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+brasil 501 d.C.
Entre o humor e o absurdo
Luiz Costa Lima
Suponho que me tivessem dado a
tarefa de dizer em poucas palavras
em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19
brasileiro, se mantém até hoje. Proporia
a fórmula seguinte: tematicamente, o
poeta há de mostrar apreço pela moral e
os bons costumes enquanto aclimata
seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloquência estremecem uma superfície sentimental-embalante. Castro Alves (1847-1871) e Gonçalves Dias (1823-1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro. Logo, entretanto, caberia
perguntar: quem hoje leva a sério tal modelo?
Do lado dos produtores, talvez os menos ousados; não os muitos pós-cabralinos e pós-concretos, ainda quando repudiem seus ascendentes. Ou os leitores
mais refinados, é verdade que tão raros
que em cada cidade ameaçam ser apontados. Nem falar da massa heavy metal, à
cata de anjos, auto-ajudas, biografias e
álbuns de fotos da sua cidade. Feita a
subtração, quem resta? Ah, sim, esquecia
os responsáveis pela manutenção dos
programas de literatura brasileira, os
professores a eles subordinados e seus
alunos (se lerem). A margem poderá ser
pequena, mas é bastante para que se
mantenha a tradição. Não somos menos
intelectualmente conservadores do que
em termos de política.
Com isso, as diversas revisões levantadas nas últimas décadas deram lugar a
algumas reedições, a alguns ensaios, a algumas teses. Que mais? Nada mais.
Quem hoje mantém acesso ao terceto de
Pedro Kilkerry (1885-1917): "Se a matei,
se matei! Já meu ódio se afrouxa/ E se a
amava, meu Deus! sirva ao menos de regra/ Quando o marido é mau, quando a
mulher é coxa" ("Re-visão de Kilkerry",
org. Augusto de Campos, Fundo Estadual de Cultura, 1970)? Ou quem conhecerá a produção parodística e minoritária de Bernardo Guimarães (1825-1884):
"O Nariz perante os Poetas", o "Elixir do
Pajé" (expurgado de suas "Poesias Completas", 1959), "À Saia-Balão", "Dilúvio
de Papel", "A Orgia dos Duendes", em
que diabinhos fantasmais arrumam tal
bagunça que tornariam operístico o indianismo gonçalvino. E a frase com que
Flora Süssekind sintetizava artigo seu de
1984, "o que há de melhor no poeta romântico morto há cem anos não é sua lira "séria", mas sim o "rude rabecão" que o
diferenciava de seus contemporâneos
brasileiros", ainda será compreendida?
Sousândrade e Qorpo-Santo Os
casos mais desalentadores, contudo, são
os de Joaquim de Sousândrade (1833-1902) e de Qorpo-Santo (1829-1883). Um
e outro provocaram estardalhaço. O primeiro, a partir do ensaio dos irmãos
Campos, inicialmente editado na data fatídica de 1964, o segundo, um pouco depois, quando seu teatro foi salvo por Anibal Damasceno e Yan Michalski. Às vésperas, no entanto, do centenário da morte de Sousândrade, dele há disponível
apenas uma pequena antologia. E, da
continuação da pesquisa começada com
"Sousândrade - Terremoto Clandestino", apenas sei do trabalho de uma pessoa alheia à comunidade literária.
De todos os reenterrados, a sorte ainda
acidentalmente beneficia o autor gaúcho. É certo que, de seu "Teatro Completo" (1980), organizado pelo criterioso
Guilhermino Cesar, não há nem mais sinal. De todo modo, o leitor curioso pelo
menos dispõe agora dos "Poemas" (org.
de Denise Espírito Santo, Contra-Capa
Livraria, Rio, 2000). É porque o livro
eventualmente circula que posso tomá-lo como "gancho" para meu soturno início do novo milênio.
Conforme a organizadora, "Poemas"
reproduz o primeiro volume da "Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade", formada por nove volumes, contendo artigos publicados entre 1868 e
1873 nas cidades de Alegrete e Porto Alegre. Dois fatos ressaltam. Em 1877, Qorpo-Santo, aliás José Joaquim de Campos
Leão, abre sua própria tipografia, em
Porto Alegre, onde começa a preparar a
edição da "Enciclopédia". Desde 1868,
contudo, sofria, por iniciativa da mulher,
a interdição judicial de seus bens pelo
juiz Antonio Correia de Oliveira, referido como o personagem "Cores", sob a
alegação de que sofria das faculdades
mentais. É nesse ambiente de privação
que Qorpo-Santo escreve e compõe.
É impossível hoje saber se a mulher tinha razão. A extrema irregularidade de
seus versos -de igual presente em Sousândrade, também acusado de louco,
embora sem o constrangimento de um
processo judicial- não serviria de prova
a uma coisa ou outra. O máximo que se
poderia alegar está na frase com que antecipa uma das reuniões de poemas:
"Sinto hoje em cada azeitona que engulo
introduzir-se em meu cérebro o espírito
de uma capacidade transcendente". Seria de distingui-la da auto-ironia próxima do "nonsense"? Mas era a sua uma
poesia de "nonsense"?
Escrita obsessiva Segundo o excelente ensaio de Miriam Ávila, "A Poesia Nonsense de Lewis Carroll e Edward
Lear" (AnnaBlume, São Paulo, 1996), a
resposta é negativa. Demonstra a ensaísta mineira que o "nonsense", cujo mecanismo seria tão importante para a arte do
século 20, procura desviar a síntese do
que faz sentido. "Abolir o sentido, o que
seria a meta máxima do "nonsense", se
revela praticamente impossível se se lida
com palavras (...). Diante da inevitabilidade de o poema apontar para algo exterior a seu corpo e criar assim um vínculo
significante, a saída é tentar desestabilizar esse intertexto anterior e desse modo
tornar oscilante a própria base a partir da
qual se ergue o poema."
Ora, não é isso que se verifica no autor
gaúcho, seja em seu comentário "As minhas obras quase só eu as entendo: tantas
foram as inutilidades por mim suprimidas!", seja no surpreendente poema:
"Tão lindas as aranhas/ Tão belas, tão
ternas/ Pois caem do teto/ e Não quebram as pernas". De qualquer modo, negar a estrita forma do "nonsense" não
significa prejulgar seu estado mental.
Pois, como mostra Miriam Ávila, a exploração da forma teve o caráter de resposta, embora ingênua, à situação social
da imperial Inglaterra vitoriana: contra a
poderosa unidade da norma social diante da qual o Sol não se punha, o "nonsense" procurava corroer sua base, a articulação de sentido. Embaralhar o sentido,
bloqueá-lo, seria um meio, repita-se, ingênuo, de defender o indivíduo do esmagamento que o ameaçava.
Ora, a comparação com o quadro em
que vivia Qorpo-Santo não tem paralelo.
O problema do autor gaúcho ainda não
era da sociedade, mas de sua exclusão do
convívio normalizado. Dos demais, estava ele afastado fosse pela interdição dos
bens, fosse por sua estranha escrita obsessiva. Por uma e outra razão, os "Poemas" apresentam uma situação dialógica peculiar: seu face a face se dá com os
bichos, com os insetos, com o próprio
corpo ("Ó barriga, tu roncas!/ Que dizes?
Que tens fome! Não creio, é gracejo!").
Quando não são esses, seus interlocutores são os tipos, a tinta e o papel. No seu
caso, a inspiração obrigada cedia a vez "a
la noche oscura del alma", despojada de
qualquer traço místico: "Era meia noite,/
Senti inspiração!/ Mas eu não satisfiz/ Ao
meu coração!/ Escuro tão negro!/ De que
serviria / Papel, pena, tinta,/ Se eu nada
podia?" ("Inspiradora").
Mas, se o poeta está restrito ao diálogo
com bichos, coisas e instrumentos, não
perde a consciência do risco que corre,
pelas críticas que não apaga: "Eu não sei
quem foi do povo,/ -Se me arrojou a
afirmar;/ Suas obras não têm erros!/ Os
que lhe parecem seus,/ São sátiras às leis
do Império!" ("Alguém do Povo").
Sua crítica chega de fato a ser tão incisiva que se poderia pensar que denunciava
uma espécie de "nonsense" coletivo.
"Nonsense" do que foi a cristianização
dos povos indígenas: "Poucos deles produziram;/ Mui poucos se converteram:/
A maior parte fugiram:/ E quase todos
morreram".
Não se negue ser pequena a proporção
dos versos de destaque. Em alguns, porém, se percebe que o que não funciona
como poema teria vez em uma peça de
teatro. Seria, entre outros, o caso de
"Confissões de uma Velha" e "Um Candidato". Mais raramente, abrem-se as
duas possibilidades: os versos valem como texto autônomo e/ou passagem ao
teatro do absurdo. É o caso de "Mundo":
"Já que estas mulheres
D'estopas
Fazem tão grandes tocas,
Filósofo sejamos
Profundo...
Um maior tombo eu dou
No mundo!".
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de
"Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros.
Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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