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Descolonização do conhecimento
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha
"Os Olhos do Império", de
Mary Louise Pratt (Universidade
de Stanford), vincula-se a um
projeto ambicioso: o de "descolonização do conhecimento". Desencadeado nos anos 60, esse desafio intelectual, explica-nos a autora, tem como objetivo maior
"compreender os caminhos pelos
quais o Ocidente constrói o seu
conhecimento do mundo (...) e
subjuga e absorve o conhecimento e as capacidades de produção
de conhecimento de outros".
O contributo do livro para esse
ambicioso projeto consiste em
promover um mapeamento das
várias imagens da América espanhola e da África construídas nas
páginas das narrativas de viagem
européias, nomeadamente daquelas publicadas entre os séculos
18 e 19. Adverte a autora, entretanto, que seu objetivo não é tão
somente levar a cabo um "estudo
de gênero", mas realizar uma
"crítica de ideologia". Em linhas
gerais, isso significa articular, numa relação que não sabemos ao
certo se é de causalidade ou simultaneidade, a produção das
narrativas à trajetória expansionista do capitalismo europeu.
O percurso de Pratt para demonstrar a relação referida é,
malgrado alguns tropeços, instigante. Antes, porém, de passarmos os olhos pelo texto, convém
aproveitar a sugestão da própria
autora e dar um pequeno contributo ao tal projeto de "descolonização do conhecimento". Embora o seu estudo concentre-se na
América espanhola, com insignificante referência ao Brasil, Pratt
insiste em falar de América do Sul
e de América Latina. Um leitor
desavisado pode ser levado a crer
que a ex-colônia portuguesa ou
não se encontra mais nessa região
ou, no passado, fez parte da América Espanhola. A desatenção é
tanto mais grave quando se verifica que muitas das colocações da
autora sobre as narrativas referentes às ex-colônias espanholas
não são válidas para os relatos referentes ao Brasil, relatos que ela
nem sequer menciona.
Feito o protesto, passemos ao
percurso. Pratt inicia o mapeamento crítico do olhar europeu
sobre terras de além-mar examinando as narrativas escritas pelos
sobreviventes da renomada expedição de Charles de la Condamine, que visitou a América do Sul
na primeira metade do século 18.
As descrições do Novo Mundo aí
contidas, segundo a pesquisadora, dão conta de uma nova fase do
capitalismo europeu, o qual, depois de conhecer e explorar as
costas das terras "descobertas"
durante a expansão marítima, estaria agora interessado em avançar para os interiores.
O tom desse discurso não é mais
o do navegador ou o do náufrago,
mas sim o do naturalista que, pacientemente, organiza em quadro
as riquezas naturais e as curiosidades das exóticas terras que visita. É da análise das múltiplas variantes desse discurso europeu
sobre o mundo não-europeu que
trata a primeira parte do livro.
Pratt esquadrinha, então, cerca de
uma dezena de relatos -sobre a
América Espanhola e a África meridional- e estabelece duas grandes linhas de força da narrativa de
viagem do setecentos: a científica
e a sentimental, ambas expressões
da subjetividade burguesa.
A segunda parte do livro abre
com uma análise dos escritos de
Alexander von Humboldt sobre
sua viagem à América Espanhola
(1799-1804) -uma América à
beira do processo de independência. Humboldt, aos olhos de Pratt,
renova uma vez mais a maneira
de representar o Novo Mundo,
inaugurando uma linhagem de
narrativas em que aparecem conjugados os discursos científico e
sentimental. Complementam a
análise um estudo sobre as supostas peculiaridades das narrativas
de viagem oitocentistas escritas
por mulheres, bem como uma
abordagem, bastante sugestiva,
da influência que as diversas imagens da América, divulgadas por
Humboldt, tiveram sobre a construção da auto-imagem dos
crioulos e sobre os projetos de nação que estavam sendo concebidos no Novo Mundo. Há ainda
uma terceira parte do livro, bem
mais reduzida e menos interessante que as anteriores, na qual a
autora analisa relatos de viagem
produzidos entre 1860 e 1980, das
narrativas "monarca-de-tudo-o-que-vejo" às "pós-coloniais", para usar a linguagem de Pratt.
O importante de "Olhos do Império", porém, concentra-se nas
duas primeiras partes, mais densas e bem-fundamentadas, mas
nem por isso isentas de problemas. O maior deles talvez derive
da "fúria interpretativa" da pesquisadora, que frequentemente
manda às favas a história e emite,
sobre textos e autores dos séculos
18 e 19, juízos como: "Park torna-se, então, vítima do olhar feminino, cujo voyeurismo agressivo o
feminiza" ou "A relação leitor/
texto é estruturada nos mesmos
termos masculinos e erotizados
que estruturam a relação do viajante com os países exóticos que
visita". Tais anacronismos, que
pululam por todo o texto, teriam
sido evitados se Pratt, em vez de
se deter tanto na análise dos mecanismos internos de umas poucas obras, procurasse mapear para o leitor os traços comuns de um
leque significativo de narrativas.
Outra providência que evitaria
análises desprovidas de fundamentação histórica seria amparar
a interpretação dos textos numa
sólida pesquisa sobre o lugar das
narrativas de viagem nas sociedades européias dos séculos 18 e 19.
Questões como quem eram os
viajantes, qual o lugar social que
ocupavam, qual o estatuto da narrativa de viagem, quem eram seus
leitores ficam, infelizmente, sem
resposta satisfatória.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em
literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).
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