São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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Confissão ao Deus pai

Juan José Saer

O segundo volume das obras completas de Kafka, publicado há poucos meses em Barcelona pelo selo Círculo de Lectores/ Galaxia Gutenberg, reproduz a edição crítica alemã da editora S. Fischer e constitui um importante acontecimento no mundo literário hispanófono. A edição anterior das obras completas, publicada há décadas pela editora Emecé, cumpriu seu papel ao difundir amplamente a obra de Kafka em castelhano, mas os avanços nos estudos filológicos, biográficos e críticos sobre o grande escritor tcheco pediam uma edição mais minuciosa e sistemática.
A atual está a cargo de Jordi Llovet, e as novas traduções foram feitas por Andrés Sánchez Pascual e Joan Parra Contreras. A edição castelhana não coincide exatamente com a original, pois inclui a "Carta ao Pai", que, na edição de Frankfurt, integra o volume dos escritos póstumos de Kafka. A "Nota do Editor" adverte que, na introdução das notas à carta, são explicados os motivos da inclusão, e, embora seja inútil procurar tais explicações nas notas, não é difícil deduzir que, uma vez que o volume abarca a totalidade dos diários de Kafka, incluindo seus diários de viagem, um texto autobiográfico como a "Carta ao Pai" teria naturalmente seu lugar garantido no conjunto.
Mas o prólogo de Nora Catelli, em que não faltam observações perspicazes, não deixa de sugerir, a propósito dos diários, que muitas de suas páginas, mesmo sem pertencer ao plano da ficção, nada têm de autobiográficas (o que, diga-se de passagem, ocorre com quase todos os diários íntimos).
Não é de estranhar que a inclusão da "Carta ao Pai" (lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em tradução de Modesto Carone) nesse ou naquele volume das obras completas varie de acordo com o critério de cada editor, já que esse longo arrazoado, que encarna como nenhum outro escrito de Kafka sua evidente ambiguidade, é e ao mesmo tempo não é um texto autobiográfico. Não resta a menor dúvida de que nele há numerosos dados autobiográficos, mas integrados de tal forma ao conjunto que perdem seu valor referencial e parecem aludir a coisas mais gerais.
Kafka, como escritor, sentia atração pelas metáforas, pelos símbolos, pelas alegorias, e é possível dizer que cada gesto de sua escritura tendia a se expressar por meio dessas formas, tanto nas obras de ficção quanto nos diários e até em sua correspondência. A "Carta ao Pai", texto tardio (escrito em 1919, poucos anos antes de sua morte), é provavelmente o exemplo mais notável desse viés alegórico próprio de sua prática literária, para não dizer de seu pensamento.
As 50 densas páginas dessa mensagem desmedida, assim como os emissários de quase todas as suas ficções, nunca chegaram a seu destino. Aqui podemos constatar que se aplica, mais uma vez, o famoso aforismo de Oscar Wilde segundo o qual "a vida imita a arte". Kafka não fez o menor esforço para que a "Carta", com que pretendia tirar a limpo a relação com o pai, como disse a vários amigos e familiares, inclusive à mãe, chegasse às mãos, ou pelo menos ao conhecimento, da única pessoa que deveria lê-la e refletir sobre ela: seu próprio pai.
Mas, se levarmos em conta que a relação entre Hermann e Franz Kafka, entre pai e filho, era marcada por um constante desencontro e que justamente a incomunicação e o perpétuo mal-entendido que viciavam essa relação eram o que se poderia chamar a tese da carta, não é exagerado pensar que, para provar essa tese, era imprescindível que a carta nunca chegasse a seu destinatário.

Estética da impossibilidade É, portanto, nas peripécias vividas na realidade que o texto autobiográfico se transforma em alegoria. Mas aquilo que na "Carta ao Pai" parece ser um efeito deliberadamente buscado pelo autor pode muito bem ser rastreado em tudo o que com ele se relaciona, para por fim verificar que se trata do elemento unificador de sua vida e sua obra. Não seria absurdo evocar essa tendência como uma estética da impossibilidade, para de algum modo nomear a enigmática ambiguidade de Kafka, em quem o destino adverso da biografia é transfigurado pela férrea lógica da arte.


Se santo Agostinho não tivesse escrito as "Confissões", a "Carta ao Pai", de Kafka, seria um livro único; ninguém que os tenha percorrido pode ignorar a curiosa série de semelhanças que há entre eles


A identificação de sua vida inacabada (suas relações familiares, amorosas, sua doença, sua morte) com sua obra inacabada (textos inconclusos, inéditos, desmembrados, póstumos) é evidente, e essa perfeita coincidência permite sugerir que, consciente ou não, havia acima dela uma vontade unificadora. A total coerência de seus fracassos transfigurados em imagem perene por sua literatura não é de ordem psicológica ou biográfica, mas estética. E, se Joachim Unseld, em seu interessante livro "Franz Kafka -Uma Vida de Escritor", concebido para demonstrar que Kafka era um autor como outro qualquer, que queria ser publicado em vida e aspirava a se relacionar normalmente com seu editor e com seus leitores, consegue nos convencer apenas parcialmente de sua tese, é porque ele próprio conta que, numa carta a seu editor, quando estavam negociando a publicação de seu primeiro livro, Kafka sugere: "Se eu fosse o senhor, não publicaria esse livro".

Agostinho e Kafka Se santo Agostinho não tivesse escrito as "Confissões", a "Carta ao Pai" seria um livro único. Nenhum leitor que tenha percorrido os dois livros pode ignorar a curiosa (e longa) série de semelhanças que há entre eles. E, embora se busque em vão qualquer menção a santo Agostinho entre as referências literárias que aparecem nos diários, a tentação de pensar que as "Confissões" eram o modelo que Kafka tinha em mente ao escrever sua carta é inevitável, porque é suscitada pela própria experiência da leitura.
Os dois livros têm uma estrutura idêntica: alternam a narração em primeira e segunda pessoa, a introspecção e a interpelação de um interlocutor ausente; num deles, um filho que fala ao pai; no outro, um fiel que fala a seu deus. E, como sabemos, a relação de um filho com seu pai é proporcional à de um fiel com seu deus. Considerando a inclinação natural de Kafka por símbolos e alegorias, custa-nos aceitar que ele não tenha pensado um instante nem sequer na possível identificação dos dois destinatários. Em ambos os textos, em todo caso, a postura de quem fala em relação ao interlocutor ausente é a mesma: temor, culpa e amor por alguém de quem não se tem certeza de obter reciprocidade (e nem sequer de merecê-la) constituem o essencial de seus sentimentos e de suas emoções.
Nora Catelli afirma no prólogo: "É evidente que seria difícil imaginar um contexto de ficção para a carta. Mas não é menos difícil pensar nela como fruto de um impulso". Esse fato, evidentemente, não basta para incluir a carta no campo da ficção, mas, ao assinalar seu caráter intencional, estabelece certa semelhança com as "Confissões", que, segundo alguns historiadores, poderiam não ter sido a autobiografia espiritual de um indivíduo, e sim um mero texto coletivo de propaganda eclesiástica.
E há uma observação do professor García de la Fuente, em sua introdução às "Confissões", que assume, para este exercício comparativo, uma ressonância mais afim à idéia que fazemos de Kafka do que ao texto agostiniano: "Vale dizer que não há nas "Confissões" sinais da apologia que Agostinho teria feito de sua própria vida contra seus adversários. Mais que se defender, o que o autor faz é se acusar".
Ficção ou autobiografia, graça ou perdição, consolo ou reprimenda, acusação ou culpa, confissão ou imprecação: é sempre a mesma escolha mal dissimulada pelas circunstâncias a que nos deixam os que, depois de nos levarem até o incompreensível, se retiram, para azar de nosso pobre apetite de comunhão, instalando-se nas brumas de sua distância.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.



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