São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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Descolonização do conhecimento

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha

"Os Olhos do Império", de Mary Louise Pratt (Universidade de Stanford), vincula-se a um projeto ambicioso: o de "descolonização do conhecimento". Desencadeado nos anos 60, esse desafio intelectual, explica-nos a autora, tem como objetivo maior "compreender os caminhos pelos quais o Ocidente constrói o seu conhecimento do mundo (...) e subjuga e absorve o conhecimento e as capacidades de produção de conhecimento de outros".
O contributo do livro para esse ambicioso projeto consiste em promover um mapeamento das várias imagens da América espanhola e da África construídas nas páginas das narrativas de viagem européias, nomeadamente daquelas publicadas entre os séculos 18 e 19. Adverte a autora, entretanto, que seu objetivo não é tão somente levar a cabo um "estudo de gênero", mas realizar uma "crítica de ideologia". Em linhas gerais, isso significa articular, numa relação que não sabemos ao certo se é de causalidade ou simultaneidade, a produção das narrativas à trajetória expansionista do capitalismo europeu.
O percurso de Pratt para demonstrar a relação referida é, malgrado alguns tropeços, instigante. Antes, porém, de passarmos os olhos pelo texto, convém aproveitar a sugestão da própria autora e dar um pequeno contributo ao tal projeto de "descolonização do conhecimento". Embora o seu estudo concentre-se na América espanhola, com insignificante referência ao Brasil, Pratt insiste em falar de América do Sul e de América Latina. Um leitor desavisado pode ser levado a crer que a ex-colônia portuguesa ou não se encontra mais nessa região ou, no passado, fez parte da América Espanhola. A desatenção é tanto mais grave quando se verifica que muitas das colocações da autora sobre as narrativas referentes às ex-colônias espanholas não são válidas para os relatos referentes ao Brasil, relatos que ela nem sequer menciona.
Feito o protesto, passemos ao percurso. Pratt inicia o mapeamento crítico do olhar europeu sobre terras de além-mar examinando as narrativas escritas pelos sobreviventes da renomada expedição de Charles de la Condamine, que visitou a América do Sul na primeira metade do século 18. As descrições do Novo Mundo aí contidas, segundo a pesquisadora, dão conta de uma nova fase do capitalismo europeu, o qual, depois de conhecer e explorar as costas das terras "descobertas" durante a expansão marítima, estaria agora interessado em avançar para os interiores.
O tom desse discurso não é mais o do navegador ou o do náufrago, mas sim o do naturalista que, pacientemente, organiza em quadro as riquezas naturais e as curiosidades das exóticas terras que visita. É da análise das múltiplas variantes desse discurso europeu sobre o mundo não-europeu que trata a primeira parte do livro. Pratt esquadrinha, então, cerca de uma dezena de relatos -sobre a América Espanhola e a África meridional- e estabelece duas grandes linhas de força da narrativa de viagem do setecentos: a científica e a sentimental, ambas expressões da subjetividade burguesa.
A segunda parte do livro abre com uma análise dos escritos de Alexander von Humboldt sobre sua viagem à América Espanhola (1799-1804) -uma América à beira do processo de independência. Humboldt, aos olhos de Pratt, renova uma vez mais a maneira de representar o Novo Mundo, inaugurando uma linhagem de narrativas em que aparecem conjugados os discursos científico e sentimental. Complementam a análise um estudo sobre as supostas peculiaridades das narrativas de viagem oitocentistas escritas por mulheres, bem como uma abordagem, bastante sugestiva, da influência que as diversas imagens da América, divulgadas por Humboldt, tiveram sobre a construção da auto-imagem dos crioulos e sobre os projetos de nação que estavam sendo concebidos no Novo Mundo. Há ainda uma terceira parte do livro, bem mais reduzida e menos interessante que as anteriores, na qual a autora analisa relatos de viagem produzidos entre 1860 e 1980, das narrativas "monarca-de-tudo-o-que-vejo" às "pós-coloniais", para usar a linguagem de Pratt.
O importante de "Olhos do Império", porém, concentra-se nas duas primeiras partes, mais densas e bem-fundamentadas, mas nem por isso isentas de problemas. O maior deles talvez derive da "fúria interpretativa" da pesquisadora, que frequentemente manda às favas a história e emite, sobre textos e autores dos séculos 18 e 19, juízos como: "Park torna-se, então, vítima do olhar feminino, cujo voyeurismo agressivo o feminiza" ou "A relação leitor/ texto é estruturada nos mesmos termos masculinos e erotizados que estruturam a relação do viajante com os países exóticos que visita". Tais anacronismos, que pululam por todo o texto, teriam sido evitados se Pratt, em vez de se deter tanto na análise dos mecanismos internos de umas poucas obras, procurasse mapear para o leitor os traços comuns de um leque significativo de narrativas.
Outra providência que evitaria análises desprovidas de fundamentação histórica seria amparar a interpretação dos textos numa sólida pesquisa sobre o lugar das narrativas de viagem nas sociedades européias dos séculos 18 e 19. Questões como quem eram os viajantes, qual o lugar social que ocupavam, qual o estatuto da narrativa de viagem, quem eram seus leitores ficam, infelizmente, sem resposta satisfatória.


Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


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