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A morte do determinismo
por Mae-Wan Ho
A conclusão do mapeamento do genoma humano foi publicada na primeira metade de fevereiro (1). Mas representou uma decepção para os seus proponentes, a despeito dos enormes esforços para preservar as expectativas exageradas. Os
cientistas se declaram "surpresos": o "livro da vida" tem
apenas 30 mil genes. Craig Venter, cuja empresa, a Celera, estava na corrida contra um consórcio de pesquisa
bancado por verbas públicas para completar primeiro o
mapeamento, foi o único a perceber as implicações corretamente. O número de genes é muito inferior ao necessário para sustentar as extravagantes alegações feitas
ao longo da última década quanto ao fato de que genes
individuais determinam não só como nossos corpos
são construídos e que doenças contraímos, mas também nossos padrões de comportamento, nossa capacidade intelectual, nossa preferência sexual e nossa eventual propensão à criminalidade.
"Nós simplesmente não temos genes suficientes para
que essa idéia do determinismo biológico esteja correta", disse Venter. "A maravilhosa diversidade da espécie humana não é parte do nosso código genético. Os
ambientes em que vivemos são cruciais." Muitos de nós
vínhamos dizendo o mesmo décadas antes que o projeto do genoma humano ao menos tivesse concebido.
John Sulston, diretor do Sanger Centre, em Cambridge (Reino Unido), parte do consórcio público de pesquisa, tenta escapar do vexame apelando aos genes
"executivos", que realizam trabalho "gerencial" muito
sofisticado. "O que estamos fazendo é aumentar a variedade e a sutileza dos genes que controlam outros genes"
(2). Mas isso conduz apenas à regressão infinita de termos de postular genes que controlam genes que controlam ainda mais genes. O que Sulston deveria ter acrescentado ao final de sua declaração seria a frase "que respondem ao ambiente". O determinismo genético está
morto, e já está morto há pelo menos 20 anos (3).
Pior ainda, "mapear o genoma pode ser o caminho
para o desastre", é a manchete de certo jornal (4). A excitação na indústria farmacêutica pode passar logo, de
acordo com um relatório compilado pelas empresas de
investimentos Lehman Brothers e McKinsey. O genoma humano poderia ser grande demais para que as empresas farmacêuticas e de biotecnologia o administrassem, e seria capaz de levar à falência do setor. A "sobrecarga de informação" custará muito mais do que se previa. O relatório se baseia em entrevistas com especialistas de todo o setor e conclui que "talvez a mais convincente e surpreendente das conclusões seja a de que a genômica ameaça não só elevar os custos de pesquisa e
desenvolvimento associados, mas também o custo médio de cada novo remédio".
Eu já me referi à genômica humana como um buraco
negro financeiro e científico, que engole todos os recursos públicos e privados sem retorno algum, quer para
os investidores, quer na forma de melhora da saúde das
nações (5). Agora que a bolha estourou, é hora de prestarmos atenção e repensarmos a saúde a sério.
O projeto de sequenciamento do genoma humano
completo custou ao público US$ 3 bilhões nos Estados
Unidos e centenas de milhões de libras no Reino Unido.
Agora, os cientistas estão nos dizendo que esse é apenas
o fim do começo, e que muito mais dinheiro será necessário antes que se possa produzir algo de concreto no
terreno de curas milagrosas para o câncer, erradicação
de doenças, aperfeiçoamento genético, terapia genética,
medicina personalizada e prescrição de estilos de vida
adaptados à nossa composição genética.
De fato, o governo britânico investirá pelo menos 2,5
bilhões de libras ao longo dos próximos cinco anos na
genômica humana, em um esforço imprudente para
identificar todos os genes que predispõem a população
britânica a doenças (6). Isso em um momento no qual
nosso sistema nacional de saúde está em crise financeira e outros aspectos de pesquisa e desenvolvimento na
saúde vêm sendo dolorosamente negligenciados.
Benefícios para poucos Mas, mesmo que, contrariando todas as possibilidades, surjam resultados, eles
ficarão além do alcance do contribuinte médio porque
as empresas privadas já estão estabelecendo agressivamente seus direitos em relação ao genoma. O ritmo de
patenteamento de genes se tornou frenético. Os pedidos de patente nos Estados Unidos subiram de 150 mil
por ano no final dos anos 80 para 275 mil hoje. Em outubro do ano passado, havia pedidos de patente para
126.672 sequências de genes humanos. Por volta de fevereiro de 2001, o total era de 175.624, um aumento de
38% (7). Os Estados Unidos concederam patentes sobre
milhões de SNPs (mutações nas quais uma única "letra"
de um gene é trocada) e fragmentos de genes cujas funções são desconhecidas, antes que fossem adotas regras
de patenteamento mais severas, em dezembro de 1999.
O genoma humano já está coberto por um número de
patentes dezenas de vezes maior que o número de genes, porque múltiplas patentes estão sendo concedidas
sobre o mesmo trecho de DNA. Essas patentes distorcem seriamente a administração de um sistema de saúde e sufocam a pesquisa e a inovação científica (8).
Entre os genes humanos e linhagens celulares patenteados e vendidos por empresas estão alguns roubados
de povos indígenas a pretexto de lhes oferecer assistência médica, e houve casos em que coerção foi usada. Os
bancos de dados de DNA de populações inteiras, como
as da Islândia ou de Tonga, foram vendidos a empresas
privadas. O governo da Suécia está negociando com outra empresa a transferência "ética" de seu banco de dados populacional, e o governo do Reino Unido também
planeja estabelecer um banco de dados do gênero.
Cerca de 740 testes genéticos patenteados já estão no
mercado e há centenas de outros a caminho. Para casos
em que esses testes podem ajudar a diagnosticar e tratar
pacientes, custos exorbitantes de licença os impedem
de ser usados. Por outro lado, pessoas saudáveis que
têm resultados positivos são rejeitadas em empregos e
planos de saúde. As empresas de seguros britânicas
agora podem exigir que as pessoas revelem os resultados de seus testes genéticos. Ao mesmo tempo, diagnósticos pré-natais e pré-implantação estão eliminando
fetos humanos e embriões portadores de genes que supostamente os predisporiam ao câncer na idade adulta.
Os governos vêm desviando imensas somas de dinheiro arrecadado como imposto para a pesquisa da
genômica humana, que beneficia as grandes empresas.
Esse é o verdadeiro desastre para a saúde pública. Porque ele reduz as opções de saúde e impede a adoção de
outras abordagens promissoras. Trata-se também de
uma importante distração ante as verdadeiras causas
dos problemas de saúde, que são majoritariamente ambientais e sociais. Essa opção terminará por marginalizar e transformar em vítimas as pessoas que mais necessitam de cuidados e tratamento.
Muito antes de sermos informados de que não havia
genes em número suficiente para sustentar a visão determinista da genética, muitos cientistas haviam concluído que não existiam explicações simplistas para
doenças baseadas em genes, porque as ações de cada
gene são afetadas e modificadas por diversos outros genes. A conexão entre genes e doenças se torna ainda
mais tênue quando se trata de coisas como câncer, moléstias cardíacas, diabetes, esquizofrenia, inteligência,
abuso de álcool e comportamento criminoso, para as
quais os fatores ambientais e sociais cada vez mais parecem preponderantes.
Existem centenas de variantes em cada um dos 30 mil
genes que compõem o genoma. A Celera, de Craig Venter, identificou mais de quatro milhões de polimorfismos de nucleotídeo único, ou SNPs, variações genéticas
que diferem entre si por uma única base, ou "letra", do
DNA. Cada pessoa é única em termos genéticos, exceto
no caso de gêmeos idênticos no início do desenvolvimento, antes que eles possam acumular mutações genéticas independentemente. É impossível, em princípio, fazer um prognóstico de doenças para um indivíduo, quanto mais prever seu estilo de vida, com base exclusivamente em sua composição genética (5).
Risco Mais de uma década de "terapia genética" somática não rendeu resultado algum. Pelo contrário,
houve mortes e numerosos eventos adversos, cujas causas continuam, em larga medida, desconhecidas. Muitos riscos já estão evidentes em meio às conclusões científicas existentes. Eles incluem reações do sistema imunológico a material geneticamente modificado e a criação de novos vírus devido à recombinação entre vetores
artificiais de terapia genética e vírus adormecidos que
são parte do genoma.
Sequência do DNA humano tem muito menos genes do que se pensava, derrubando afirmações de que um único gene poderia ser responsável por traços de comportamento, como preferência sexual, capacidade intelectual ou mesmo propensão ao crime
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Mesmo assim, os arquideterministas genéticos e outros cientistas importantes, bem como os bioeticistas,
estão defendendo terapia genética na linha germinal em
seres humanos e a clonagem dos mesmos. Eles vêem a
criação de uma classe de seres humanos geneticamente
ricos como inevitável, devido ao domínio do mercado
em todo o mundo. Os ricos pagarão para melhorar seus
descendentes, assim como pagam por educação particular dispendiosa. Consequentemente, teremos um
proletariado genético -os filhos dos pobres-, que terminará por se tornar uma espécie diferente e inferior. A
desigualdade social poderia, dessa forma, se traduzir
em desigualdade genética e vice-versa. Felizmente, essa
fantasia dos deterministas genéticos jamais se realizará.
Infelizmente, ela está alimentando o ressurgimento da
eugenia e da discriminação genética, e dá espaço aos
piores preconceitos de nossa sociedade.
Cópias humanas A clonagem de Dolly, a ovelha,
criou a possibilidade de que o mesmo procedimento
fosse usado para criar um ser humano. Isso encontrou
oposição universal de cidadãos e governos em todo o
mundo. No entanto, a clonagem humana voltou à agenda à medida que as empresas e seus cientistas pressionaram pela aprovação da clonagem humana "terapêutica", ou seja, a criação de embriões humanos com o objetivo de fornecer células e tecidos para transplante. Em
janeiro de 2001, o Reino Unido se tornou o primeiro governo do mundo a aprovar uma lei que legaliza esse tipo
de processo, ainda que as evidências científicas disponíveis indiquem que essa clonagem é completamente desnecessária e imoral (9). Clones "humanos" já foram
criados, de fato, pela transferência de material genético
de uma célula humana para óvulos de vacas e porcas.
Além das objeções morais, esse hibridismo entre espécies resulta, sabidamente, em imensas anomalias.
Diante desse cenário, onde o tráfico de órgãos humanos já viceja, óvulos e embriões serão acrescentados à
lista. Pelo menos 50 mulheres serão necessárias para
fornecer, em número suficiente, os óvulos "vazios" necessários à clonagem de um único embrião humano.
Anúncios à procura de doadoras de óvulos já apareceram em páginas da Internet.
Outro desdobramento são os xenotransplantes, a
criação de porcos "humanizados" por engenharia genética que forneceriam órgãos e células adicionais para
transplante em seres humanos. Esse é claramente um
caso em que a má ciência e as grandes empresas estão
colocando o mundo em risco de uma pandemia de vírus que se transferem dos porcos aos seres humanos. A
prática deveria ser imediatamente proibida (10).
Todos os desenvolvimentos na genômica humana e
próximos dela derivam do paradigma mecânico que
continua a dominar a ciência ocidental e a sociedade
mundial como um todo. "Frankenstein", o brilhante
romance de Mary Shelley, não era apenas uma parábola
sobre um cientista arrogante se fazendo de Deus, mas
também um alerta sobre a ciência mecanicista que temos hoje, fora de controle e em busca de lucros.
A ironia é que a ciência ocidental contemporânea, em
diversas disciplinas, está redescobrindo até que ponto a
natureza é orgânica, dinâmica e interconectada. Não
existem nexos causais lineares vinculando os genes e as
características dos organismos, quanto mais à condição
humana. Esse paradigma desacreditado está sendo perpetrado por uma elite científica que, consciente ou inconscientemente, serve às necessidades das grandes
empresas e faz com que até as menos éticas das aplicações pareçam atraentes.
É mais do que hora de que os cientistas de todo o
mundo se libertem do domínio das empresas, e trabalhem com o levante orgânico, de base, para recuperar e
revitalizar as perspectivas holísticas dos sistemas tradicionais de conhecimento, para garantir saúde e alimento para todos.
Notas:
1. Mencionado em "Men and Women Behaving Badly? Don't Blame
DNA", de Robin McKie, "Observer", 11 /02/ 2000. Ver também "Gene
Code Opens New Fields of Medicine", Tim Radford, "Guardian", 12/
02/2001.
2. Ver "Genome Project", "Guardian", 12/ 02/2001. "Unexpected
Bits and Pieces", Henry Gee, "Guardian", 12/02/2001. "Genome Discovery Shocks Scientists: Genetic Blueprint Contains Far Fewer Genes than Thought -DNA's Importance Downplayed", Tom Abate,
"San Francisco Chronicle", 11/02/2001. "Analysis of Human Genome Discovers Far Fewer Genes", Nicholas Wade, "New York Times",
12/02/ 2001.
3. "Mapping the Genome Could Be Route to Disaster", Leo Lewis,
"Independent on Sunday" 11/02/2001.
4. Ho, M.W. (1998, 1999). "Genetic Engineering Dream or Nightmare? Turning the Tide on the Brave New World of Bad Science and Big
Business", Gateway, Gill & Macmillan, Dublin.
5. Ho, M.W. (2000). "The Human Genome Sellout". "Third World Resurgence" nš123-124, 4-9; também em "ISIS News" nš 6, setembro
de 2000.
6. "UK Government to Establish Population DNA Database", ISIS,
22/ 01/2000.
7. "The Profits that Kill" Madeleine Bunting, "Guardian", 12/02/
2001.
8. Regalado, A. (2000). "The Great Gene Grab", "Technology Review" Setembro/ Outubro, 49-55.
9. Ho, M.W. e Cummins, J. (2001). "The Unnecessary Evil of "Therapeutic" Human Cloning", ISIS, janeiro 2001.
"ISIS News" nš 7
10. Ho, M.W. e Cummins, J. (2000). "Xenotransplantation - How Bad
Science and Big Business Put the World at Risk from Viral Pandemics", "ISIS Sustainable Science Report", nš 3, agosto de 2000
Mae-Wan Ho é pesquisadora da Open University de Londres, diretora
e fundadora do Isis (Institute of Science in Society, www.i-sis.org)
Tradução de Paulo Migliacci
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