São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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+3 questões Sobre viagem

1. Existe um imaginário específico sobre as viagens na tradição ocidental?
2. O mundo global amplia ou estreita a experiência da viagem?
3. É sintomático que, na gíria juvenil, "viajar" seja sinônimo de se equivocar?


Mary del Priore
responde

1.
Sim. Nessa tradição, a viagem celebra o reencontro do homem com o imprevisto, permitindo-lhe romper os ritos sufocantes do cotidiano e arrancando-o de sua quietude. No Renascimento, graças a Colombo e a seus epígonos, o mundo europeu descobriu a liberdade e o infinito ao alcance de suas embarcações, se lançando na iniciativa de fazer da viagem uma empresa de conquista e de descoberta. A seguir, "Viagem à Lua", de Cyrano de Bergerac, e as "Aventuras de Gulliver", de Swift, nos introduziram às viagens imaginárias e simbólicas. No século 20, de Conrad a Lawrence, de Malraux a Lévi-Strauss, a obsessão por se deslocar entre outros mundos açodou os espíritos, colocando em questão as diferenças de cultura. No interior desse imaginário, viajar é imergir no mundo, é ver se dissolver pelos caminhos o sentimento de pertença, é trilhar com prazer um espaço de liberdade, é, por fim, maravilhar-se ou horrorizar-se com o Outro.

2.
Nele, é preciso distinguir viajantes e turistas. Os primeiros buscam a diversidade. Os segundos, o idêntico, ou seja, hotéis, comida e TV a cabo que os conduza, pelos caminhos da globalização, de volta às origens. Para esses, os cenários devem se congelar pelas lentes da filmadora numa espécie de turismo ocular. O turista obedece às leis de uma sociedade capaz de produzir bens de consumo correspondentes à lógica de mercado em que nada se cria. Tudo se compra. Afinal, o que ele perde em termos de conhecimento lhe é vendido em objetos: em suvenir. O viajante se apropria de experiências que lhe permitam compreender de onde uma sociedade tira substância para sua inteligência. Alheio a essa possibilidade, o turista só vê na viagem uma compensação contra a mediocridade de seu dia-a-dia. Logo, viajantes ampliam e turistas reduzem a experiência da viagem.

3.
Tal advertência não é privilégio dos jovens. Marcel Proust, em "A Prisioneira", já admoestava sobre as falsas viagens, dizendo que "a única verdadeira viagem (...) não é a de ir ao encontro de novas paisagens, mas a de ter outros olhos".


Jean Marcel Carvalho França
responde

1.
Por certo que sim. Desde os áureos tempos da expansão marítima, viajar confunde-se com a experiência do novo, do diferente. Nesse primeiro momento, tal experiência chegou a pôr em xeque as "certezas" que povoavam a cultura do Velho Mundo. Prova disso é o renomado capítulo "Dos Canibais", contido nos "Ensaios" de Montaigne. É visível aí que a descoberta do Novo Mundo, mundo habitado por homens aparentemente felizes, mas que viviam "sem conhecimento de nenhum deus, sem inquietude de espírito e sem nenhuma religião", levou o pensador a pôr em causa os valores do seu tempo e a inaugurar, de certo modo, um raciocínio que hoje nos parece familiar, a saber: aquilo que escapa ao nosso modus vivendi não é necessariamente bárbaro e desprovido de racionalidade. É inegável que, de lá para cá, por incrível que possa parecer, a cultura ocidental perdeu muito de sua salutar insegurança e relativismo.
Todavia, por mais confiança que o universalismo racionalista do Ocidente tenha imprimido às nossas convicções, o viajar guarda ainda muito daquela experiência do novo vivida pelos primeiros exploradores e, consequentemente, guarda também algo daquela possibilidade de, diante das paisagens, hábitos e costumes alheios, ver cair por terra muitas certezas que temos sobre o que é o mundo e qual a melhor maneira de estar nele.

2.
Julgo que a tal globalização recoloca a experiência da viagem. Primeiramente, o conhecimento do mundo que as novas tecnologias da informação põem ao dispor do homem contemporâneo esvazia muito a possibilidade de ele, ao viajar (física ou virtualmente), deparar com algo realmente "diferente", que mexa com os seus valores. Complementarmente, hoje é possível viajar, no sentido virtual, sem se deslocar, o que reduz bastante o nosso isolamento (a nossa "caipirice", como gosta FHC), amplia em muito as possibilidades que temos de aceitar melhor as múltiplas variantes do humano e ensina-nos a conviver mais pacificamente com elas.

3.
De certo modo, viajar sempre foi e sempre será se equivocar. Afinal, trata-se, na maioria das vezes, de apreender de maneira rápida e grosseira realidades sobre as quais sabemos pouco ou quase nada. Há coisa mais equivocada do que as "sábias e certas" opiniões que tem um turista sobre um país qualquer por ele visitado? Como sugere o historiador Fernand Braudel, viajar talvez seja se equivocar sobre o outro e apreender, com o distanciamento e com a comparação, algo mais sobre nós próprios.

Quem são

Mary del Priore
É professora de história na USP, organizadora de "História das Mulheres no Brasil" (Contexto) e autora de "Ao Sul do Corpo" (José Olympio) e "Esquecidos por Deus" (Companhia das Letras), entre outros.

Jean M. Carvalho França
É doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).



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