São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Como a maior parte das mostras atuais, Bienal de SP acalenta o sonho de construir as formas de uma vida nova e reparar 'as falhas do vínculo social'

A arte além da arte

Jacques Rancière

Logo ao transpor a porta da 26ª Bienal de São Paulo, o visitante é surpreendido: diante dele, um "Pesadelo de Jorge 5º" mostra-lhe um tigre atacando um elefante: à sua direita estende-se um cenário de pirâmides, semelhante às maquetes dos museus de arqueologia; à sua esquerda, máquinas de costura nas quais mulheres juntam fios, como para trabalhar na confecção do cenário que as cerca: quadrados de patchwork nos quais são dispostas imagens urbanas ou rurais em musgo coberto de tecidos coloridos, que lembram ao mesmo tempo os bichos de pelúcia e os jogos de construção infantis, para significar uma interrogação sobre as transformações econômicas e a mutação das identidades na China contemporânea. Continuando a visita, ele encontrará, entre outras coisas, um barco com vela colorida que evoca a travessia de Portugal ao Brasil, uma casa de sonhos feita de tecidos, uma tenda mongol, um "Puzzle Polis 2º" de um artista de favela, que dispõe, como numa cidade, lâmpadas em forma de edifícios ou de automóveis; 198 retratos de camponeses chineses, amontoados como num grande afresco; uma assemblage de dezenas de fotografias, representando a sala de estar de malaios de todas as condições, etnias ou religiões; fotografias de uma pequena cidade polonesa, testemunhando a miséria pós-socialista; fotografias de lugares sórdidos da América profunda, testemunhando o avesso da prosperidade capitalista; pequenas fotografias de ucranianos de classe média, coladas sobre grandes cenários "kitsch" de parques floridos com lagos e cisnes. É aceito, entre os nostálgicos, que a arte contemporânea é o reinado do "qualquer coisa". Esse julgamento é demasiado global para nos instruir. O pretenso qualquer coisa é sempre alguma coisa, uma mistura determinada que mostra um dado estado das relações entre as formas da arte e os objetos, imagens ou costumes da vida ordinária. O que reina na Bienal de São Paulo, como em tantas exposições contemporâneas, não é a simples fantasia de artistas que seguem seu capricho. Ao contrário, o visitante é impressionado pela similitude das preocupações a que os artistas obedecem e dos procedimentos que empregam, sejam eles chineses ou norte-americanos, brasileiros, indonésios ou eslovacos. Certamente a unidade se deve à escolha do organizador, que fixou aos artistas por ele selecionados um tema, o da cidade.

Obsessão pelo real
Mas essa escolha reflete, ela mesma, uma tendência dominante na arte contemporânea. Essa tendência pode se caracterizar como uma espécie de obsessão ou até mesmo um fanatismo pelo real.
A obsessão pelo real assume várias formas. Pode ser a preocupação em testemunhar o estado do mundo por meio da objetividade da máquina fotográfica que nos restitui exatamente os cenários da vida ordinária em tempos de globalização.
Pode ser o desejo de mesclar as imagens da cultura cotidiana ou os objetos da arte popular com os dispositivos conceituais dos artistas. No Rio de Janeiro, simultaneamente, a exposição "Tudo É Brasil" [que estréia em SP, no Itaú Cultural, em 9/11], mostrava o sonho insistente de uma arte brasileira de unir o modernismo construtivista às formas da arte ou da cultura popular, seja como grandes quadros abstratos feitos de uma multiplicidade de dominós ou peças de bola de futebol, seja como obras em vídeo que recolhem a arte dos grafites e das pinturas de rua.
É ainda a vontade de fabricar verdadeiros objetos, objetos livres da irrealidade da tela pintada ou da mediação da reprodução fotográfica e que imponham imediatamente sua realidade nas três dimensões do espaço: uma casa, uma tenda, um barco... Como se a recusa do simulacro da representação tivesse tomado a direção oposta daquela que marcou a arte do tempo de Malevitch ou de Mondrian: não mais a tela abstrata, mas o objeto verdadeiramente existente como objeto do mundo.
No "Crátilo", Platão evocava o limite ao qual tende a semelhança e no qual se arrisca a se abolir. Esse limite é o objeto absolutamente semelhante ao modelo, a cópia que não mais se distingue da coisa real. Cratilismo ficou sendo desde então o nome dessa tentativa de fazer do signo ou da imagem não mais um índice ou uma cópia da coisa, mas a coisa mesma. E não há dúvida de que o cratilismo está presente nesta bienal assim como em muitas manifestações da arte contemporânea.
Mas a obsessão pelo real é também a do ato que intervém diretamente na realidade social. Nas paredes das exposições contemporâneas vêem-se com freqüência fotografias ou vídeos que comprovam tais intervenções: provocações de um Gianni Motti imiscuindo-se, numa mise-en-scène de ficção política, no núcleo dos segredos de Estado, ou de um Santiago Serra que paga subproletários mexicanos para que imitem sua exploração, cavando seu próprio túmulo. Não é de provocação que se trata na obra de um artista cubano apresentada na Bienal. Com um grupo de artistas, ele destinou o dinheiro de uma fundação artística a uma pesquisa sobre as necessidades dos habitantes de um bairro pobre.
Mas não basta pesquisar as necessidades. É preciso também responder a elas. O vídeo de René Francisco nos mostra os artistas/ artesãos ocupados em refazer o telhado de zinco e a pintura na casa de um velho casal, cuja sombra na tela os observa.
Será isso arte, perguntarão os estetas? Aqui também a questão está mal colocada. Pois a arte moderna inteira foi habitada pela preocupação de sair de si para tornar-se uma forma de intervenção que transforme a realidade mesma das coisas. Os pioneiros de uma pintura abstrata, reduzida à sua essência de assemblage de formas coloridas, foram também os paladinos de uma arte que é mais que uma arte, que se transforma numa espécie de vida comum. Não mais fazer "pintura", como realidade separada, mas construir as formas de vida e o mobiliário de uma vida nova -tal foi o sonho comum a Mondrian e a Malevitch. Tal foi a base da adesão da vanguarda artística à criação da "vida nova" soviética.
O que é novo e significativo, portanto, não é a vontade de uma arte que saia de si mesma para agir diretamente no mundo. É a forma hoje assumida por essa vontade, uma forma de assistência individual aos mais desfavorecidos que tanto as vanguardas artísticas como os construtores do socialismo rejeitavam até pouco tempo atrás. O sonho de uma arte que construa as formas de uma vida nova tornou-se o projeto modesto de uma "arte relacional": arte que busca criar não mais obras, mas situações e relações, e nas quais o artista, como diz um teórico francês dessa arte, presta à sociedade "pequenos serviços" próprios a reparar "as falhas do vínculo social".
A ironia é que essa estética da arte como serviço social seja particularmente representada na Bienal por artistas provenientes dos últimos países que invocam o socialismo marxista.
Não é muito proveitoso pôr em causa a ingenuidade dos artistas ou a esperteza dos organizadores. Pois essa obsessão pelo real, essa vontade febril de "fazer" algo que seja um objeto sólido, uma ação efetiva ou um testemunho sobre o estado do mundo, reflete também a posição singular da atividade artística num mundo onde tendem a se apagar não apenas os grandes projetos revolucionários mas as próprias formas do conflito político. O vazio da cena política incita os artistas e os atores do mundo da arte a utilizar seus meios e seus lugares para testemunhar uma realidade das desigualdades, das contradições e dos conflitos que o discurso consensual tende a tornar invisíveis e a opor suas propostas de intervenção ao fatalismo reinante.
O problema é que esse esforço indiscutível de muitos artistas para romper o consenso dominante e questionar a ordem existente tende a se inscrever, ele próprio, no quadro das descrições e das categorias consensuais, reduzindo o poder artístico de provocação às tarefas éticas de testemunho sobre um mundo comum e de assistência aos mais desfavorecidos.


Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Acaba de lançar na França "Malaise dans l"Esthétique" (Mal-Estar na Estética, ed. Galilée). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.


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