São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Estamos condenados a perceber o clássico de Homero do ângulo acanhado de nossa própria época
A Ilíada entre leigos

OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação

Muitos livros são considerados clássicos, mas a "Ilíada" é, ao lado da "Odisséia", o clássico dos clássicos. Compostos no século 8 a.C. por alguém que os antigos chamavam de Homero, os dois poemas são considerados o ponto de partida da literatura ocidental e serviram como cartilha de toda a educação humanística desde a Antiguidade até mais ou menos a Primeira Guerra Mundial, quando o estudo do grego confinou-se aos departamentos especializados.
Ao nos aproximarmos, cheios de reverência, de um texto assim, quase sempre esperamos encontrar um mundo de formulações tanto vagas como rígidas, congeladas em mármore, e quase sempre nos surpreendemos com a vivacidade, com o colorido vibrante do original. Entrevemos o selvagem, o particular e o inesperado que ainda palpitam sob a consagração do clássico. É o caso da "Ilíada". Para ilustrar o ponto, vale reproduzir o desenlace de uma das incontáveis cenas de combate que pululam entre os 16 mil versos do poema, aquela em que o rei de Creta, Idomeneu, golpeia o troiano Erimante ("Canto 16", versos 345 a 350):
"O bronze cruel justamente na boca enterrou de Erimante
Idomeneu, trespassando-lhe a lança comprida a cabeça
e indo por baixo do cérebro a ponta de bronze, que os brancos
ossos lhe quebra, bem como inda os dentes; os olhos se lhe enchem
de negro sangue, que jorra abundante das fauces abertas
e das narinas. A nuvem da morte envolveu o guerreiro" (1).
O tom empolado da tradução não oculta o gosto quase sensacionalista pelo pormenor horripilante. Nietzsche observou que Homero, dado como cego pela tradição, é o mais visual dos poetas. Sua tendência a exibir detidamente todos os planos da narrativa em cada aspecto isolado, não importa se prosaico ou tétrico, faria parte daquela propensão a nada deixar "na penumbra ou inacabado", que um crítico posterior, Erich Auerbach, definiu como o cerne de seu estilo. O primeiro impacto da "Ilíada" sobre o leitor leigo e desavisado será o de seu extremo detalhismo visual-auditivo.
Cravadas nas vísceras dos combatentes, as lanças ainda fremem ao ritmo das últimas pulsações cardíacas; quando os corpos desabam, o poeta relata o clangor das armaduras de bronze e a poeira que o choque levanta; olhos são arrancados das órbitas, braços dos soquetes de osso, cada morte se apresenta em medonha particularidade. A guerra em Homero nada tem da serenidade que julgaríamos encontrar num "clássico". Embora haja hiatos de artificialismo, em que os heróis lançam imprecações e às vezes até discorrem, em plena batalha, sobre a própria genealogia (quando não trocam cortesias marciais...), em regra os enxames de soldados se combatem furiosamente e às tontas, empurrados pelo terror em meio ao caos.
Pense na sequência inicial de "O Resgate do Soldado Ryan", de Steven Spielberg: apesar das diferenças tecnológicas, a atmosfera do campo de batalha em Homero se parece com ela, e consta que uma recente edição americana da "Ilíada" trazia na capa, com efeito, uma imagem do desembarque aliado na Normandia. Na precisão narrativa da "Ilíada" e da "Odisséia", no seu carrossel de cenários, na técnica de sempre "mostrar" o que está sendo narrado, no predomínio das cenas de ação física, temperadas no entanto por intervalos domésticos e intimistas, na maneira de complicar e resolver o argumento -em todos esses traços somos tentados a identificar um substrato "cinematográfico" em Homero.
Claro que por meio desse anacronismo é o clássico quem nos prega uma peça, pois cada época vê o que quer (ou pode) em Homero. Não é que o poeta tenha inventado uma linguagem que antecedesse em 27 séculos o equipamento técnico capaz de realizá-la, mas somos nós, ao contrário, que só podemos "acessar" o poema por meio dessa linguagem, não por acaso a nossa. Uma maneira de definir um clássico é dizer que sua compreensão nos escapa justamente quando pensamos tê-la atingido. Sabemos que o clássico tem validade e aplicação universais, a história nos dá testemunho suficiente disso, mas estamos condenados a percebê-lo do ângulo acanhado da nossa própria época.
O que não significa que as épocas não "dialoguem" em torno dos clássicos, nem que esse "diálogo" não seja intrincado e fecundo, resvalando muitas vezes para contendas minuciosas e nem por isso menos ásperas, sobretudo no caso da exegese de Homero, fruto do mais venerável e antigo dos sacerdócios universitários. Nesta leitura amadorística da "Ilíada", passemos ao largo de tais batalhas literárias como o faria o mais poltrão e inepto dos hoplitas, dedicando-nos a amenidades vedadas ao estudioso.
É quase certo que um grego antigo consideraria as narrativas de um herói que não consegue parar de fumar ("A Consciência de Zeno"), de outro que se vê convertido em inseto ("A Metamorfose") e de ainda outro que mata um estranho na praia por conta do calor sufocante ("O Estrangeiro") como respectivamente idiota, absurda e frívola. Poderíamos retribuir a adjetivação quando confrontados com o entrecho, descarnado de poesia e aura, da "Ilíada". Todo mundo ainda é "marxista" o bastante para acreditar que o mito do rapto de Helena por Páris é mera abreviatura poética de toda uma economia geográfica, a do mar Egeu -o Mediterrâneo dos gregos-, cujo comércio eles passaram a controlar nos séculos subsequentes à Guerra de Tróia, provavelmente em resultado dela.
Não falta materialismo na "Ilíada"; qualquer impasse se resolve mediante um bom resgate em metal, e quem dá o exemplo são desde logo os deuses, sempre volúveis nas suas disposições, aplacados sempre por oferendas, como é próprio do politeísmo. Mesmo assim, e sem embargo das relações de poder subjacentes, o móvel das ações remanesce em larga medida no domínio do imaterial, vinculado a questiúnculas de primazia, honra, orgulho, castidade etc. É por vaidade ferida que Agamêmnon, comandante-em-chefe dos gregos, provoca o afastamento de Aquiles, que tão nefastas consequências teria sobre o exército invasor, no episódio pelo qual começa a "Ilíada". É pelo mesmo motivo que Aquiles e suas tropas assistem impassíveis ao massacre de seus compatriotas na investida de Héctor contra os navios gregos; quando Aquiles volta à batalha, é somente para vingar o amigo Pátroclo, morto pelo príncipe troiano.
Para onde quer que o leitor de hoje se volte, na "Ilíada", o que ele depara é um espetáculo de ações impregnadas de enorme vitalidade, nucleares como se figurassem qualidades emocionais em estado quimicamente puro, mas ao mesmo tempo quase incompreensíveis ao se desdobrarem em sua irracionalidade prática, quase aberrantes na exaltação da ira, do egoísmo cru, do direito do mais forte, de tudo, enfim, que aprendemos a abominar. O véu do "clássico" ocultava que essa é uma sociedade pagã.
Os deuses são, para os antigos gregos, o que seriam as criaturas humanas caso dotadas de vigor e beleza perenes, além de extraordinários. O resultado é que, se a luta entre mortais, embora animada também pelo que parecem ser tolas veleidades, é terrível pelas consequências irreparáveis (era isso, talvez, o que Eurípides invectivava nos deuses), entre os imortais ela não passa de um jogo inconsequente, às vezes ostensivamente cômico. Com o propósito de distrair a atenção de Zeus, por exemplo, sua mulher Hera capricha na toalete e logra seduzi-lo, o que não é pouco em se tratando de casamento tão burocrático e de marido tão concupiscente; em outra cena, a mesma Hera se engalfinha com Ártemis, toma-lhe a célebre aljava e espanca a colega com ela.
A Zeus agrada ver seus pares empenhados num e noutro lado da refrega. Toda cautela política seria pouca, de fato, no caso de família com os péssimos antecedentes da sua, em que o assassinato (a começar dele próprio, parricida confesso), a perfídia e a baixeza são o feijão-com-arroz. Zeus pende para os gregos, mas tem descendentes em ambas as fileiras, mercê de sua ecumênica atividade copulativa. Hera e Atena, a quem Páris recusara o prêmio de beleza para outorgá-lo a Afrodite, têm boas razões para militar pelos gregos; Posêidon, frustrado em alguma prerrogativa de que se julgava credor, também. Infelizmente para Tróia, as divindades que se alistam a seu lado -Afrodite, Apolo, Ártemis, Ares- mostram-se negligentes, a ponto de Apolo, sempre blasê, chegar a dizer ("Canto 21", verso 467):
"Da dura guerra abstenhamo-nos; que eles (homens), apenas, combatam".
Pode-se presumir que a "Ilíada", com todo seu escotismo adulto, corresponderia melhor a certa inclinação do leitor masculino, ao passo que a "Odisséia", narrativa de um sujeito que as mais fantásticas peripécias marítimas não distraem da idéia fixa de voltar ao regaço da esposa, seria mais do agrado das mulheres. Assim como Odisseu é o protagonista daquele poema, Aquiles é o herói inequívoco da "Ilíada", ainda que ele permaneça eclipsado durante a maior parte da trama.
Em contraste com sua disposição atlética, impulsiva, Aquiles é estranhamente um melancólico. Houve quem sugerisse que esse estado de espírito seria indício do crepúsculo da idade heróica, em via de ser substituída pelo "calculismo burguês" de Odisseu. Nunca atinamos bem o porquê de Aquiles, tão favorecido pelo próprio DNA quanto pelos deuses, descendente direto, aliás, de um deles, viver imerso em melancolia para nós "hamletiana" (da mesma forma que nos soaria "learesca" a humilhação de Príamo), resumida nesse solilóquio ("Canto 9", versos 401-402 e 410 a 416):
"A minha vida, sem dúvida, vale bem mais do que quanto
dizem que Tróia possuía, a cidade de belo traçado (...)
Tétis, a deusa dos pés argentinos, de quem fui nascido,
já me falou sobre o dúplice Fado que à Morte há de dar-me:
se continuar a lutar ao redor da cidade de Tróia,
não voltarei mais à pátria, mas glória hei de ter sempiterna;
se para casa voltar, para o grato torrão de nascença,
da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa
conseguirei, sem que o termo da Morte mui cedo me alcance".
No mito de Aquiles, a aniquilação das aparências é a triste condição para que o fluxo da vida siga seu curso infatigável, mas ao olho treinado pela psicanálise não passaria despercebida, anacronicamente de novo, a clamorosa sintomatologia do herói, seu luto exacerbado, sua incapacidade de moderar os próprios ímpetos, seu desmesurado apego a um amigo (mais velho, não mais jovem como se pretende que Pátroclo seja) e à indefectível mãe superprotetora.
Mas de um ponto de vista "moderno" o verdadeiro herói da "Ilíada" é Héctor. Somos capazes de atribuir fumaças de cristianismo a esse príncipe, filho, marido e pai exemplar, que sem alarde censura Páris e Helena por sua conduta leviana; que protagoniza a célebre cena de amor familial em que se despede da mulher, Andrômaca, e do filhinho; que se porta com austera temeridade na guerra, o único, talvez, que está ali para cumprir uma obrigação e não para enriquecer, vingar-se ou envaidecer-se; que se limita a proteger sua cidade atacada por um exército estrangeiro; e que finalmente se oferece em holocausto a um inimigo mais forte, louco por vingança. Zeus cogita salvá-lo, mas Atena adverte que o homem é mortal, estando seu destino fixado, e o rei dos deuses lava as mãos exatamente como Pilatos na tradição cristã.
Enraizados em nosso profundo, inamovível anti-heroísmo, nem é preciso ressaltar que estamos igualmente distantes seja da tradição pagã, seja da cristã. Embora sejamos nominalmente cristãos, não é porque os homens hoje em dia portam pastas em vez de escudos que eles não se dilaceram em Wall Street como diante das muralhas de Tróia, ainda que o façam de maneira menos cruenta. O homem é sempre igual a si mesmo, essa é uma das conclusões do leitor anacrônico de Homero, ainda quando o seu ponto de vista provém de uma época utilitária, como a nossa, em que prevalecem os critérios destinados a assegurar o maior prazer médio em meio ao menor sofrimento médio. Nem sequer esse leitor filisteu sairá desapontado da "Ilíada". Assim como Tolstói se interrompe em meio aos romances (o que é "Guerra e Paz" se não mais uma paródia da "Ilíada"?) para ministrar verdadeiras aulas sobre equitação, diplomacia aplicada e agrimensura, Homero oferece todo um compêndio prático de carpintaria, navegação, medicina militar, metalurgia e até culinária, do qual destacamos, pela utilidade prática e em louvor do jornalismo de serviço, a seguinte receita de churrasco caseiro ("Canto 9", versos 205 a 215):
"Obedeceu, logo, Pátroclo, às ordens do amigo dileto.
E, junto ao lar colocando uma grande e vistosa travessa,
lombos pôs nela de cabra e de ovelha de velo nitente,
e o dorso inteiro de um porco selvagem, com muita gordura.
Automedonte o auxiliava; ele próprio as porções determina.
Logo os pedaços retalha e nas postas espetos enfia.
Pátroclo, igual a um dos deuses, prepara uma grande fogueira;
e, quando a lenha ficou toda gasta e o braseiro apagado,
a cinza quente espalhando, assadores sobre ela coloca.
O nobre Aquiles, depois, espalhou sal divino na carne.
Quando toda ela ficou bem assada, nos pratos a deita".


Notas
"Ilíada", de Homero, trad. de Carlos Alberto Nunes, Ediouro.
Agradeço a Paula da Cunha Corrêa, do departamento de letras clássicas e vernáculas da USP, pelas conversas, sugestões de leitura e especificamente pelas correções neste texto.




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