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Confissão ao Deus pai
Juan José Saer
O segundo volume das obras
completas de Kafka, publicado
há poucos meses em Barcelona
pelo selo Círculo de Lectores/
Galaxia Gutenberg, reproduz a edição
crítica alemã da editora S. Fischer e constitui um importante acontecimento no
mundo literário hispanófono. A edição
anterior das obras completas, publicada
há décadas pela editora Emecé, cumpriu
seu papel ao difundir amplamente a obra
de Kafka em castelhano, mas os avanços
nos estudos filológicos, biográficos e críticos sobre o grande escritor tcheco pediam uma edição mais minuciosa e sistemática.
A atual está a cargo de Jordi Llovet, e as
novas traduções foram feitas por Andrés
Sánchez Pascual e Joan Parra Contreras.
A edição castelhana não coincide exatamente com a original, pois inclui a "Carta ao Pai", que, na edição de Frankfurt,
integra o volume dos escritos póstumos
de Kafka. A "Nota do Editor" adverte
que, na introdução das notas à carta, são
explicados os motivos da inclusão, e, embora seja inútil procurar tais explicações
nas notas, não é difícil deduzir que, uma
vez que o volume abarca a totalidade dos
diários de Kafka, incluindo seus diários
de viagem, um texto autobiográfico como a "Carta ao Pai" teria naturalmente
seu lugar garantido no conjunto.
Mas o prólogo de Nora Catelli, em que
não faltam observações perspicazes, não
deixa de sugerir, a propósito dos diários,
que muitas de suas páginas, mesmo sem
pertencer ao plano da ficção, nada têm
de autobiográficas (o que, diga-se de
passagem, ocorre com quase todos os
diários íntimos).
Não é de estranhar que a inclusão da
"Carta ao Pai" (lançado no Brasil pela
Companhia das Letras, em tradução de
Modesto Carone) nesse ou naquele volume das obras completas varie de acordo
com o critério de cada editor, já que esse
longo arrazoado, que encarna como nenhum outro escrito de Kafka sua evidente ambiguidade, é e ao mesmo tempo
não é um texto autobiográfico. Não resta
a menor dúvida de que nele há numerosos dados autobiográficos, mas integrados de tal forma ao conjunto que perdem
seu valor referencial e parecem aludir a
coisas mais gerais.
Kafka, como escritor, sentia atração
pelas metáforas, pelos símbolos, pelas
alegorias, e é possível dizer que cada gesto de sua escritura tendia a se expressar
por meio dessas formas, tanto nas obras
de ficção quanto nos diários e até em sua
correspondência. A "Carta ao Pai", texto
tardio (escrito em 1919, poucos anos antes de sua morte), é provavelmente o
exemplo mais notável desse viés alegórico próprio de sua prática literária, para
não dizer de seu pensamento.
As 50 densas páginas dessa mensagem
desmedida, assim como os emissários de
quase todas as suas ficções, nunca chegaram a seu destino. Aqui podemos constatar que se aplica, mais uma vez, o famoso aforismo de Oscar Wilde segundo
o qual "a vida imita a arte". Kafka não fez
o menor esforço para que a "Carta", com
que pretendia tirar a limpo a relação com
o pai, como disse a vários amigos e familiares, inclusive à mãe, chegasse às mãos,
ou pelo menos ao conhecimento, da única pessoa que deveria lê-la e refletir sobre
ela: seu próprio pai.
Mas, se levarmos em conta que a relação entre Hermann e Franz Kafka, entre
pai e filho, era marcada por um constante desencontro e que justamente a incomunicação e o perpétuo mal-entendido
que viciavam essa relação eram o que se
poderia chamar a tese da carta, não é
exagerado pensar que, para provar essa
tese, era imprescindível que a carta nunca chegasse a seu destinatário.
Estética da impossibilidade É, portanto, nas peripécias vividas na realidade que o texto autobiográfico se transforma em alegoria. Mas aquilo que na
"Carta ao Pai" parece ser um efeito deliberadamente buscado pelo autor pode
muito bem ser rastreado em tudo o que
com ele se relaciona, para por fim verificar que se trata do elemento unificador
de sua vida e sua obra. Não seria absurdo
evocar essa tendência como uma estética
da impossibilidade, para de algum modo
nomear a enigmática ambiguidade de
Kafka, em quem o destino adverso da
biografia é transfigurado pela férrea lógica da arte.
Se santo Agostinho não tivesse escrito as "Confissões", a
"Carta ao Pai", de Kafka, seria um livro único; ninguém que os tenha percorrido pode ignorar a curiosa série de semelhanças que há entre eles
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A identificação de sua vida inacabada
(suas relações familiares, amorosas, sua
doença, sua morte) com sua obra inacabada (textos inconclusos, inéditos, desmembrados, póstumos) é evidente, e essa perfeita coincidência permite sugerir
que, consciente ou não, havia acima dela
uma vontade unificadora. A total coerência de seus fracassos transfigurados
em imagem perene por sua literatura
não é de ordem psicológica ou biográfica, mas estética. E, se Joachim Unseld,
em seu interessante livro "Franz Kafka
-Uma Vida de Escritor", concebido para
demonstrar que Kafka era um autor como outro qualquer, que queria ser publicado em vida e aspirava a se relacionar
normalmente com seu editor e com seus
leitores, consegue nos convencer apenas
parcialmente de sua tese, é porque ele
próprio conta que, numa carta a seu editor, quando estavam negociando a publicação de seu primeiro livro, Kafka sugere: "Se eu fosse o senhor, não publicaria esse livro".
Agostinho e Kafka Se santo Agostinho não tivesse escrito as "Confissões", a
"Carta ao Pai" seria um livro único. Nenhum leitor que tenha percorrido os dois
livros pode ignorar a curiosa (e longa)
série de semelhanças que há entre eles. E,
embora se busque em vão qualquer
menção a santo Agostinho entre as referências literárias que aparecem nos diários, a tentação de pensar que as "Confissões" eram o modelo que Kafka tinha em
mente ao escrever sua carta é inevitável,
porque é suscitada pela própria experiência da leitura.
Os dois livros têm uma estrutura idêntica: alternam a narração em primeira e
segunda pessoa, a introspecção e a interpelação de um interlocutor ausente;
num deles, um filho que fala ao pai; no
outro, um fiel que fala a seu deus. E, como sabemos, a relação de um filho com
seu pai é proporcional à de um fiel com
seu deus. Considerando a inclinação natural de Kafka por símbolos e alegorias,
custa-nos aceitar que ele não tenha pensado um instante nem sequer na possível
identificação dos dois destinatários. Em
ambos os textos, em todo caso, a postura
de quem fala em relação ao interlocutor
ausente é a mesma: temor, culpa e amor
por alguém de quem não se tem certeza
de obter reciprocidade (e nem sequer de
merecê-la) constituem o essencial de
seus sentimentos e de suas emoções.
Nora Catelli afirma no prólogo: "É evidente que seria difícil imaginar um contexto de ficção para a carta. Mas não é
menos difícil pensar nela como fruto de
um impulso". Esse fato, evidentemente,
não basta para incluir a carta no campo
da ficção, mas, ao assinalar seu caráter
intencional, estabelece certa semelhança
com as "Confissões", que, segundo alguns historiadores, poderiam não ter sido a autobiografia espiritual de um indivíduo, e sim um mero texto coletivo de
propaganda eclesiástica.
E há uma observação do professor
García de la Fuente, em sua introdução
às "Confissões", que assume, para este
exercício comparativo, uma ressonância
mais afim à idéia que fazemos de Kafka
do que ao texto agostiniano: "Vale dizer
que não há nas "Confissões" sinais da
apologia que Agostinho teria feito de sua
própria vida contra seus adversários.
Mais que se defender, o que o autor faz é
se acusar".
Ficção ou autobiografia, graça ou perdição, consolo ou reprimenda, acusação
ou culpa, confissão ou imprecação: é
sempre a mesma escolha mal dissimulada pelas circunstâncias a que nos deixam
os que, depois de nos levarem até o incompreensível, se retiram, para azar de
nosso pobre apetite de comunhão, instalando-se nas brumas de sua distância.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém
Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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