Tambor", considerado hoje um dos cinco maiores romances em língua alemã do século, até o citado "Campo Vasto"- pode ser vista sob o signo da resistência, esse Sísifo camusiano é certamente o seu principal patrono. E aqui incluem-se outros marcos da prosa de Grass: "Anos de Cão", com o seu "coletivo de autores" e ousadas alegorizações de espantalhos, pássaros e cães pastores; "O Linguado" (1977), estruturado nos nove capítulos que, enquanto acompanham mês a mês a gestação de uma criança, fazem da região de Danzig-Gdansk o foco concentrado da história universal, desde o período neolítico até as greves nos estaleiros Lênin; e ainda "Ratazana" (1986), romance não menos ambicioso, que o autor procurou inserir na tradição satírica de um Swift ou Voltaire, estratificando-se o enredo nas várias dimensões em que se dá o confronto com questões contemporâneas: catástrofes ecológicas, ameaças nucleares, manipulações genéticas, falsificações políticas etc.
Impõe respeito, como se vê, a envergadura desta produção épica, tanto mais em se considerando as obras por assim dizer "menores", como o romance "Anestesia Local" (1969), os livros -mesclas de ficção, ensaio e relato autobiográfico- "Do Diário de um Caracol" (1972) e "Partos Cerebrais" (1981), as narrativas "O Encontro em Telgte" (1979) e "Mau Agouro" (1993).
Dessa forma, não deixa de ser surpreendente que esse autor tenha estreado na literatura, em 1956, com um pequeno volume de poemas, "As Vantagens das Galinhas de Vento". O título é, de fato, um tanto esquisito, mas nessas aves imaginárias (Windhühner) -alusão paranomástica a "Windhunde", galgos (ou "cães de vento")- já se anuncia a relevância que os animais ocuparão nesta obra, povoada de enguias, cães pastores, gatos, ratos e ratazanas, gralhas e todo um mundo ornitológico, caracóis, peixes (inclusive um linguado falante), sapos, rãs etc.
Além da fidelidade ao gênero lírico (só nos anos 90 Grass publicou dois novos livros de poemas), sua trajetória literária registra ainda 11 peças de teatro, sendo talvez a mais conhecida "Os Plebeus Ensaiam o Levante", a qual discute as supostas contradições que marcaram a atitude de Brecht diante da sublevação popular ocorrida em Berlim Oriental no dia 17 de junho de 1953, que o surpreende justamente durante os ensaios de sua adaptação de "Coriolano", de Shakespeare.
Um esboço mais completo da personalidade artística de Grass exigiria ainda referências ao seu trabalho no âmbito das artes gráficas e da escultura, que estudou na Academia de Artes de Düsseldorf, entre 1949 e 52 (aliás, o seu único estudo regular). Mas aqui fica apenas a indicação sumária de que a perspectiva do escultor e do desenhista pode ser observada nos momentos descritivos dos romances e narrativas.
Uma fase de interação mais estreita entre desenho e prosa inaugura-se, em 1987, com o livro "Mostrar a Língua", que documenta mediante essas duas linguagens uma estada de seis meses na cidade de Calcutá (o título alude a um gesto característico da deusa Kali). Três anos depois surge "Madeira Morta", em que o escritor e desenhista envereda indignado pelo tema da devastação ecológica, nesse caso particular, a destruição de bosques e florestas. E por fim há que se mencionar o seu livro mais recente, "Meu Século", recém-publicado na Alemanha: são cem narrativas, ilustradas a aquarela, em que Grass, mediante diferentes narradores, projeta a sua visão pessoal do século 20, enfocando eventos históricos (começando com a Guerra dos Boxers, em 1900), esportivos, biográficos, literários etc.
Grass certamente não poderá se referir ao próximo século com o título do último livro, mas talvez a sua obra ainda esteja longe da conclusão. Em um relato sobre a gênese do "Doutor Fausto", Thomas Mann observa que o seu "livro mais selvagem" surgiu após ter ultrapassado o limiar dos 70 anos. Theodor Fontane, que inspirou a Grass o protagonista de "Um Campo Vasto", escreveu o seu romance mais belo e profundo, "O Stechlin", aos 77 anos. E vale lembrar ainda que Goethe, sempre citável, redige a versão final de "Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister" perto dos 80 e pouco antes da morte conclui o seu "Fausto" -"essas brincadeiras muito sérias", como formula numa carta de março de 1832.
Se, portanto, os anos de velhice podem ser um período fecundo para a atividade criadora, é de se desejar que Grass, esse discípulo assumido de Sísifo, continue ainda por um bom tempo a rolar a sua pedra, narrando histórias e imiscuindo-se com a coragem que lhe é peculiar nas questões de nosso tempo.


Nota:
"Os cachúbios ou cassúbios, dos quais ainda hoje deve haver 300 mil, são eslavos antigos, que falam uma língua em extinção, salpicada de palavras emprestadas do alemão e do polonês" (Günter Grass, em "O Diário de um Caracol").


Marcus Vinicius Mazzari é professor de teoria literária na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica - O Tambor de Lata de Günter Grass" (Ateliê Editorial).


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