São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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+ inédito

UMA MULHER ENVELHECE

Samuel Titan Jr.
especial para a Folha

Num de seus ensaios, Thomas de Quincey [1785-1859] lamenta o uso moderno do termo "simpatia", transformado em mero sinônimo de "piedade": sentimos "simpatia por outrem", quando mais valeria preservar o sentido original de um esforço imaginativo e intelectual que penetra e recria os sentimentos e ânimos alheios -"simpatia com outrem". A romancista australiana Elizabeth Costello, alter ego do sul-africano J.M. Coetzee, assinaria embaixo. Em sua estréia como personagem de ficção, no livro "A Vida dos Animais" (1999, Cia. das Letras), ela desconcerta sua platéia acadêmica ao deplorar nossa incapacidade em estender os limites da simpatia, em sentido estrito, às espécies animais, numa linha de argumento que, presume-se, há de valer para os demais seres humanos.
O assunto não podia ser mais crucial e problemático para um(a) romancista, que deve em princípio exercer essa faculdade "simpatizante" com todas as suas criaturas. E a coisa se complica quando se trata de um romancista imaginando a vida de uma colega de ofício, tentando captá-la por inteiro, com todo o seu brilho e toda a sua amargura. É o que Coetzee faz em "Elizabeth Costello", romance de 2003: as conferências do livro anterior figuram ao lado de outros capítulos em que o autor ensaia viver na pele de sua amarga heroína. "Ensaio", aliás, é bem o termo para descrever a ficção do sul-africano, Prêmio Nobel de Literatura do ano passado.
Seus romances vivem menos de tramas cerradas que do esforço paciente de sondagem imaginativa da vida contemporânea; não são mundos paralelos, são hipóteses, às vezes perturbadoras. Coetzee escreve no presente do indicativo como quem escreve "suponhamos que...". Daí também a liberdade de revisitar sua Elizabeth Costello em contextos e abordagens diversas: conferencista polêmica, escritora de sucesso, personagem de romance ou simplesmente mulher que envelhece, como neste conto, capítulo ou posfácio publicado no "New York Review of Books". Nesta crônica de um desencontro familiar, as armas de Costello voltam-se contra ela mesma: mais ferina e ardilosa que os filhos, ela agora lança mão da inteligência e da capacidade fabulatória (como na terrível história-dentro-da-história) para se furtar à aproximação dos filhos para se pôr, justamente, ao largo da simpatia alheia.


Samuel Titan Jr. é professor no departamento de teoria literária e literatura comparada da USP.


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