São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+brasil 501 d.C.

Entre o humor e o absurdo

Luiz Costa Lima

Suponho que me tivessem dado a tarefa de dizer em poucas palavras em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19 brasileiro, se mantém até hoje. Proporia a fórmula seguinte: tematicamente, o poeta há de mostrar apreço pela moral e os bons costumes enquanto aclimata seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloquência estremecem uma superfície sentimental-embalante. Castro Alves (1847-1871) e Gonçalves Dias (1823-1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro. Logo, entretanto, caberia perguntar: quem hoje leva a sério tal modelo?
Do lado dos produtores, talvez os menos ousados; não os muitos pós-cabralinos e pós-concretos, ainda quando repudiem seus ascendentes. Ou os leitores mais refinados, é verdade que tão raros que em cada cidade ameaçam ser apontados. Nem falar da massa heavy metal, à cata de anjos, auto-ajudas, biografias e álbuns de fotos da sua cidade. Feita a subtração, quem resta? Ah, sim, esquecia os responsáveis pela manutenção dos programas de literatura brasileira, os professores a eles subordinados e seus alunos (se lerem). A margem poderá ser pequena, mas é bastante para que se mantenha a tradição. Não somos menos intelectualmente conservadores do que em termos de política.
Com isso, as diversas revisões levantadas nas últimas décadas deram lugar a algumas reedições, a alguns ensaios, a algumas teses. Que mais? Nada mais. Quem hoje mantém acesso ao terceto de Pedro Kilkerry (1885-1917): "Se a matei, se matei! Já meu ódio se afrouxa/ E se a amava, meu Deus! sirva ao menos de regra/ Quando o marido é mau, quando a mulher é coxa" ("Re-visão de Kilkerry", org. Augusto de Campos, Fundo Estadual de Cultura, 1970)? Ou quem conhecerá a produção parodística e minoritária de Bernardo Guimarães (1825-1884): "O Nariz perante os Poetas", o "Elixir do Pajé" (expurgado de suas "Poesias Completas", 1959), "À Saia-Balão", "Dilúvio de Papel", "A Orgia dos Duendes", em que diabinhos fantasmais arrumam tal bagunça que tornariam operístico o indianismo gonçalvino. E a frase com que Flora Süssekind sintetizava artigo seu de 1984, "o que há de melhor no poeta romântico morto há cem anos não é sua lira "séria", mas sim o "rude rabecão" que o diferenciava de seus contemporâneos brasileiros", ainda será compreendida?

Sousândrade e Qorpo-Santo Os casos mais desalentadores, contudo, são os de Joaquim de Sousândrade (1833-1902) e de Qorpo-Santo (1829-1883). Um e outro provocaram estardalhaço. O primeiro, a partir do ensaio dos irmãos Campos, inicialmente editado na data fatídica de 1964, o segundo, um pouco depois, quando seu teatro foi salvo por Anibal Damasceno e Yan Michalski. Às vésperas, no entanto, do centenário da morte de Sousândrade, dele há disponível apenas uma pequena antologia. E, da continuação da pesquisa começada com "Sousândrade - Terremoto Clandestino", apenas sei do trabalho de uma pessoa alheia à comunidade literária.
De todos os reenterrados, a sorte ainda acidentalmente beneficia o autor gaúcho. É certo que, de seu "Teatro Completo" (1980), organizado pelo criterioso Guilhermino Cesar, não há nem mais sinal. De todo modo, o leitor curioso pelo menos dispõe agora dos "Poemas" (org. de Denise Espírito Santo, Contra-Capa Livraria, Rio, 2000). É porque o livro eventualmente circula que posso tomá-lo como "gancho" para meu soturno início do novo milênio.
Conforme a organizadora, "Poemas" reproduz o primeiro volume da "Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade", formada por nove volumes, contendo artigos publicados entre 1868 e 1873 nas cidades de Alegrete e Porto Alegre. Dois fatos ressaltam. Em 1877, Qorpo-Santo, aliás José Joaquim de Campos Leão, abre sua própria tipografia, em Porto Alegre, onde começa a preparar a edição da "Enciclopédia". Desde 1868, contudo, sofria, por iniciativa da mulher, a interdição judicial de seus bens pelo juiz Antonio Correia de Oliveira, referido como o personagem "Cores", sob a alegação de que sofria das faculdades mentais. É nesse ambiente de privação que Qorpo-Santo escreve e compõe.
É impossível hoje saber se a mulher tinha razão. A extrema irregularidade de seus versos -de igual presente em Sousândrade, também acusado de louco, embora sem o constrangimento de um processo judicial- não serviria de prova a uma coisa ou outra. O máximo que se poderia alegar está na frase com que antecipa uma das reuniões de poemas: "Sinto hoje em cada azeitona que engulo introduzir-se em meu cérebro o espírito de uma capacidade transcendente". Seria de distingui-la da auto-ironia próxima do "nonsense"? Mas era a sua uma poesia de "nonsense"?

Escrita obsessiva Segundo o excelente ensaio de Miriam Ávila, "A Poesia Nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear" (AnnaBlume, São Paulo, 1996), a resposta é negativa. Demonstra a ensaísta mineira que o "nonsense", cujo mecanismo seria tão importante para a arte do século 20, procura desviar a síntese do que faz sentido. "Abolir o sentido, o que seria a meta máxima do "nonsense", se revela praticamente impossível se se lida com palavras (...). Diante da inevitabilidade de o poema apontar para algo exterior a seu corpo e criar assim um vínculo significante, a saída é tentar desestabilizar esse intertexto anterior e desse modo tornar oscilante a própria base a partir da qual se ergue o poema."
Ora, não é isso que se verifica no autor gaúcho, seja em seu comentário "As minhas obras quase só eu as entendo: tantas foram as inutilidades por mim suprimidas!", seja no surpreendente poema: "Tão lindas as aranhas/ Tão belas, tão ternas/ Pois caem do teto/ e Não quebram as pernas". De qualquer modo, negar a estrita forma do "nonsense" não significa prejulgar seu estado mental. Pois, como mostra Miriam Ávila, a exploração da forma teve o caráter de resposta, embora ingênua, à situação social da imperial Inglaterra vitoriana: contra a poderosa unidade da norma social diante da qual o Sol não se punha, o "nonsense" procurava corroer sua base, a articulação de sentido. Embaralhar o sentido, bloqueá-lo, seria um meio, repita-se, ingênuo, de defender o indivíduo do esmagamento que o ameaçava.
Ora, a comparação com o quadro em que vivia Qorpo-Santo não tem paralelo. O problema do autor gaúcho ainda não era da sociedade, mas de sua exclusão do convívio normalizado. Dos demais, estava ele afastado fosse pela interdição dos bens, fosse por sua estranha escrita obsessiva. Por uma e outra razão, os "Poemas" apresentam uma situação dialógica peculiar: seu face a face se dá com os bichos, com os insetos, com o próprio corpo ("Ó barriga, tu roncas!/ Que dizes? Que tens fome! Não creio, é gracejo!"). Quando não são esses, seus interlocutores são os tipos, a tinta e o papel. No seu caso, a inspiração obrigada cedia a vez "a la noche oscura del alma", despojada de qualquer traço místico: "Era meia noite,/ Senti inspiração!/ Mas eu não satisfiz/ Ao meu coração!/ Escuro tão negro!/ De que serviria / Papel, pena, tinta,/ Se eu nada podia?" ("Inspiradora").
Mas, se o poeta está restrito ao diálogo com bichos, coisas e instrumentos, não perde a consciência do risco que corre, pelas críticas que não apaga: "Eu não sei quem foi do povo,/ -Se me arrojou a afirmar;/ Suas obras não têm erros!/ Os que lhe parecem seus,/ São sátiras às leis do Império!" ("Alguém do Povo").
Sua crítica chega de fato a ser tão incisiva que se poderia pensar que denunciava uma espécie de "nonsense" coletivo. "Nonsense" do que foi a cristianização dos povos indígenas: "Poucos deles produziram;/ Mui poucos se converteram:/ A maior parte fugiram:/ E quase todos morreram".
Não se negue ser pequena a proporção dos versos de destaque. Em alguns, porém, se percebe que o que não funciona como poema teria vez em uma peça de teatro. Seria, entre outros, o caso de "Confissões de uma Velha" e "Um Candidato". Mais raramente, abrem-se as duas possibilidades: os versos valem como texto autônomo e/ou passagem ao teatro do absurdo. É o caso de "Mundo":
"Já que estas mulheres
D'estopas
Fazem tão grandes tocas,
Filósofo sejamos
Profundo...
Um maior tombo eu dou
No mundo!".


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


Texto Anterior: + brasil 501 d.C. - José Arthur Giannotti: Socialismo ou barbárie
Próximo Texto: +autores - Juan José Saer: Confissão ao Deus pai
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.