São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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A morte do determinismo

por Mae-Wan Ho

A conclusão do mapeamento do genoma humano foi publicada na primeira metade de fevereiro (1). Mas representou uma decepção para os seus proponentes, a despeito dos enormes esforços para preservar as expectativas exageradas. Os cientistas se declaram "surpresos": o "livro da vida" tem apenas 30 mil genes. Craig Venter, cuja empresa, a Celera, estava na corrida contra um consórcio de pesquisa bancado por verbas públicas para completar primeiro o mapeamento, foi o único a perceber as implicações corretamente. O número de genes é muito inferior ao necessário para sustentar as extravagantes alegações feitas ao longo da última década quanto ao fato de que genes individuais determinam não só como nossos corpos são construídos e que doenças contraímos, mas também nossos padrões de comportamento, nossa capacidade intelectual, nossa preferência sexual e nossa eventual propensão à criminalidade.
"Nós simplesmente não temos genes suficientes para que essa idéia do determinismo biológico esteja correta", disse Venter. "A maravilhosa diversidade da espécie humana não é parte do nosso código genético. Os ambientes em que vivemos são cruciais." Muitos de nós vínhamos dizendo o mesmo décadas antes que o projeto do genoma humano ao menos tivesse concebido.
John Sulston, diretor do Sanger Centre, em Cambridge (Reino Unido), parte do consórcio público de pesquisa, tenta escapar do vexame apelando aos genes "executivos", que realizam trabalho "gerencial" muito sofisticado. "O que estamos fazendo é aumentar a variedade e a sutileza dos genes que controlam outros genes" (2). Mas isso conduz apenas à regressão infinita de termos de postular genes que controlam genes que controlam ainda mais genes. O que Sulston deveria ter acrescentado ao final de sua declaração seria a frase "que respondem ao ambiente". O determinismo genético está morto, e já está morto há pelo menos 20 anos (3).
Pior ainda, "mapear o genoma pode ser o caminho para o desastre", é a manchete de certo jornal (4). A excitação na indústria farmacêutica pode passar logo, de acordo com um relatório compilado pelas empresas de investimentos Lehman Brothers e McKinsey. O genoma humano poderia ser grande demais para que as empresas farmacêuticas e de biotecnologia o administrassem, e seria capaz de levar à falência do setor. A "sobrecarga de informação" custará muito mais do que se previa. O relatório se baseia em entrevistas com especialistas de todo o setor e conclui que "talvez a mais convincente e surpreendente das conclusões seja a de que a genômica ameaça não só elevar os custos de pesquisa e desenvolvimento associados, mas também o custo médio de cada novo remédio".
Eu já me referi à genômica humana como um buraco negro financeiro e científico, que engole todos os recursos públicos e privados sem retorno algum, quer para os investidores, quer na forma de melhora da saúde das nações (5). Agora que a bolha estourou, é hora de prestarmos atenção e repensarmos a saúde a sério.
O projeto de sequenciamento do genoma humano completo custou ao público US$ 3 bilhões nos Estados Unidos e centenas de milhões de libras no Reino Unido. Agora, os cientistas estão nos dizendo que esse é apenas o fim do começo, e que muito mais dinheiro será necessário antes que se possa produzir algo de concreto no terreno de curas milagrosas para o câncer, erradicação de doenças, aperfeiçoamento genético, terapia genética, medicina personalizada e prescrição de estilos de vida adaptados à nossa composição genética.
De fato, o governo britânico investirá pelo menos 2,5 bilhões de libras ao longo dos próximos cinco anos na genômica humana, em um esforço imprudente para identificar todos os genes que predispõem a população britânica a doenças (6). Isso em um momento no qual nosso sistema nacional de saúde está em crise financeira e outros aspectos de pesquisa e desenvolvimento na saúde vêm sendo dolorosamente negligenciados.

Benefícios para poucos Mas, mesmo que, contrariando todas as possibilidades, surjam resultados, eles ficarão além do alcance do contribuinte médio porque as empresas privadas já estão estabelecendo agressivamente seus direitos em relação ao genoma. O ritmo de patenteamento de genes se tornou frenético. Os pedidos de patente nos Estados Unidos subiram de 150 mil por ano no final dos anos 80 para 275 mil hoje. Em outubro do ano passado, havia pedidos de patente para 126.672 sequências de genes humanos. Por volta de fevereiro de 2001, o total era de 175.624, um aumento de 38% (7). Os Estados Unidos concederam patentes sobre milhões de SNPs (mutações nas quais uma única "letra" de um gene é trocada) e fragmentos de genes cujas funções são desconhecidas, antes que fossem adotas regras de patenteamento mais severas, em dezembro de 1999. O genoma humano já está coberto por um número de patentes dezenas de vezes maior que o número de genes, porque múltiplas patentes estão sendo concedidas sobre o mesmo trecho de DNA. Essas patentes distorcem seriamente a administração de um sistema de saúde e sufocam a pesquisa e a inovação científica (8).
Entre os genes humanos e linhagens celulares patenteados e vendidos por empresas estão alguns roubados de povos indígenas a pretexto de lhes oferecer assistência médica, e houve casos em que coerção foi usada. Os bancos de dados de DNA de populações inteiras, como as da Islândia ou de Tonga, foram vendidos a empresas privadas. O governo da Suécia está negociando com outra empresa a transferência "ética" de seu banco de dados populacional, e o governo do Reino Unido também planeja estabelecer um banco de dados do gênero.
Cerca de 740 testes genéticos patenteados já estão no mercado e há centenas de outros a caminho. Para casos em que esses testes podem ajudar a diagnosticar e tratar pacientes, custos exorbitantes de licença os impedem de ser usados. Por outro lado, pessoas saudáveis que têm resultados positivos são rejeitadas em empregos e planos de saúde. As empresas de seguros britânicas agora podem exigir que as pessoas revelem os resultados de seus testes genéticos. Ao mesmo tempo, diagnósticos pré-natais e pré-implantação estão eliminando fetos humanos e embriões portadores de genes que supostamente os predisporiam ao câncer na idade adulta.
Os governos vêm desviando imensas somas de dinheiro arrecadado como imposto para a pesquisa da genômica humana, que beneficia as grandes empresas. Esse é o verdadeiro desastre para a saúde pública. Porque ele reduz as opções de saúde e impede a adoção de outras abordagens promissoras. Trata-se também de uma importante distração ante as verdadeiras causas dos problemas de saúde, que são majoritariamente ambientais e sociais. Essa opção terminará por marginalizar e transformar em vítimas as pessoas que mais necessitam de cuidados e tratamento.
Muito antes de sermos informados de que não havia genes em número suficiente para sustentar a visão determinista da genética, muitos cientistas haviam concluído que não existiam explicações simplistas para doenças baseadas em genes, porque as ações de cada gene são afetadas e modificadas por diversos outros genes. A conexão entre genes e doenças se torna ainda mais tênue quando se trata de coisas como câncer, moléstias cardíacas, diabetes, esquizofrenia, inteligência, abuso de álcool e comportamento criminoso, para as quais os fatores ambientais e sociais cada vez mais parecem preponderantes.
Existem centenas de variantes em cada um dos 30 mil genes que compõem o genoma. A Celera, de Craig Venter, identificou mais de quatro milhões de polimorfismos de nucleotídeo único, ou SNPs, variações genéticas que diferem entre si por uma única base, ou "letra", do DNA. Cada pessoa é única em termos genéticos, exceto no caso de gêmeos idênticos no início do desenvolvimento, antes que eles possam acumular mutações genéticas independentemente. É impossível, em princípio, fazer um prognóstico de doenças para um indivíduo, quanto mais prever seu estilo de vida, com base exclusivamente em sua composição genética (5).
Risco Mais de uma década de "terapia genética" somática não rendeu resultado algum. Pelo contrário, houve mortes e numerosos eventos adversos, cujas causas continuam, em larga medida, desconhecidas. Muitos riscos já estão evidentes em meio às conclusões científicas existentes. Eles incluem reações do sistema imunológico a material geneticamente modificado e a criação de novos vírus devido à recombinação entre vetores artificiais de terapia genética e vírus adormecidos que são parte do genoma.


Sequência do DNA humano tem muito menos genes do que se pensava, derrubando afirmações de que um único gene poderia ser responsável por traços de comportamento, como preferência sexual, capacidade intelectual ou mesmo propensão ao crime


Mesmo assim, os arquideterministas genéticos e outros cientistas importantes, bem como os bioeticistas, estão defendendo terapia genética na linha germinal em seres humanos e a clonagem dos mesmos. Eles vêem a criação de uma classe de seres humanos geneticamente ricos como inevitável, devido ao domínio do mercado em todo o mundo. Os ricos pagarão para melhorar seus descendentes, assim como pagam por educação particular dispendiosa. Consequentemente, teremos um proletariado genético -os filhos dos pobres-, que terminará por se tornar uma espécie diferente e inferior. A desigualdade social poderia, dessa forma, se traduzir em desigualdade genética e vice-versa. Felizmente, essa fantasia dos deterministas genéticos jamais se realizará. Infelizmente, ela está alimentando o ressurgimento da eugenia e da discriminação genética, e dá espaço aos piores preconceitos de nossa sociedade.

Cópias humanas A clonagem de Dolly, a ovelha, criou a possibilidade de que o mesmo procedimento fosse usado para criar um ser humano. Isso encontrou oposição universal de cidadãos e governos em todo o mundo. No entanto, a clonagem humana voltou à agenda à medida que as empresas e seus cientistas pressionaram pela aprovação da clonagem humana "terapêutica", ou seja, a criação de embriões humanos com o objetivo de fornecer células e tecidos para transplante. Em janeiro de 2001, o Reino Unido se tornou o primeiro governo do mundo a aprovar uma lei que legaliza esse tipo de processo, ainda que as evidências científicas disponíveis indiquem que essa clonagem é completamente desnecessária e imoral (9). Clones "humanos" já foram criados, de fato, pela transferência de material genético de uma célula humana para óvulos de vacas e porcas. Além das objeções morais, esse hibridismo entre espécies resulta, sabidamente, em imensas anomalias.
Diante desse cenário, onde o tráfico de órgãos humanos já viceja, óvulos e embriões serão acrescentados à lista. Pelo menos 50 mulheres serão necessárias para fornecer, em número suficiente, os óvulos "vazios" necessários à clonagem de um único embrião humano. Anúncios à procura de doadoras de óvulos já apareceram em páginas da Internet.
Outro desdobramento são os xenotransplantes, a criação de porcos "humanizados" por engenharia genética que forneceriam órgãos e células adicionais para transplante em seres humanos. Esse é claramente um caso em que a má ciência e as grandes empresas estão colocando o mundo em risco de uma pandemia de vírus que se transferem dos porcos aos seres humanos. A prática deveria ser imediatamente proibida (10).
Todos os desenvolvimentos na genômica humana e próximos dela derivam do paradigma mecânico que continua a dominar a ciência ocidental e a sociedade mundial como um todo. "Frankenstein", o brilhante romance de Mary Shelley, não era apenas uma parábola sobre um cientista arrogante se fazendo de Deus, mas também um alerta sobre a ciência mecanicista que temos hoje, fora de controle e em busca de lucros.
A ironia é que a ciência ocidental contemporânea, em diversas disciplinas, está redescobrindo até que ponto a natureza é orgânica, dinâmica e interconectada. Não existem nexos causais lineares vinculando os genes e as características dos organismos, quanto mais à condição humana. Esse paradigma desacreditado está sendo perpetrado por uma elite científica que, consciente ou inconscientemente, serve às necessidades das grandes empresas e faz com que até as menos éticas das aplicações pareçam atraentes.
É mais do que hora de que os cientistas de todo o mundo se libertem do domínio das empresas, e trabalhem com o levante orgânico, de base, para recuperar e revitalizar as perspectivas holísticas dos sistemas tradicionais de conhecimento, para garantir saúde e alimento para todos.

Notas:
1. Mencionado em "Men and Women Behaving Badly? Don't Blame DNA", de Robin McKie, "Observer", 11 /02/ 2000. Ver também "Gene Code Opens New Fields of Medicine", Tim Radford, "Guardian", 12/ 02/2001.
2. Ver "Genome Project", "Guardian", 12/ 02/2001. "Unexpected Bits and Pieces", Henry Gee, "Guardian", 12/02/2001. "Genome Discovery Shocks Scientists: Genetic Blueprint Contains Far Fewer Genes than Thought -DNA's Importance Downplayed", Tom Abate, "San Francisco Chronicle", 11/02/2001. "Analysis of Human Genome Discovers Far Fewer Genes", Nicholas Wade, "New York Times", 12/02/ 2001.
3. "Mapping the Genome Could Be Route to Disaster", Leo Lewis, "Independent on Sunday" 11/02/2001.
4. Ho, M.W. (1998, 1999). "Genetic Engineering Dream or Nightmare? Turning the Tide on the Brave New World of Bad Science and Big Business", Gateway, Gill & Macmillan, Dublin.
5. Ho, M.W. (2000). "The Human Genome Sellout". "Third World Resurgence" nš123-124, 4-9; também em "ISIS News" nš 6, setembro de 2000.
6. "UK Government to Establish Population DNA Database", ISIS, 22/ 01/2000.
7. "The Profits that Kill" Madeleine Bunting, "Guardian", 12/02/ 2001.
8. Regalado, A. (2000). "The Great Gene Grab", "Technology Review" Setembro/ Outubro, 49-55.
9. Ho, M.W. e Cummins, J. (2001). "The Unnecessary Evil of "Therapeutic" Human Cloning", ISIS, janeiro 2001.
"ISIS News" nš 7
10. Ho, M.W. e Cummins, J. (2000). "Xenotransplantation - How Bad Science and Big Business Put the World at Risk from Viral Pandemics", "ISIS Sustainable Science Report", nš 3, agosto de 2000

Mae-Wan Ho é pesquisadora da Open University de Londres, diretora e fundadora do Isis (Institute of Science in Society, www.i-sis.org)

Tradução de Paulo Migliacci


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