São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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O corpo molecular

Decifração do genoma humano, realizada no ano passado, muda para sempre a biologia e traz novas percepções dos enigmas filosóficos, como o livre-arbítrio por Matt Ridley

Imagine que um dia pouse na Terra uma nave espacial carregando 1 milhão de pedaços de papel, cada qual portando trechos de uma escrita desconhecida. Os melhores cérebros do mundo são encarregados de decifrar o código, o que demora cerca de dez anos. Mas desamassar todas as páginas, traduzi-las para o inglês, separá-las e publicá-las como um imenso livro demoraria outros 40 anos.
Por fim, nos sentaríamos para ler o livro. Ele contém histórias sobre o passado, o presente e o futuro da humanidade, da origem da vida à cura do câncer.
A história soa extraordinária. Mas foi essencialmente isso o que aconteceu este ano. Depois de 50 anos de preparação, nós subitamente nos vimos em posição de ler toda a história genética dos seres humanos, o genoma.
Em 26 de junho, Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano, e Craig Venter, presidente da Celera Genomics, anunciaram juntos que haviam completado a leitura de um "sumário básico" do genoma humano, o conjunto completo do DNA da espécie. O anúncio surgiu pelo menos dois anos antes do esperado, e foi um final extremamente disputado de uma maratona científica.
Os cientistas do Projeto Genoma Humano vinham trabalhando na seqüência genética humana completa desde o final dos anos 80. No começo de 1998, com menos de 10% do projeto concluído, os cientistas previam que mais sete anos de trabalho seriam precisos. Mas Venter anunciou, então, que assumia o compromisso de concluir o projeto em 2001, usando fundos privados.
Já por duas vezes no passado ele havia cumprido promessas igualmente dramáticas. Em 1991, inventou uma maneira rápida de localizar genes humanos, usando rótulos de sequências expressas, depois que os principais cientistas do Projeto Genoma Humano disseram que isso não funcionaria.
Em 1995, ele inventou uma nova técnica de sequenciamento "forçado" de DNA e leu o genoma completo de bactérias, enquanto os cientistas mais tradicionais continuavam a considerar que a técnica não era viável.
De modo que a ameaça de Venter era séria. O Projeto Genoma Humano reorganizou seus esforços e a corrida começou. No final, ambos os projetos anunciaram juntos que haviam concluído uma versão básica da sequência em junho passado.

Nova biologia O anúncio foi o início de uma maneira completamente nova de compreender a biologia humana. Tudo que laboriosamente descobrimos até agora sobre como nossos corpos funcionam será apequenado pelo conhecimento que o genoma pode nos fornecer.
No entanto, a maior parte das pessoas não vê o genoma nesse termos. Elas querem saber como ele ajudará a curar o câncer, especulam sobre medicina personalizada, com remédios projetados para os indivíduos, não para a população. Preocupam-se com a possibilidade de que isso redunde em bebês "de estilista" para os ricos, ou em uma perda de respeito para com os deficientes. Elas temem o patenteamento de genes por empresas privadas. Prevêem que seguros médicos deixarão de ser oferecidos pelas seguradoras àqueles cujos riscos genéticos sejam conhecidos e elevados.
São todas questões reais. Mas uma verdade filosófica maior passa despercebida. O genoma é um acréscimo de conhecimento sem precedentes para a humanidade, e as suas implicações vão bem além da medicina. Ele nos promete informações novas sobre o nosso passado como espécie, e novas percepções sobre dilemas filosóficos, o maior dos quais é o enigma do livre-arbítrio.
Fomos iludidos e levados a pensar que a genética tem a ver com distúrbios de saúde. Os geneticistas até agora se concentraram nos genes ligados a doenças: primeiro as doenças hereditárias simples, mas raras, como a fibrose cística (cujo gene está no cromossomo 7) ou o mal de Huntington (cromossomo 4) e, a seguir, nas doenças ambientais às quais pessoas herdam diferentes suscetibilidades, como o mal de Alzheimer (cromossomo 19) ou o câncer de mama (cromossomos 13 e 17).
Mais recentemente, eles começaram a procurar pelos genes que afetam o nosso comportamento, conduzindo-nos à dislexia (no cromossomo 6), ao homossexualismo (talvez no cromossomo X), ao espírito de aventura (no cromossomo 11) ou até mesmo à alta religiosidade (não localizado ainda).
Com o genoma em mãos, poderemos ver os genes em um contexto melhor: poderemos estudar como e por que todos os seres humanos herdam um senso musical, em lugar de determinar que algumas pessoas são mais musicais do que outras.
Genes são janelas para o passado. Alguns deles refletem a história das doenças infecciosas em diferentes tribos. Os grupos sanguíneos A e B (localizados no cromossomo 9) protegem contra o cólera. As mutações da fibrose cística e de Tay-Sachs (15) podem proteger contra a tuberculose. As mutações da anemia falciforme (11) e da talassemia (16) protegem contra a malária. Daí a prevalência dessas mutações em certos povos.
Outros genes contam histórias de resposta cultural. O fato de que os adultos europeus têm tolerância quase duas vezes maior que a dos asiáticos à lactose no leite reflete uma história muito mais longa de pecuária no Ocidente. A capacidade de reduzir o hidrogênio do álcool (no cromossomo 4) é mais comum em povos com antecedentes de consumo de bebidas fermentadas. A prevalência do gene de cabelos loiros nos jovens da Europa Setentrional (talvez no cromossomo 15) pode refletir uma preferência por parceiros jovens.

Genes manipuladores A ciência tem por hábito tratar de problemas apresentados pela filosofia. Pode não ser exagero dizer que o mistério do livre-arbítrio foi reformulado diante das novas descobertas genéticas, que expuseram o mito de que os genes são os titereiros e nós, as suas marionetes.
Tome, por exemplo, as várias mutações de aprendizado que foram descobertas nas moscas-da-fruta e subsequentemente em camundongos e seres humanos (cromossomos 2 e 16). Elas são localizadas em genes que são cruciais para a memória e para o aprendizado, muitos dos quais parte do sistema CREB do cérebro (sistema de resposta AMP cíclica e de ligação de proteínas). As mutações revelam que a cada vez que uma pessoa aprende alguma coisa, precisa ligar alguns desses genes para fixar novas conexões em suas células cerebrais.
Isso soa como uma questão tediosa de encanamento molecular. Mas, na verdade, é algo revolucionário para a filosofia. Ao tentar responder à questão sobre o livre arbítrio no homem, o filósofo David Hume se emaranhou no seguinte dilema: ou bem nossas ações são predeterminadas, caso em que não somos responsáveis por elas, ou bem resultam de eventos aleatórios, caso em que também não somos responsáveis por elas.
Mas os genes CREB demonstram como escapar a esse problema. Se os genes estão à mercê do comportamento mas o comportamento também está à mercê dos genes, nossas ações podem ser determinadas por forças que se originam dentro de nós bem como por influências externas. Portanto, nossa vontade é uma mistura de instintos e influências externas. Isso a torna determinista e responsável, mas não previsível.
Curiosamente, a história do livre-arbítrio nos conduz de volta ao câncer, que é onde todo o projeto do genoma começou. Os pesquisadores do câncer sugeriram o sequenciamento do genoma humano na metade dos anos 80. Estavam começando a compreender que o câncer era um processo inteiramente genético. Genético, mas não hereditário. A maior parte dos tumores não é hereditária, ainda que haja mutações bem conhecidas que aumentam a suscetibilidade ao câncer, como a BRCA1 e a BRCA2, associadas ao câncer de mama.
No entanto, o câncer não é uma doença dos genes. Como o livre-arbítrio, trata-se de um processo mediado pelos genes mas não causado por eles. Como os genes CREB da memória, as mudanças nos genes do câncer são consequência, e não causa, de efeitos ambientais.
A fumaça de cigarro, por exemplo, causa o câncer ao provocar mutações em genes humanos conhecidos como oncogenes, que encorajam as células a se multiplicar, e nos genes supressores de tumores, que as impedem de se multiplicar. Para se tornar maligno, um tumor precisa se desenvolver em pelo menos um oncogene que esteja emperrado na posição "ligado" e um supressor de tumores emperrado na posição "desligado".
Pouco admira que o presidente Clinton, ao anunciar o genoma em junho último, tenha dito que as pessoas um dia talvez usassem a palavra "câncer" apenas como referência ao signo astrológico e não à doença. Isso é ir longe demais, porque o câncer também é uma doença do envelhecimento. Sua incidência aumenta proporcionalmente à idade. Torná-lo mais fácil de curar só aumentará sua incidência.
Ainda assim, ao identificar os oncogenes e os genes supressores de tumores e descobrir como funcionam, o Projeto do Genoma Humano revolucionará o tratamento do câncer. Remédios baseados no mais famoso dos supressores de tumores (situado no cromossomo 17) já estão nos primeiros estágios de teste clínico.
O genoma humano abre um mundo de oportunidades médicas, promessas comerciais, perigos éticos e desafios sociais. É também uma cornucópia de possibilidades científicas à altura das revoluções propiciadas por Euclides, Copérnico, Newton, Darwin e Einstein.
É uma detonação adequada à abertura de um novo milênio.


Matt Ridley é o autor do livro "Genome: The Autobiography of a Species in 23 Chapters"

Copyright 2001 "Discover Magazine"

Tradução de Paulo Migliacci



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