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Casanova em Viena
Coautor de
"As Mulheres de Freud" faz balanço das relações femininas com
o fundador
da psicanálise
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Por um lado, Sigmund
Freud é o "patriarca
condescendente que
condena as mulheres
a uma única satisfação: a maternidade"; por outro,
o "libertador potencial que ouve com atenção os relatos das
mulheres e nega qualquer "essência" determinante da feminilidade". Assim John Forrester, professor de história da
ciência na Universidade de
Cambridge, e a escritora Lisa
Appignanesi, casados e autores
de "As Mulheres de Freud", resumem algumas nuances de
sua relação com o feminino.
O livro, de 1992, está sendo
lançado no Brasil pela Record
(trad. Sofia Maria de Sousa Silva e Nana Vaz de Castro, 728
págs., R$ 89,90). Aborda a relação pessoal de Freud com parentes, colaboradoras e pacientes que ele considerava suas
"professoras", como diz Forrester nesta entrevista à Folha.
FOLHA - De que maneira a história
da psicanálise é alterada pela perspectiva escolhida para o livro?
JOHN FORRESTER - A descoberta
de que a primeira pessoa a praticar psicanálise depois de
Freud foi uma mulher, Emma
Eckstein, representou uma revelação impressionante.
O lento surgimento das maneiras complexas, porém reais,
pelas quais a psicanálise foi,
desde o começo, uma "profissão de mulher" se tornou um
tema muito inspirador e significativo, que não havíamos planejado no começo.
A pesquisa do debate psicanalítico sobre a feminilidade
revelou quão pouco até mesmo
os mais próximos colegas de
Freud compreendiam sua notória posição ("inveja do pênis") e quanto essa posição era
distintiva e incomum.
Recentemente, tive ocasião
de rememorar as passagens
que escrevemos sobre o relacionamento entre Lou Andreas-Salomé e Freud. Um gato
de rua entrou pela janela do
consultório dele e Lou e o gato
terminaram combinados em
seu retrato da perfeita suficiência do narcisismo para certas
mulheres belas (como Lou).
Antes, a história da psicanálise havia sido dominada por três
correntes: a biográfica; a história da psicanálise como parte
da história intelectual e história da ciência; a história da psicanálise como movimento baseado em pequenos grupos que
se tornaram sociedades e um
movimento internacional.
Creio que tenhamos conseguido combinar as três correntes e
oferecer uma nova perspectiva,
a de que a psicanálise é uma
história tanto feminina quanto
masculina.
FOLHA - Intelectuais feministas hoje respondem por algumas das mais
fortes críticas a Freud, denunciando-o por misoginia e impugnando até
mesmo sua honestidade e competência médicas. As críticas são justas?
FORRESTER - É raro encontrar
intelectuais feministas que critiquem a competência ou a honestidade médicas de Freud.
São os homens que se especializam nessa linha de crítica. Não
creio que a questão seja definir
as críticas como justas ou não,
mas avaliar sua precisão. Não
estou convencido de que Freud
tenha sido mais desonesto ou
incompetente que a maioria
dos médicos ou cientistas.
FOLHA - O sr. alude a Freud como
uma mistura de "Hegel e Casanova", especialmente se considerado o
conceito de transferência do amor.
Este conceito é uma dimensão tipicamente masculina da empreitada
freudiana?
FORRESTER - O relato de Freud
sobre o "amor-transferência"
toma como exemplo uma paciente que se apaixona por seu
psicanalista. Poderíamos perguntar se esse conceito seria diferente para um paciente masculino de um médico ou de uma
médica. A literatura psicanalítica está repleta de exemplos
bizarros de "amor-transferência" indevido, de modo que a
resposta precisa ser não. E será
que "paixão e sedução" são
prerrogativas masculinas? Certamente não.
FOLHA - Jung ajudou, no final de
sua vida, a espalhar o boato de que
houve um caso de amor entre Freud
e Minna (cunhada de Freud). Trata-se de uma intriga de um ex-amigo?
FORRESTER - Continuo a considerar pouco provável que esse
boato seja verdade, pelo menos
na forma como Jung o promoveu. Parece provável que Freud
e Minna tenham dividido um
quarto, durante uma viagem de
férias em 1897. O livro de hóspedes de um hotel, recentemente descoberto, serve como
prova. Mas Freud e Minna dormiram em quartos adjacentes
por décadas e o único acesso ao
quarto de Minna era pelo quarto de Freud e Martha [sua mulher]. Será que isso torna provável que eles tivessem um
"ménage à trois" estável? Parece-me improvável.
FOLHA - Outras especulações se referem à aparente "veneração" recíproca que existia entre Freud e sua
filha Anna. O que o sr. diz sobre isso?
FORRESTER - "A Antígona de
Freud", como ele mesmo disse,
serve como um bom resumo.
Parece provável que Anna tenha investido grande parte de
sua vida interior no pai, por respeito, veneração e admiração
-um sentimento que costumamos definir pela palavra amor.
Certamente Anna fez muito
por tentar preservar certa imagem idealizada de seu pai, ao
tentar tomar o controle da liberação de documentos até então
inéditos e das regras para acesso aos arquivos. Freud foi cúmplice da filha, seria possível dizer, nessa abdicação que ela
exibiu em favor do pai.
FOLHA - Os rumores sobre a infidelidade de Freud podem estar relacionados a um distanciamento entre
ele e sua mulher?
FORRESTER - Há indicações, presentes no trabalho de Peter Gay
["Freud", Cia. das Letras], de
que Sigmund e Martha continuaram fazendo sexo até bem
depois dos 60 anos dele.
Martha certamente não oferecia companhia intelectual a
Freud -papel que cabia a Minna, na década de 1890. No entanto, existem muito poucos
indícios de que tenha havido
uma notável quebra de comunicação entre Freud e Martha,
em qualquer nível.
FOLHA - Ele tinha uma "mulher
ideal" pessoal?
FORRESTER - Uma mistura de
Lou, Minna e Anna.
Tradução de Paulo Migliacci.
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