São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Leia a seguir um conto do escritor sul-africano, que ganhou o Nobel em 2003, no qual seu alter ego Elizabeth Costello, já nos últimos anos de vida, reencontra os filhos

por J.M. Coetzee

Ela está visitando a filha em Nice, sua primeira visita há muitos anos. O filho virá de avião dos Estados Unidos para passar alguns dias com elas, a caminho de uma conferência qualquer. Interessante, essa confluência de datas. Ela se pergunta se não terá havido algum acerto, se os dois não têm algum plano, alguma proposta a fazer, dessas que os filhos fazem a uma mãe quando sentem que ela já não pode se cuidar. Tão obstinada, terão dito um ao outro, tão obstinada, tão teimosa, tão voluntariosa -como vamos contornar essa obstinação se não trabalharmos juntos?
Eles a amam, é claro, caso contrário não estariam fazendo planos para ela. Mesmo assim, ela se sente como um daqueles aristocratas romanos esperando a poção fatal, esperando que lhes digam da maneira mais confiante, mais compassiva que, para o bem geral, o melhor é beber logo, sem alarde. Os filhos sempre foram bons e atenciosos, à maneira dos filhos. Se, como mãe, ela foi igualmente boa e atenciosa, é uma outra questão. Mas nesta vida nem sempre se consegue o que se merece. Os filhos terão que esperar por uma outra vida, uma outra encarnação, se quiserem equilibrar a balança.
A filha dirige uma galeria de arte em Nice. Em termos práticos, a essa altura a filha é completamente francesa. O filho, com a mulher americana e o filho americano, logo será, em termos práticos, completamente americano. De modo que, ao voar do ninho, voaram bem longe. Seria até de pensar, caso não os conhecesse, que haviam voado longe para escapar dela.
Seja qual for a proposta que querem lhe fazer, certamente será repleta de ambivalência: amor e zelo, de um lado, dureza ríspida, de outro, e um desejo de se livrar dela. Bem, a ambivalência não deveria desconcertá-la. Em que ponto estaria a arte da ficção, se não fossem pelos duplos sentidos? Em que ponto estaria a vida, se houvesse apenas cara e coroa, sem nada de entremeio?
"O que eu acho fantasmagórico, à medida que envelheço", ela diz ao filho, "é que ouço saindo da minha boca as palavras que antes eu ouvia os velhos dizerem e que eu jurava que jamais diria. Coisas do tipo "para-onde-vai-este-mundo". Por exemplo: ninguém parece mais saber que o passado do subjuntivo existe -para onde vai este mundo? As pessoas andam pela rua comendo pizza e falando ao telefone -para onde vai este mundo?"
Ele está há um dia em Nice, ela, há três: um dia morno e luminoso de junho, o tipo de dia que trazia gente ociosa e bem de vida da Inglaterra para este trecho de costa, em outros tempos. E ali estão os dois, passeando pela Promenade des Anglais assim como os ingleses faziam cem anos atrás, com seus pára-sóis e chapéus de palha, deplorando a última criação do sr. Hardy, deplorando os bôeres.
"Deplorar", diz ela, "uma palavra que não se ouve muito hoje em dia. Ninguém com a cabeça no lugar "deplora" alguma coisa, se não quiser ser alvo de piada. Uma palavra proibida, uma atividade proibida. O que se vai fazer? Manter todas as deplorações de prontidão, até que se esteja sozinho com outros velhos, livre para se derramar?".
"Você pode me deplorar o quanto quiser, mãe", diz John, o filho bom e atencioso. "Vou concordar e não vou rir de você. O que mais você gostaria de deplorar hoje, além da pizza?"
"Não é a pizza que eu deploro, a pizza não é problema, o que eu acho grosseiro é andar e comer e falar ao mesmo tempo."
"Concordo, é grosseiro ou, pelo menos, não é refinado. O que mais?" "Isso basta. O que eu deploro não interessa em si mesmo. O que interessa é que, anos atrás, eu jurei que jamais faria isso, e cá estou eu, fazendo. Por que eu sucumbi? Eu deploro o rumo que o mundo vai tomando. Eu deploro o curso da história. Deploro de coração. Mas, quando eu me ouço, o que eu ouço? Ouço minha mãe deplorando a minissaia, deplorando a guitarra elétrica. E lembro da minha exasperação. Eu dizia: "Sim, mãe", e apertava os dentes e rezava para que ela calasse a boca. E então..." "E então você acha que eu estou apertando os dentes e rezando para você calar a boca." "Isso." "Pois não estou. É perfeitamente aceitável deplorar o rumo que o mundo vai tomando. Eu mesmo deploro, a sós." "Mas os detalhes, John, os detalhes! Não é apenas o grande movimento da história que eu deploro, são os detalhes -a falta de educação, a pouca gramática, o estardalhaço! São detalhes assim que me exasperam, e é o tipo de detalhe que consegue me exasperar que me deixa louca. Tão minúsculos! Você me entende? Mas é claro que não. Você acha que estou me expondo ao ridículo quando eu não estou me expondo ao ridículo. É tudo a sério! Você entende que tudo isso possa ser a sério?" "É claro que entendo. Você se expressa com toda a clareza."


A história vai me vingar, eu me dizia; mas estou perdendo a fé na história, do jeito que a história vai -perdendo a fé na capacidade da história de aparecer com a verdade


"Mas não, não! Isso são só palavras, e a essa altura todos nós estamos cansados de palavras. Hoje em dia, a única maneira de provar que se está falando a sério é acabar consigo mesmo. Atirar-se em cima da espada. Estourar os miolos. Mas basta eu dizer isso para você querer sorrir. Eu sei. Porque eu não estou falando a sério, não inteiramente -estou velha demais para ser levada a sério. Você se mata aos 20 -é uma perda trágica. Você se mata aos 40 -é um comentário maduro sobre os tempos que correm. Mas você se mata aos 70 e as pessoas vão dizer: "Que pena, ela devia estar com câncer"." "Mas você nunca se importou com o que diziam." "Nunca me importei com o que diziam porque sempre acreditei na palavra do futuro. A história vai me vingar, eu me dizia. Mas estou perdendo a fé na história, do jeito que a história vai -perdendo a fé na capacidade da história de aparecer com a verdade." "E de que jeito a história vai, mãe? E, enquanto isso, eu só quero observar que você conseguiu me encurralar de novo na posição do sujeito quadrado ou do menino quadrado, uma posição de que eu não gosto muito." "Desculpe, desculpe. É por viver sozinha. Na maior parte do tempo, eu tenho que ter essas conversas só aqui na cabeça; é um alívio poder falar com pessoas." "Interlocutores. Pessoas, não. Interlocutores." "Interlocutores com quem eu posso falar." "Sobre quem você pode falar." "Interlocutores sobre quem eu posso falar. Desculpe, vou parar. Como está Norma?" "Norma está bem. Mandou um beijo. As crianças estão bem. Mas de que jeito a história vai?" "A história perdeu a voz. Clio, que outrora tangia a lira e cantava os feitos dos grandes homens, anda enfermiça, enfermiça e frívola, como o tipo mais tolo de velhinha. Ao menos é isso que eu penso, parte do tempo. No resto do tempo, eu acho que ela foi aprisionada por uma gangue de facínoras que a torturam e a fazem dizer coisas que ela não queria dizer. Não quero nem lhe contar o que penso da história. Tornou-se uma obsessão." "Uma obsessão. Quer dizer que você está escrevendo a respeito?" "Não, não estou escrevendo. Só poderia escrever sobre a história se estivesse a ponto de dominá-la. Não, eu só posso especular, especular e deplorar. E deplorar a mim mesma também. Eu me enredei num clichê e já não acredito que a história consiga afastar esse clichê." "Qual clichê?" "Não quero nem começar, é deprimente demais. O clichê do disco arranhado, que nem faz mais sentido, porque não há mais agulhas nem vitrolas. A palavra que ecoa de todos os cantos é "gélido". A mensagem da história para o mundo é incessantemente gélida. O que isso quer dizer, "gélido'? Uma palavra que diz respeito a paisagens de inverno de algum modo se ligou a mim. Feito um cachorrinho que anda atrás da gente, ganindo, e não arreda pé. A palavra me persegue. Vai me seguir até a cova. Vai estar na beira da cova, espiando e ganindo "gélido, gélido, gélido'!" "Mas, se você não fosse a gélida, quem você seria, mãe?" "Você sabe quem eu sou, John?" "É claro que sei. Mesmo assim, diga você. Diga até o fim." "Eu sou aquela que costumava rir e não ri mais. Eu sou aquela que chora."

Intelectual solitária
A filha, Helen, dirige uma galeria de arte na cidade velha. De todos os pontos de vista, a galeria é um grande sucesso. Helen não é a dona. É funcionária de dois suíços que baixam de sua toca em Berna duas vezes por ano para checar as contas e embolsar os lucros.
Helen, ou Hélène, é mais jovem que John, mas parece mais velha. Mesmo quando estudante, tinha um ar de meia-idade, com a saia lápis, os óculos de coruja e o coque. Um tipo que os franceses aceitam e até respeitam: a intelectual solitária e severa. Ao passo que, na Inglaterra, Helen seria convertida sem mais em bibliotecária e alvo de piada.
Na verdade, ela não tem nenhuma razão para acreditar que Helen seja solitária. Helen não fala de sua vida pessoal, mas John menciona um caso que já vem de anos, com um homem de negócios de Lyon que vem buscá-la em alguns fins de semana. Quem sabe, talvez ela floresça nesses fins de semana.
Não é muito decente especular sobre a vida sexual dos próprios filhos. Mesmo assim, ela não consegue acreditar que alguém que dedica a vida à arte -ainda que seja apenas ao comércio de quadros- não tenha um fogo próprio.
Esperava um assédio coordenado: Helen e John pedindo que se sentasse e expondo o plano que haviam concebido para a salvação dela. Mas, não, a primeira noite juntos passa de modo perfeitamente agradável. O assunto só aparece no dia seguinte, no carro de Helen, quando as duas dirigem para o norte, para um restaurante nos Basses-Alpes que Helen escolheu, deixando John para trás com seu trabalho para a conferência.
"O que acharia de morar aqui, mãe?", diz Helen, sem rodeios.
"Você quer dizer aqui nas montanhas?"
"Não, na França. Em Nice. Há um apartamento no meu prédio que vai vagar em outubro. Você poderia comprar, ou nós poderíamos comprar juntas. No térreo."
"Você quer morar junto comigo, eu e você? É uma surpresa e tanto, meu amor. Tem certeza do que está dizendo?"
"Não moraríamos juntas. Você continuaria independente em tudo. Mas, numa emergência, você teria a quem chamar."
"Obrigado, meu amor, mas em Melbourne há gente muito bem treinada para lidar com as pequenas emergências dos velhos."
"Por favor, mãe, não vamos ficar fingindo. Você tem 72 anos. Já teve problemas com o coração. Não vai poder cuidar de si mesma para sempre. Se você..."
"Não precisa continuar, meu amor. Tenho certeza de que você acha o eufemismo tão de mau gosto quanto eu. Eu posso quebrar a bacia, posso ficar gagá, posso continuar vivendo numa cama por anos a fio: é disso que estamos falando. Dadas essas possibilidades, a minha questão é: por que impor a minha filha o fardo de cuidar de mim? E suponho que a sua questão seja: como vou conseguir viver em paz se não oferecer a ela, com toda sinceridade, meu cuidado e minha proteção? É esse o nosso problema, nosso problema comum, não é?"
"É, sim. Minha proposta é sincera. É também praticável. Já conversei com John."
"Então não vamos estragar este dia bonito com uma briguinha. Você fez a sua proposta, eu a ouvi e prometo pensar nela. Vamos deixar assim. É bem improvável que eu aceite, como você deve ter adivinhado. Minhas idéias estão tomando outra direção. Há uma coisa em que os velhos são melhores que os jovens -morrer. Cumpre aos velhos (que expressão esquisita!) morrer bem, mostrar aos que ficam o que pode ser uma boa morte. Eu gostaria de me concentrar em morrer bem."
"Você poderia morrer bem tanto em Nice como em Melbourne."
"Isso não é verdade, Helen. Pense bem e você vai ver que não é verdade."
"O que você entende por uma boa morte, mãe?"
"Uma boa morte acontece bem longe, onde os restos mortais são removidos por estranhos, por gente do ramo. Uma boa morte é anunciada por um telegrama: "Lamento informar que etc". É uma pena que os telegramas andem fora de moda."
Helen solta um bufo exasperado. Continuam a dirigir em silêncio. Nice ficou bem para trás: descendo por uma estrada vazia, as duas se precipitam por um longo vale. Muito embora seja nominalmente verão, o ar está frio, como se o sol jamais alcançasse essas profundezas. Ela tem um calafrio, levanta a janela. É como entrar em uma alegoria!
"Não é certo morrer sozinho", Helen acaba por dizer, "sem ninguém para dar a mão. É anti-social. É inumano. Desculpe as palavras, mas estou falando sério. Estou me oferecendo para segurar a sua mão. Estar com você".
Dos filhos, Helen sempre foi a mais reservada, a que mantinha a mãe mais à distância. Helen nunca falou assim antes. Talvez o carro facilite, permitindo que o motorista não olhe de frente para a pessoa com quem está falando. Ela tem que se lembrar disso a respeito de carros.
"É muito gentil da sua parte, meu amor", diz ela. A voz que sai de sua garganta é inesperadamente baixa. "Não vou esquecer. Mas não seria estranho voltar para a França depois de todos esses anos, e para morrer? O que eu vou dizer ao sujeito na fronteira, quando ele me perguntar qual o propósito da minha visita, negócios ou lazer? Ou, pior ainda, quando ele perguntar quanto tempo planejo ficar? "Para sempre'? "Até o fim'? "Só um tempinho'?"
"Diga "réunir la famille'? Ele vai entender. Para reunir a família. Acontece todos os dias. Ele não vai perguntar mais que isso."
As duas comem em um "auberge" chamado "Les Deux Ermites". Deve haver uma história por trás do nome, mas ela prefere que não lhe contem. Se for boa, terá sido inventada. Um vento frio e cortante está soprando; sentam-se atrás da janela, olhando para os picos nevados lá fora. É o começo da estação: além delas, só outras duas mesas estão ocupadas.
"Se é bonito? É claro que é bonito, é um belo país, não preciso nem dizer. "La belle France". Mas não esqueça, Helen, da sorte que tive, da vocação privilegiada que eu segui. Tive a oportunidade de ir para onde bem quisesse durante a maior parte da vida. Vivi, sempre que quis, no seio da beleza. Mas a questão que eu me pego fazendo hoje em dia é: que bem isso me fez, toda essa beleza? Será que a beleza não é apenas mais um bem de consumo, como o vinho? Você brinda, bebe de um trago, a sensação é breve, agradável, inebriante, mas o que ele deixa para trás? O resíduo do vinho é, com o perdão da palavra, mijo; qual o resíduo da beleza? Que bem ela faz? A beleza nos torna pessoas melhores?"
"Antes que você me diga a sua resposta à questão, mãe, posso dizer a minha? Porque eu acho que sei o que você vai dizer. Você vai dizer que a beleza não lhe fez nenhum bem que se veja, que um dia desses você vai estar às portas do paraíso, de mãos vazias e com um ponto de interrogação na testa. Seria perfeitamente adequado a você, ou melhor, a Elizabeth Costello, dizer algo assim. Dizer e acreditar. A resposta que você não daria -por não ser condizente com Elizabeth Costello- é que aquilo que você produziu como escritora não apenas tem uma beleza própria -uma beleza limitada, vá lá, não estamos falando de poesia, mas ainda assim beleza, forma, clareza, economia- como também mudou a vida dos outros, tornou-os seres humanos melhores ou ligeiramente melhores. Não sou apenas eu que digo isso. Outras pessoas também, estranhos. Para mim, face a face. Não porque o que você escreve contenha lições, mas por "ser" uma lição."
"Quer dizer, feito a mosca d'água."
"Eu não sei o que é uma mosca d'água."
"A mosca d'água é uma mosca de patas compridas. Um inseto. A mosca d'água acha que está apenas caçando, ao passo que, na verdade, seus movimentos repetidos sobre a água do charco formam a mais bela de todas as palavras, o nome de Deus. Os movimentos da caneta sobre a página traçam o nome de Deus, como você, olhando de longe, pode ver -mas eu não posso."
"Está bem, se você prefere assim. Mas é mais que isso. Você ensina as pessoas a sentir. Por obra da graça. A graça da caneta que segue os movimentos do pensamentos."
Tudo isso soa antiquado para ela, essa teoria estética que a filha está expondo, assim tão aristotélica. Será que Helen a desenvolveu por si só ou a leu em algum lugar? E como isso se aplica à pintura? Se o ritmo da caneta é o ritmo do pensamento, qual é o ritmo do pincel? E o que dizer das pinturas feitas com uma lata de spray? Como uma pintura dessas nos ensinaria a ser pessoas melhores?
Ela suspira. "É gentil da sua parte dizer isso, Helen, é gentil querer me acalmar. É claro que não estou convencida. Como você mesma disse, se eu me deixasse convencer, não seria eu mesma."
"Mas isso não serve de consolo. Dá para ver que não estou no ânimo mais alegre. No meu estado de ânimo atual, a vida que eu levei parece equívoca do começo ao fim, e nem isso de modo especialmente interessante. Hoje eu penso que, quando se quer ser uma pessoa melhor, deve haver um meio menos tortuoso além de manchar milhares de páginas de prosa." "Quais meios, por exemplo?" "Helen, esta conversa não é das mais interessantes. Até onde eu sei, estados de ânimo sombrio não produzem pensamentos interessantes." "Então é melhor não falar?" "Isso, é melhor não falar. Vamos fazer alguma coisa de bem antiquado. Vamos ficar quietas aqui e escutar o cuco." Pois de fato há um cuco piando no arvoredo atrás do restaurante. Se abrirem um pouquinho a janela, o som chega claramente com o vento: um motivo de duas notas, alto e baixo, repetidos uma e outra vez. "Redolente", ela pensa -uma palavra ao gosto de Keats-, redolente a verão e ócio veranil. Um pássaro desprezível, mas que cantor, que sacerdote! "Cucu", o nome de Deus na língua dos cucos. Um mundo de símbolos.

Bridge a três
Estão fazendo uma coisa que não fazem desde que as crianças eram crianças. Sentados na sacada do apartamento de Helen ao calor insinuante da noite mediterrânea, estão jogando baralho. Estão jogando bridge a três, o jogo que costumavam chamar de "sevens" e que na França se chama "rami", segundo Helen/ Hélène.


O que lhe salta aos olhos agora é a facilidade com que vestem as personagens de 30 anos atrás


Foi de Helen a idéia de uma noite de carteado. De início, pareceu uma idéia estranha, artificial; mas, no embalo do jogo, ela até que gosta. Que bela intuição de Helen: ela não diria que a filha fosse intuitiva. O que lhe salta aos olhos agora é a facilidade com que vestem as respectivas personagens de 30 anos atrás, quando jogavam baralho, personalidades que ela julgava descartadas desde o momento em que escaparam uns dos outros: Helen, afoita e doidivanas; John, um tantinho obstinado, um tantinho previsível e, ela mesma, surpreendentemente competitiva, tendo-se em conta que estes dois são sangue do seu sangue, tendo-se em conta que o pelicano seria capaz de dilacerar o próprio peito para dar de comer aos filhotes. Se estivessem jogando a dinheiro, ela estaria levando o dinheiro deles às braçadas. O que isso diz sobre ela? O que isso diz sobre eles três? Que o caráter é imutável, intratável -ou simplesmente que as famílias, as famílias felizes, seguem unidas por um repertório de jogos que se jogam atrás de máscaras? "Ao que parece, meus poderes não definharam", comenta ela, depois de mais uma rodada vencida. "Perdão, que grosseria." Mentira, é claro. Ela não está nada constrangida; está triunfante. "É curioso notar quais poderes se conservam ao longo dos anos e quais se começa a perder." O poder que ela conserva, o poder que está exercendo nesse instante, é o de visualização. Sem o menor esforço mental, ela pode ver as cartas nas mãos dos filhos, cada uma delas. Ela pode ver através de suas mãos, de seus corações. "E quais poderes a senhora sente que está perdendo, mãe?", pergunta o filho, cautelosamente. "Estou perdendo", ela responde alegremente, "o poder do desejo". Pediu, levou. "Eu não diria que o desejo tem poder", responde John, combativo, assumindo a batuta. "Intensidade, talvez. Voltagem. Mas não poder, potência de motor. O desejo pode fazer com que se queira escalar uma montanha, mas não leva ninguém até o topo." "E o que o levaria até o topo?" "Energia. Combustível. O que você armazenou de antemão." "Energia. Quer conhecer a minha teoria da energia, a energética de uma pessoa velha? Não se angustiem, não há nada de pessoal ou constrangedor nem de metafísico, nada disso. Uma teoria tão material quanto possível. Aqui vai. À medida que envelhecemos, todas as partes do corpo se deterioram ou sofrem entropia, até a última célula. É isso que significa envelhecer, de um ponto de vista material. Mesmo quando ainda são saudáveis, as células velhas têm uma coloração outonal (confesso que é uma metáfora, mas um toque de metáfora aqui e ali não torna a coisa metafísica). Isso vale também para as muitas e muitas células do cérebro. Assim como a primavera é a estação que olha adiante para o verão, o outono é a estação que se volta para trás. Os desejos concebidos por células nervosas no outono são desejos outonais, nostálgicos, recobertos de memória. Já não têm o calor do verão; a intensidade que lhes resta é multivalente, complexa, voltada mais para o passado que para o futuro. Pois bem, é isso minha contribuição à neurologia. O que acham?" "Eu diria que é uma contribuição", responde o filho diplomático, "menos à neurologia que à filosofia da mente, ao ramo especulativo dessa filosofia. Por que não dizer simplesmente que você anda de ânimo outonal e pronto?". "Porque se fosse apenas um estado de ânimo, ele mudaria, como os estados de ânimo costumam mudar. O sol nasceria, meu ânimo ficaria mais luminoso. Mas há estados de alma mais profundos que os ânimos. "Nostalgie de la boue", por exemplo, não é um estado de ânimo, é um estado do ser. O que eu me pergunto é o seguinte: a "nostalgie de la boue" [nostalgia da lama] diz respeito à mente ou ao cérebro? Minha resposta é: ao cérebro. O cérebro, cujas origens estão na sujeira, na lama, no limo primordial ao qual, no ocaso, ele anseia retornar. Um anseio material que emana das próprias células. Um instinto de morte mais profundo que o pensamento."

"Aquela que chora"
Tudo soa muito bem, tudo soa exatamente como o que é, conversa fiada, sem contudo parecer maluco. Mas não é isso o que ela está pensando. Ela está pensando: "Quem falaria assim para os próprios filhos, filhos que talvez não se volte a ver?". Também está pensando: "Justamente o tipo de idéia que ocorreria a uma mulher em seu outono. Tudo o que eu vejo, tudo o que eu digo está marcado por esse olhar para trás. O que sobrou para mim? Eu sou aquela que chora".
"É com isso que você anda se ocupando ultimamente, neurologia?", diz Helen. "É sobre isso que anda escrevendo?"
Pergunta estranha, intrusiva. Helen nunca fala do próprio trabalho. Não chega a ser um assunto tabu, mas certamente fora dos limites demarcados.
"Não", diz ela. "Ainda me confino à ficção, podem ficar aliviados. Ainda não desci ao ponto de apregoar minhas opiniões por aí. "As Opiniões de Elizabeth Costello", edição revista."
"Um novo romance?"
"Não, romance, não. Contos. Quer ouvir um deles?"
"Quero, sim. Faz muito tempo que você não nos conta nada."
"Muito bem, uma história de ninar. Era uma vez, em outros tempos, mas ainda em nossos tempos, um homem que viaja para uma outra cidade, para uma entrevista de emprego. Inquieto no quarto de hotel, sentindo-se pronto para uma aventura, sentindo sabe-se lá o quê, ele telefona para uma garota de programa. A garota chega e passa um tempo com ele. Ele faz com ela o que não consegue fazer com a mulher; pede coisas a ela. No dia seguinte, a entrevista corre bem. Oferecem o emprego, ele aceita e, a certa altura do conto, ele se muda para a cidade. Entre as pessoas no novo escritório, trabalhando como secretária, funcionária ou telefonista, ele reconhece a garota, a garota de programa, e ela o reconhece."
"E?"
"Não posso contar mais."
"Mas isso não é um conto, são só as fundações de um conto. A história não fica completa se você não contar o que vem depois."
"Ela não precisa ser uma secretária. Oferecem o emprego ao sujeito e ele aceita e se muda para a cidade e no devido momento vai visitar uns parentes, um primo que ele não vê desde criança ou um primo da mulher. A filha do primo vem até a sala e não é outra senão a garota do hotel."
"Continue. O que acontece depois?"
"Depende. Talvez não aconteça mais nada. Talvez este seja daquele tipo de conto que termina assim de repente."
"Tolice. Depende do quê?"
Agora é John que fala. "Depende do que aconteceu entre eles no quarto de hotel. Depende do que você diz que ele pediu. Você chega a dizer, mãe, o que foi que ele pediu?"
"Digo, sim."
Agora os três ficam calados. O que o homem recém-empregado vai fazer ou o que a garota com um pé na prostituição vai fazer recua e se torna insignificante. A história de verdade se passa na sacada, onde dois filhos de meia-idade enfrentam uma mãe cuja capacidade de perturbá-los e consterná-los ainda não se extinguiu. "Eu sou aquela que chora."
"Você vai nos dizer o que ele pediu a ela?", pergunta Helen, severa, uma vez que não há nada mais a perguntar.
Está tarde, mas não tarde demais. Já não são crianças, nenhum deles. Para bem ou para mal, estão todos juntos no mesmo barco furado da vida, à deriva, sem ilusões de resgate num mar de escuridão indiferente (que metáforas ela está inventando hoje!). Conseguirão viver juntos sem se devorarem mutuamente?
"Pediu coisas que um homem pede a uma mulher e que eu acharia chocantes. Talvez não pareçam chocantes a vocês, de uma geração diferente. Talvez o mundo tenha navegado adiante e me deixado para trás, deplorando numa praia qualquer. Talvez seja esse o coração da história: enquanto o homem mais velho se ruboriza diante da moça, para a moça o que aconteceu no quarto de hotel é apenas parte do trabalho, do jeito que as coisas são, da vida. "Sr. Jones... Tio Harry... Como vai?"."
Os dois filhos que não são mais crianças se entreolham. "Será que é só isso?", parecem se dizer. "Nada demais."
"A moça da história é muito bonita", diz ela. "Uma verdadeira flor. Isso eu posso revelar. O sr. Jones, ou tio Harry, nunca se envolveu com esse tipo de coisa antes, com a humilhação, a destruição da beleza. Não era esse o plano quando ele fez o telefonema. Ele não se julgaria capaz de uma coisas dessas. Só pensou nisso quando a moça apareceu e ele viu que ela era uma flor, como eu disse. Pareceu uma afronta que ele tivesse passado a vida inteira longe disso, da beleza, e que provavelmente tivesse que viver sem isso dali para a frente também. "Um universo sem justiça!", ele deve ter exclamado em seu íntimo, antes de seguir adiante com a sua decisão amarga. Não é absolutamente um grande sujeito."
"Mãe", diz Helen, "eu pensei que você tivesse suas dúvidas sobre a beleza, sobre a importância da beleza. Coisa de somenos, como você disse".
"Eu disse isso?"
"Mais ou menos."
John se inclina e põe a mão sobre o braço da irmã. "O homem da história", diz ele, "o tio Harry, o sr. Jones, ainda acredita na beleza. Ainda está sob o encanto. É por isso que ele a odeia e luta contra ela."
"É isso o que você quer dizer, mãe?", diz Helen.
"Não sei o que eu quero dizer. Ainda não escrevi o conto. Em geral eu resisto à tentação de falar sobre um conto até que estejam em pé. Agora eu sei por quê." Embora a noite esteja morna, ela se arrepia de leve. "Muita interferência."
"Em pé", diz Helen.
"Deixe pra lá."


"E quais poderes sente que está perdendo, mãe?" "Estou perdendo o poder do desejo'


"Isso não é interferência", diz Helen. "Vindo de outras pessoas, até poderia ser interferência. Mas nós estamos com você. Você sabe disso, não sabe?"
"Com você?" Que tolice. Os filhos estão contra os pais, não com eles. Mas esta é uma noite especial numa semana especial. É muito provável que os três não voltem a se reunir, não nesta vida. Talvez, desta vez, devessem superar a si mesmos. Talvez as palavras da filha venham do coração, do fundo do coração, de verdade, não de mentira. "Estamos com você". E a própria disposição dela a acolher essas palavras -talvez isso também venha do fundo do coração.
"Então me diga o que eu devo escrever", diz ela.
"Abraçá-la", diz Helen. "Na frente de toda a família, deixe-o abraçar a moça. Pouco importa que pareça estranho. "Perdoe-me pelo que eu fiz você passar", deixe-o dizer isso. Faça-o ficar de joelhos na frente dela. "Vou adorar em você toda a beleza do mundo." Ou algo do gênero."
"Isso é muito decadentismo irlandês", ela murmura, "muito Dostoiévski. Não sei se tenho isso no meu repertório."
É o último dia de John em Nice. Na manhã seguinte, bem cedo, ele vai partir para a conferência em Dubrovnik, onde parece que vão discutir o tempo antes do início do tempo, o tempo depois do fim do tempo.
"Tempos atrás eu era apenas um menino que gostava de olhar no telescópio", ele diz a ela. "Agora tenho que me transformar em filósofo. Talvez até em teólogo. Uma mudança de vida e tanto."
"E o que você espera ver", diz ela, "quando olhar com o telescópio para o tempo antes do tempo?"
"Não sei", diz ele. "Talvez Deus, que não tem dimensões. Escondido ali."
"Eu bem que gostaria de vê-lo também. Mas acho que não serei capaz. Mande um alô da minha parte. Diga que eu apareço um dia desses."
"Mãe!"
"Desculpe. Mas tenho certeza de que você sabe que Helen sugeriu que eu comprasse um apartamento aqui em Nice. É uma idéia interessante, mas não acho que eu vá aceitar. Ela diz que você também tem uma proposta a fazer. Essas propostas são de virar a cabeça. É como ser cortejada de novo. Mas o que é que você propõe?"
"Que você venha e fique conosco em Baltimore. A casa é grande, tem espaço de sobra, estamos aprontando um banheiro novo. As crianças vão adorar. Ter a avó por perto seria bom para elas."
"Elas podem até gostar da idéia enquanto têm nove e seis anos. Não vão gostar tanto assim quando tiverem 15 e 12 e trouxerem amigos para casa e a vovó estiver arrastando as chinelas na cozinha, falando sozinha e estalando a dentadura e quem sabe com um cheiro não muito bom. Obrigado, John, mas não."
"Você não precisa decidir agora. A oferta está de pé. Vai estar sempre de pé."
"John, não estou em situação de dar lições, agora que a Austrália se esfalfa para fazer o que o patrão americano manda. Mesmo assim, pense que você está me pedindo para deixar o país em que eu nasci para fixar residência nas entranhas do Grande Satã e que eu talvez tenha algumas reservas a respeito."
Ele, o filho, se detém, e ela se detém a seu lado. Ele parece estar ponderando as palavras dela, aplicando-lhes o amálgama craniano de pudim e geléia que lhe foi legado 40 anos atrás e cujas células não estão cansadas, ainda não, vigorosas o bastante para lidar com idéias grandes ou pequenas, o tempo antes do tempo, o tempo depois do tempo e o que fazer com uma mãe que envelhece.
"Venha assim mesmo", diz ele, "apesar das suas reservas. Está certo, esta não é a melhor hora, mas venha assim mesmo. Por espírito de paradoxo. E, se a você quiser aceitar uma pequena, uma levíssima palavra de repreensão, cuidado com as grandes declarações. Os Estados Unidos não são o Grande Satã. Aqueles malucos na Casa Branca são apenas um ponto na história. Vão ser despejados e tudo vai voltar ao normal."
"Quer dizer que eu posso deplorar, mas não posso denunciar?"
"Santimônia, mãe, é disso que estou falando, o tom e o espírito de santimônia. Imagino que, depois de uma vida inteira pesando cada palavra antes de escrever, deve ser tentadora a idéia de se soltar e se deixar levar pelo espírito; mas isso deixa um gosto ruim. Você deveria ficar atenta."
"O espírito de santimônia. Vou levar em conta. Vou pensar a respeito. Você chama aqueles homens de malucos. Eles não me parecem nada malucos. Ao contrário, eles parecem espertos demais, lúcidos demais. E com ambições mundiais. Querem mudar o curso do navio da história ou, se não puderem, ao menos afundá-lo. A imagem é grandiloqüente demais? Deixa um gosto ruim. Quanto a paradoxos, até onde sei a primeira lição paradoxal reza que não se deve confiar num paradoxo. Se confiar num paradoxo, o paradoxo vai decepcionar você."
Ela toma o braço dele; retomam a caminhada em silêncio. Mas nem tudo está bem entre os dois. Ela pode sentir a tensão, a irritação dele. Uma criança embirrada, recorda ela. Tudo parece estar de volta, as horas que ela gastava para adulá-lo depois de uma birra. Uma criança soturna, filho de pais soturnos. Como ela poderia pensar em buscar abrigo com ele e com aquela nora opiniática de lábios apertados?
Pelo menos, pensa ela, não me tratam como uma tola. Pelo menos os meus filhos me fazem essa honra.
"Basta de briga", diz ela (estará adulando?, estará suplicando). "Não vamos estragar o dia falando de política. Aqui estamos nós, na beira do Mediterrâneo, o berço da Velha Europa, numa noite suave de verão. Só quero dizer que, se você e a Norma e as crianças não agüentarem mais os Estados Unidos, a casa em Melbourne é toda sua, como sempre foi. Podem vir como visitas, podem vir como refugiados, podem vir para "réunir la famille", como diz a Helen. E, agora, o que me diz de pegar a Helen e caminhar até aquele restaurantezinho dela na avenue Gambetta e ter um bom jantar de despedida?"

Tradução de Samuel Titan Jr.


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