São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

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Casanova em Viena

Coautor de "As Mulheres de Freud" faz balanço das relações femininas com o fundador da psicanálise

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Por um lado, Sigmund Freud é o "patriarca condescendente que condena as mulheres a uma única satisfação: a maternidade"; por outro, o "libertador potencial que ouve com atenção os relatos das mulheres e nega qualquer "essência" determinante da feminilidade". Assim John Forrester, professor de história da ciência na Universidade de Cambridge, e a escritora Lisa Appignanesi, casados e autores de "As Mulheres de Freud", resumem algumas nuances de sua relação com o feminino. O livro, de 1992, está sendo lançado no Brasil pela Record (trad. Sofia Maria de Sousa Silva e Nana Vaz de Castro, 728 págs., R$ 89,90). Aborda a relação pessoal de Freud com parentes, colaboradoras e pacientes que ele considerava suas "professoras", como diz Forrester nesta entrevista à Folha.

 

FOLHA - De que maneira a história da psicanálise é alterada pela perspectiva escolhida para o livro?
JOHN FORRESTER -
A descoberta de que a primeira pessoa a praticar psicanálise depois de Freud foi uma mulher, Emma Eckstein, representou uma revelação impressionante. O lento surgimento das maneiras complexas, porém reais, pelas quais a psicanálise foi, desde o começo, uma "profissão de mulher" se tornou um tema muito inspirador e significativo, que não havíamos planejado no começo. A pesquisa do debate psicanalítico sobre a feminilidade revelou quão pouco até mesmo os mais próximos colegas de Freud compreendiam sua notória posição ("inveja do pênis") e quanto essa posição era distintiva e incomum. Recentemente, tive ocasião de rememorar as passagens que escrevemos sobre o relacionamento entre Lou Andreas-Salomé e Freud. Um gato de rua entrou pela janela do consultório dele e Lou e o gato terminaram combinados em seu retrato da perfeita suficiência do narcisismo para certas mulheres belas (como Lou). Antes, a história da psicanálise havia sido dominada por três correntes: a biográfica; a história da psicanálise como parte da história intelectual e história da ciência; a história da psicanálise como movimento baseado em pequenos grupos que se tornaram sociedades e um movimento internacional. Creio que tenhamos conseguido combinar as três correntes e oferecer uma nova perspectiva, a de que a psicanálise é uma história tanto feminina quanto masculina.

FOLHA - Intelectuais feministas hoje respondem por algumas das mais fortes críticas a Freud, denunciando-o por misoginia e impugnando até mesmo sua honestidade e competência médicas. As críticas são justas?
FORRESTER -
É raro encontrar intelectuais feministas que critiquem a competência ou a honestidade médicas de Freud. São os homens que se especializam nessa linha de crítica. Não creio que a questão seja definir as críticas como justas ou não, mas avaliar sua precisão. Não estou convencido de que Freud tenha sido mais desonesto ou incompetente que a maioria dos médicos ou cientistas.

FOLHA - O sr. alude a Freud como uma mistura de "Hegel e Casanova", especialmente se considerado o conceito de transferência do amor. Este conceito é uma dimensão tipicamente masculina da empreitada freudiana?
FORRESTER -
O relato de Freud sobre o "amor-transferência" toma como exemplo uma paciente que se apaixona por seu psicanalista. Poderíamos perguntar se esse conceito seria diferente para um paciente masculino de um médico ou de uma médica. A literatura psicanalítica está repleta de exemplos bizarros de "amor-transferência" indevido, de modo que a resposta precisa ser não. E será que "paixão e sedução" são prerrogativas masculinas? Certamente não.

FOLHA - Jung ajudou, no final de sua vida, a espalhar o boato de que houve um caso de amor entre Freud e Minna (cunhada de Freud). Trata-se de uma intriga de um ex-amigo?
FORRESTER -
Continuo a considerar pouco provável que esse boato seja verdade, pelo menos na forma como Jung o promoveu. Parece provável que Freud e Minna tenham dividido um quarto, durante uma viagem de férias em 1897. O livro de hóspedes de um hotel, recentemente descoberto, serve como prova. Mas Freud e Minna dormiram em quartos adjacentes por décadas e o único acesso ao quarto de Minna era pelo quarto de Freud e Martha [sua mulher]. Será que isso torna provável que eles tivessem um "ménage à trois" estável? Parece-me improvável.

FOLHA - Outras especulações se referem à aparente "veneração" recíproca que existia entre Freud e sua filha Anna. O que o sr. diz sobre isso?
FORRESTER -
"A Antígona de Freud", como ele mesmo disse, serve como um bom resumo. Parece provável que Anna tenha investido grande parte de sua vida interior no pai, por respeito, veneração e admiração -um sentimento que costumamos definir pela palavra amor. Certamente Anna fez muito por tentar preservar certa imagem idealizada de seu pai, ao tentar tomar o controle da liberação de documentos até então inéditos e das regras para acesso aos arquivos. Freud foi cúmplice da filha, seria possível dizer, nessa abdicação que ela exibiu em favor do pai.

FOLHA - Os rumores sobre a infidelidade de Freud podem estar relacionados a um distanciamento entre ele e sua mulher?
FORRESTER -
Há indicações, presentes no trabalho de Peter Gay ["Freud", Cia. das Letras], de que Sigmund e Martha continuaram fazendo sexo até bem depois dos 60 anos dele. Martha certamente não oferecia companhia intelectual a Freud -papel que cabia a Minna, na década de 1890. No entanto, existem muito poucos indícios de que tenha havido uma notável quebra de comunicação entre Freud e Martha, em qualquer nível.

FOLHA - Ele tinha uma "mulher ideal" pessoal?
FORRESTER -
Uma mistura de Lou, Minna e Anna.


Tradução de Paulo Migliacci.


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