São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Vou lá comer bifes"

Com obra sendo relançada na Argentina, onde viveu entre 1946 e 1947, o escritor Monteiro Lobato manteve vínculos intelectuais e editoriais com o país vizinho durante quase 30 anos

Arquivo de família
Monteiro Lobato (1882-1948) com a mulher, Purezinha, e a filha Ruth em Buenos Aires

ADRIANA MARCOLINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BUENOS AIRES

O que a presidente argentina Cristina Kirchner e a ensaísta Beatriz Sarlo têm em comum, além de serem mulheres e terem nascido no mesmo país? Ambas, quando eram crianças, leram Monteiro Lobato. "O Visconde de Sabugosa, o sabugo de milho que era um sábio, me encantava", lembra Beatriz Sarlo, atualmente uma das mais respeitadas intelectuais argentinas.
Mudaram os tempos. Passaram-se as gerações. E o autor brasileiro, cuja obra andava meio esquecida na Argentina depois que seus livros infantis tiveram um boom entre os anos 1940 e 1960, volta a ser publicado no país vizinho.
"Reinações de Narizinho", que na Argentina tem o sugestivo título "Las Travesuras de Naricita", foi o escolhido. A obra sai em reedição da Losada [170 págs., 39 pesos, R$ 18], uma das editoras responsáveis pela difusão de Lobato em espanhol, em parceria com a embaixada brasileira. O lançamento aconteceu ontem, no estande do Brasil na 36ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires.
O retorno de Monteiro Lobato ao cenário editorial portenho nos remete a um aspecto não muito conhecido de sua vida: o período de um ano, entre 1946 e 1947, que ele passou em Buenos Aires. "Vou lá comer bifes", declarou quando lhe perguntaram o motivo da sua partida. Segundo Edgar Cavalheiro, autor de "Monteiro Lobato - Vida e Obra" [ed. Brasiliense, 1956], a mais abrangente biografia do escritor, embora Lobato estivesse insatisfeito com a situação no Brasil, a viagem à Argentina já estava planejada havia anos.
Suas obras infantis tinham recebido grandes tiragens no país do Prata, que naqueles anos vivia um momento editorial promissor. Com a notoriedade que havia alcançado no Brasil e a consolidação na Argentina, Monteiro Lobato passava realmente a viver da renda de seus livros.
Em uma das muitas cartas trocadas com seu amigo Godofredo Rangel, escreveu: "Creio que me tornarei comum de dois países, pois vivo de livros e os que tenho aqui em exploração os terei também lá, todos, este ano. Cada livro considero uma vaca holandesa que me dá o leite de subsistência".
A relação entre o escritor e intelectuais argentinos teve início em 1919 e se prolongou até sua morte, conforme explica a pesquisadora Thaís de Mattos Albieri, que estudou o período de Lobato na Argentina. Foi construída por meio de cartas e artigos de jornais, numa via de mão dupla que, de um lado, incluía textos de Lobato (e sobre ele) na imprensa de Buenos Aires. E, de outro, artigos de autores argentinos que publicava na "Revista do Brasil" e livros que lançava por sua editora, a Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato.
O escritor utilizou, na Argentina, a mesma estratégia adotada no Brasil para divulgar seu trabalho: a publicação de contos, ou de trechos de obras, em jornais e revistas, para se fazer conhecido antes de sair em livro. Assim foi com "Urupês", lançado em 1921 pela Editorial Patria, de Buenos Aires -seu primeiro livro a sair na Argentina. No sentido inverso, Lobato lançava no Brasil, em 1924, o romance "Nacha Regules", de Manuel Gálvez.
Esse fértil intercâmbio levou-o naturalmente a morar na Argentina, na certeza de que deveria divulgar mais sua obra para o público leitor local. E assim aconteceu. O escritor fixou residência na rua Sarmiento, 2.608, em pleno centro de Buenos Aires.
Durante sua estadia portenha, aprofundou as relações com os intelectuais locais, cuidou da edição de suas obras e estreitou o vínculo com os leitores infantis, participando de inúmeros encontros nas escolas. Sua popularidade chegou a ser tão grande que, em setembro de 1946, o magazine Harrod's promovia a "Semana Monteiro Lobato".
Poucos meses depois de chegar, associava-se a dois argentinos, Ramón Prieto e Miguel Pilato, na fundação da editora Acteón. Para Lobato, era a oportunidade de reviver os tempos em que era o editor e o gerente de sua própria obra.
A nova casa editorial publicou com êxito "Las Doce Hazañas de Hercules" [Os Doze Trabalhos de Hércules] e em 1947 lançou "La Nueva Argentina" [A Nova Argentina]. A obra foi escrita diretamente em espanhol e até hoje pairam dúvidas se teria sido uma encomenda do governo.
Lobato assinou-a com o pseudônimo de Miguel P. García. No livro, voltado para crianças, Dom Justo Saavedra, pai de dois garotos, explica aos filhos o que é o plano quinquenal do general Juán Domingo Perón. Teve uma tiragem de 3.000 exemplares e, apesar de o governo argentino ter ensaiado a encomenda de uma tiragem de 100 mil, o projeto não se concretizou. A Acteón seria fechada pouco tempo depois.
Logo em seguida, sentindo "nostalgia da língua", como ele mesmo declara, Lobato retornava para o Brasil, concluindo o capítulo portenho de sua biografia. O escritor viria a morrer um ano após sua volta, depois de ter sido a "ponte literária" entre Brasil e Argentina ao longo de 29 anos.


Texto Anterior: Casanova em Viena
Próximo Texto: "Hermano" Lobato
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.