São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade

Amparado na consolidação do capitalismo, o avanço da democracia foi o grande trunfo do século 20 e desmente previsões pessimistas para os próximos anos

Bons ventos te tragam, século 21

Luiz Carlos Bresser Pereira
especial para a Folha

Sei que a expressão é antiga, mas é a que mais bem expressa meu pensamento neste início de século. Os países enfrentarão imensas dificuldades, mas a descrença no progresso, que caracterizou o século 20, será mais uma vez desmentida. A combinação do velho, mas sempre renovado, capitalismo com a historicamente nova democracia, fundada na liberdade e no debate público, renova minha confiança no futuro.
Se o século 19 foi o tempo da revolução capitalista industrial, da burguesia, do liberalismo e do avanço dramático da ciência, que levou suas elites a estabelecerem uma firme crença no progresso, o século 20 foi o século da revolução democrática, da emergência da classe média profissional ou burocrática nas grandes organizações privadas e da emancipação das mulheres. Foi também um século de conquistas científicas e tecnológicas extraordinárias, que aumentaram as possibilidades de vida e de conhecimento da humanidade de forma sem precedentes. E no entanto terminamos o século confusos e desorientados, destituídos da crença no progresso humano. Por que tal pessimismo? Como é possível imaginar o século 21?
A perda da confiança no progresso foi muito mais causada pelo excesso de expectativas do que pela parcimônia das realizações. Sob qualquer ângulo que se queira examinar, o progresso no século 20 foi extraordinário. Os padrões de vida são hoje muito mais elevados do que o eram no final do século 19 em todo o mundo, exceto na África subsaariana; as condições de saúde são melhores, e a expectativa de vida, muito maior; os índices de alfabetização e a proporção dos jovens que completam cursos superiores aumentaram de forma dramática; a segurança na velhice cresceu; o nível de liberdade política das nações e das pessoas nunca foi tão elevado; os riscos de guerra mundial se reduziram.
Entre os objetivos políticos a que se propõem as sociedades contemporâneas apenas um deles -a igualdade- não avançou: se o capitalismo e os mercados globais promoveram o crescimento econômico, provocaram também concentração de renda entre as nações e entre os indivíduos. Terão sido as guerras e a concentração de renda que tornaram as elites tão pessimistas? Ou terá sido devido à pobreza e à miséria que ainda caracterizam grande parte da humanidade? Ou porque a injustiça e a falta de garantia dos próprios direitos civis -os direitos à liberdade e ao respeito- são a realidade do dia-a-dia dos milhões de pobres do final de século?
O século 20 foi marcado por guerras terríveis, mas as perspectivas de que elas se repitam são cada vez menores. As três grandes nações européias que durante tantos séculos guerrearam entre si se uniram na União Européia, principalmente para evitar novas guerras. As Nações Unidas, no plano político, e a Organização Mundial do Comércio, no plano econômico, apesar de todas as suas limitações, constituem fóruns como nunca houve antes para resolver de forma pacífica questões internacionais.
Por outro lado, a concentração de renda ocorrida nos últimos 20 anos não é inevitável nas sociedades capitalistas desde que democráticas. O aumento da desigualdade é uma característica dos primeiros estágios do capitalismo, quando ocorre a acumulação primitiva de capitais, mas em seguida ocorreu, nos países capitalistas, um lento, mas efetivo processo de redução das desigualdades de renda. Isto não se deveu à dinâmica do próprio capitalismo, que é concentrador, mas aos avanços da democracia e da capacidade de reivindicação dos trabalhadores.
Entretanto essa expectativa de maior igualdade frustrou-se no final do século 20, quando se verificou forte concentração de renda. Três fatores se conjugaram negativamente nesse momento: de um lado, a relativa paralisia do Estado em sua ação de compensar as injustiças do mercado -paralisia provocada pela crise fiscal e pela globalização; de outro lado, a aceleração dramática do desenvolvimento tecnológico promoveu uma demanda de técnicos e administradores especializados maior do que a sua oferta, enquanto reduzia relativamente a demanda de trabalhadores não-especializados. Terceiro, reformas orientadas para o mercado, que haviam se tornado necessárias devido ao crescimento distorcido do Estado, foram utilizadas de forma ideológica e radical nos países em desenvolvimento, agravando a concentração.

Aspirações e frustrações Não foi a falta de realizações, mas o nível excessivamente elevado de aspirações ou esperanças e as inevitáveis frustrações decorrentes que explicam o pessimismo. A inesperada e forte concentração de renda dos anos recentes foi apenas uma dessas frustrações. Listo, em seguida, outras. Os internacionalistas acreditaram que o progresso significava a garantia da paz universal, mas viram suas esperanças serem rejeitadas já em 1914 e, em seguida, em 1940.
Os positivistas e neopositivistas, desde o final do século 19, se entusiasmaram com o desenvolvimento científico, mas logo viram as teorias da própria física serem relativizadas.
Os socialistas imaginaram poder realizar seus sonhos e viram na Revolução Russa, em 1917, um sinal dos novos tempos, mas aqueles que eram de fato socialistas, e não meros burocratas estatistas, começaram a desconfiar já nos anos 30, viram confirmadas suas desconfianças na repressão à revolta húngara de 1956 e, afinal, assistiram à derrocada do regime soviético.
Os jovens imaginaram, nos anos 60, que poderiam mudar radicalmente a ordem das coisas por meio do seu desejo e de sua experiência pessoal de vida, mas logo descobriram que essa ordem é muito mais sólida do que imaginavam.
Os ambientalistas lograram colocar o problema do ambiente na agenda das nações civilizadas, mas o problema do aquecimento global continua sem solução satisfatória.
Os economistas supuseram, nos 40 e 50, que por meio da industrialização os países em desenvolvimento convergiriam para os níveis de renda por habitante dos países ricos, mas viram suas previsões serem desmentidas. Imaginaram também que a forma por excelência por meio da qual essa industrialização seria alcançada seria por meio de financiamento externo, mas este afinal se transformou em principal causa da crise e da quase estagnação das economias latino-americanas.

Capitalismo e democracia
O século 20 terminou com dois vitoriosos: o capitalismo e a democracia. Será que essa dupla afirmação legitima o pessimismo? A vitória do capitalismo sobre o estatismo significou apenas que não há alternativa para a organização da economia senão aquela ditada pelas leis do mercado. Está claro, porém, que há muitos capitalismos possíveis, não cabendo a imposição de um modelo único.
As elites econômicas e intelectuais nos países ricos interpretaram essa vitória como apontando para reformas liberais. A superação do subdesenvolvimento estaria em exportar capitais e instituições (reformas) para os países em desenvolvimento por meio do sistema financeiro internacional, das empresas multinacionais e das agências internacionais sediadas em Washington.
Ora, ao fazerem tais suposições, ignoravam que as transferências de capitais de empréstimos são onerosas e instáveis, que os investimentos de capitais de risco, embora mais estáveis, não envolvem senão marginalmente transferência de tecnologia e que a "exportação" de instituições é uma tarefa inglória, quando não simplesmente perniciosa. A não ser em casos especiais, a tarefa de modernização de um país depende da iniciativa do próprio país de "importar" e adaptar tecnologias e instituições, e não da pressão dos países ricos e de seus técnicos não-responsabilizáveis por seus conselhos e "condicionalidades".
Já a vitória da democracia, embora não assegure solução mágica para os problemas de países, é um fato novo da maior importância: significa para todos perspectivas concretas de paz, de prosperidade e de justiça social que não existiam antes. A democracia é o regime político que, além de garantir a liberdade, permite que a cegueira do mercado seja corrigida. O capitalismo é o governo das forças do mercado e das mercadorias, a democracia é o governo dos seres humanos transformados em cidadãos. O Estado democrático possui instituições que garantem a liberdade e o bom funcionamento dos mercados e conduz à eleição de governos que eventualmente promovem a ação corretiva do Estado com vista ao desenvolvimento econômico e a justiça social.
A democracia só se tornou realmente dominante como regime político quando, com o capitalismo, as classes dominantes não precisaram mais recorrer à força direta para se apropriar do excedente. A partir daí as reivindicações populares pela democracia se tornaram irresistíveis, ao mesmo tempo em que as novas instituições democráticas se revelavam superiores aos regimes autoritários, não apenas em promover a justiça, mas em garantir a própria ordem social e o desenvolvimento econômico. Ao contrário do que ocorria nos regimes autoritários, no regime democrático o bom governo e a boas instituições não dependem da sorte de contarmos com monarcas ou elites iluminadas, mas se tornam o resultado intrínseco e inerente ao debate público que se realiza no nível da sociedade civil.
O progresso que continuou a ocorrer durante o século 20 e a afirmação da democracia como valor universal que aconteceu nesse século são duas boas razões para que digamos "bom ventos te tragam, século 21". Mas esse otimismo básico não pode nos levar à condescendência. Nada é mais necessário hoje do que a crítica indignada contra a injustiça das instituições, o auto-interesse e a incompetência dos governantes. É por meio dessa crítica e do debate público realizado no nível da sociedade civil e dos parlamentos que a governança democrática se afirmou no século 20 e dará frutos melhores no novo século.


Luiz Carlos Bresser Pereira é professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de "Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil" (ed. 34), entre outros.


Texto Anterior: + brasil 501 d.C. - José Arthur Giannotti: A questão do socialismo
Próximo Texto: + política: A dinâmica dos conflitos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.