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"Vou lá comer bifes"
Com obra sendo relançada na Argentina, onde viveu entre 1946
e 1947, o escritor Monteiro Lobato manteve vínculos intelectuais
e editoriais com o país vizinho durante quase 30 anos
Arquivo de família
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Monteiro Lobato (1882-1948) com a mulher, Purezinha, e a filha Ruth em Buenos Aires
ADRIANA MARCOLINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE
BUENOS AIRES
O que a presidente
argentina Cristina
Kirchner e a ensaísta Beatriz Sarlo têm em comum,
além de serem mulheres e terem nascido no mesmo país?
Ambas, quando eram crianças,
leram Monteiro Lobato. "O
Visconde de Sabugosa, o sabugo de milho que era um sábio,
me encantava", lembra Beatriz
Sarlo, atualmente uma das
mais respeitadas intelectuais
argentinas.
Mudaram os tempos. Passaram-se as gerações. E o autor
brasileiro, cuja obra andava
meio esquecida na Argentina
depois que seus livros infantis
tiveram um boom entre os
anos 1940 e 1960, volta a ser
publicado no país vizinho.
"Reinações de Narizinho",
que na Argentina tem o sugestivo título "Las Travesuras de
Naricita", foi o escolhido. A
obra sai em reedição da Losada
[170 págs., 39 pesos, R$ 18],
uma das editoras responsáveis
pela difusão de Lobato em espanhol, em parceria com a embaixada brasileira. O lançamento aconteceu ontem, no
estande do Brasil na 36ª Feira
Internacional do Livro de Buenos Aires.
O retorno de Monteiro Lobato ao cenário editorial portenho nos remete a um aspecto
não muito conhecido de sua vida: o período de um ano, entre
1946 e 1947, que ele passou em
Buenos Aires. "Vou lá comer
bifes", declarou quando lhe
perguntaram o motivo da sua
partida. Segundo Edgar Cavalheiro, autor de "Monteiro Lobato - Vida e Obra" [ed. Brasiliense, 1956], a mais abrangente biografia do escritor, embora
Lobato estivesse insatisfeito
com a situação no Brasil, a viagem à Argentina já estava planejada havia anos.
Suas obras infantis tinham
recebido grandes tiragens no
país do Prata, que naqueles
anos vivia um momento editorial promissor. Com a notoriedade que havia alcançado no
Brasil e a consolidação na Argentina, Monteiro Lobato passava realmente a viver da renda
de seus livros.
Em uma das muitas cartas
trocadas com seu amigo Godofredo Rangel, escreveu: "Creio
que me tornarei comum de
dois países, pois vivo de livros e
os que tenho aqui em exploração os terei também lá, todos,
este ano. Cada livro considero
uma vaca holandesa que me dá
o leite de subsistência".
A relação entre o escritor e
intelectuais argentinos teve
início em 1919 e se prolongou
até sua morte, conforme explica a pesquisadora Thaís de
Mattos Albieri, que estudou o
período de Lobato na Argentina. Foi construída por meio de
cartas e artigos de jornais, numa via de mão dupla que, de
um lado, incluía textos de Lobato (e sobre ele) na imprensa
de Buenos Aires. E, de outro,
artigos de autores argentinos
que publicava na "Revista do
Brasil" e livros que lançava por
sua editora, a Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato.
O escritor utilizou, na Argentina, a mesma estratégia adotada no Brasil para divulgar seu
trabalho: a publicação de contos, ou de trechos de obras, em
jornais e revistas, para se fazer
conhecido antes de sair em livro. Assim foi com "Urupês",
lançado em 1921 pela Editorial
Patria, de Buenos Aires -seu
primeiro livro a sair na Argentina. No sentido inverso, Lobato lançava no Brasil, em 1924, o
romance "Nacha Regules", de
Manuel Gálvez.
Esse fértil intercâmbio levou-o naturalmente a morar
na Argentina, na certeza de que
deveria divulgar mais sua obra
para o público leitor local. E assim aconteceu. O escritor fixou
residência na rua Sarmiento,
2.608, em pleno centro de Buenos Aires.
Durante sua estadia portenha, aprofundou as relações
com os intelectuais locais, cuidou da edição de suas obras e
estreitou o vínculo com os leitores infantis, participando de
inúmeros encontros nas escolas. Sua popularidade chegou a
ser tão grande que, em setembro de 1946, o magazine Harrod's promovia a "Semana
Monteiro Lobato".
Poucos meses depois de chegar, associava-se a dois argentinos, Ramón Prieto e Miguel Pilato, na fundação da editora
Acteón. Para Lobato, era a
oportunidade de reviver os
tempos em que era o editor e o
gerente de sua própria obra.
A nova casa editorial publicou com êxito "Las Doce Hazañas de Hercules" [Os Doze Trabalhos de Hércules] e em 1947
lançou "La Nueva Argentina"
[A Nova Argentina]. A obra foi
escrita diretamente em espanhol e até hoje pairam dúvidas
se teria sido uma encomenda
do governo.
Lobato assinou-a com o
pseudônimo de Miguel P. García. No livro, voltado para
crianças, Dom Justo Saavedra,
pai de dois garotos, explica aos
filhos o que é o plano quinquenal do general Juán Domingo
Perón. Teve uma tiragem de
3.000 exemplares e, apesar de
o governo argentino ter ensaiado a encomenda de uma tiragem de 100 mil, o projeto não
se concretizou. A Acteón seria
fechada pouco tempo depois.
Logo em seguida, sentindo
"nostalgia da língua", como ele
mesmo declara, Lobato retornava para o Brasil, concluindo
o capítulo portenho de sua biografia. O escritor viria a morrer
um ano após sua volta, depois
de ter sido a "ponte literária"
entre Brasil e Argentina ao longo de 29 anos.
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