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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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+ literatura

Para a professora da USP Maria Elisa Cevasco, os crí ticos Antonio Candido e Roberto Schwarz estão entre os principais representantes da disciplina no mundo

Estudos culturais à brasileira

Maurício Santana Dias
da Redação

Dez Lições sobre Estudos Culturais" não é um simples comentário à disciplina que nos últimos anos vem mobilizando os departamentos das chamadas "ciências humanas" em universidades daqui e de fora do país. Fiel à tradição iniciada na Inglaterra, em fins dos anos 1950, por um grupo de marxistas que incluía o crítico Raymond Williams e o historiador E.P. Thompson, a professora da USP Maria Elisa Cevasco, 51, buscou situar historicamente a gênese da disciplina e o progressivo esvaziamento, em anos mais recentes, de seus propósitos políticos e de crítica social.
O objetivo da autora, portanto, é não apenas didático, como pode sugerir o título do livro, lançado há pouco pela editora Boitempo, mas também político, como se vê nesta entrevista: situar para o leitor brasileiro as linhas de força que se contrapõem no campo dos estudos culturais, sem deixar de tomar partido no debate, apontando vertentes que dariam continuidade à escola inglesa na análise da interpenetração dos fenômenos sociais e culturais -cujos principais representantes, no Brasil, seriam os críticos Antonio Candido e Roberto Schwarz.

Os estudos culturais são um campo vasto, que inclui várias disciplinas das chamadas ciências humanas e permite muitas definições. Como a sra. o definiria?
Os estudos culturais são os estudos do significado dos valores de uma determinada formação cultural. É uma disciplina que surgiu em resposta a uma mudança nos modos de organização da sociedade contemporânea, a chamada sociedade dos meios de comunicação de massa. O primeiro embate dos estudos culturais foi mudar a concepção de cultura. Até então, a concepção dominante via a cultura numa esfera separada da realidade socioistórica. Os estudos culturais superaram essa separação.


Maria Elisa Cevasco


Numa passagem de seu livro, lemos que "cultura é cada vez mais um produto feito e consumido para azeitar o funcionamento do sistema vigente". Se a cultura é isso, se o objeto dos estudos culturais é um mero "produto", o que a disciplina poderia ser?
Raymond Williams, que é um dos fundadores dos estudos culturais, tem uma formulação que acho que dá conta de sua questão. Ele diz que nenhum sistema, nenhuma ideologia, é tão forte que possa cobrir toda a esfera da produção humana. Como nosso sistema social é baseado numa contradição, sempre vai pulular no meio da coisificação o emergente. A tarefa do crítico cultural é tentar descobrir o elemento emergente, utópico, na cultura reificada, detectar onde está a contradição e de onde está surgindo o novo, aquilo que ainda não foi cooptado -embora saibamos que depois vá ser.

Às vezes parece que os estudos culturais vieram para tomar o lugar da prática política, para "culturalizar" a política. O que acha disso?
Você colocou o dedo numa das inspirações do meu projeto. Uma das razões que me levaram a escrever este livro hoje, no Brasil, é que uma das versões dos estudos culturais, a que tem mais chance de "pegar" aqui, é justamente essa versão que culturaliza a política e acha que a única política possível é a política cultural. Isso é uma bobagem. Há um crítico norte-americano muito em evidência, Lawrence Grossberg, que diz algo que exemplifica bem o que eu quero dizer. Ele afirma que os estudos culturais vieram para "politizar a cultura e culturalizar a política". A própria forma como ele o diz é a fórmula do slogan, que já revela a mercantilização da disciplina nessa versão que se internacionalizou a partir dos EUA. No livro, busquei mostrar ao público brasileiro que existe uma outra versão dos estudos culturais, um momento em que a crítica cultural teve relevância, foi uma forma de conhecimento da realidade social. O Brasil conta com um crítico como Antonio Candido, que vê a literatura como instrumento de descoberta e interpretação da realidade socioistórica, e essa é a melhor tradição dos estudos culturais.

Então haveria uma versão "espúria" e uma versão "autêntica"? E é essa versão "espúria" que estaria entrando nas universidades brasileiras?
Acho, mesmo porque essa é a versão mais fácil, que não vai fundo nas contradições do país, que não faz um trabalho de análise, limitando-se a um comentário. Ou seja, a maioria dos pesquisadores de hoje, com algumas exceções, não está levando adiante a tradição que se iniciou na Inglaterra no fim dos anos 50, com Williams, E.P. Thompson e outros. Hoje há uma tendência forte de fazer teoria pela teoria, desvinculada da esfera histórico-social, o que é um retrocesso. Ou seja, é o estado mais avançado da coisificação da crítica. No entanto ninguém é contra o exercício teórico. A teoria é fundamental para organizar a prática. Mas há também a má teoria, que derrapa no puro blablablá.

Dessa perspectiva, quais seriam os melhores exemplos de estudos culturais feitos no Brasil?
Antonio Candido e Roberto Schwarz. Um dos melhores trabalhos em estudos culturais no mundo é o "Duas Meninas", de Schwarz, embora ele nunca admitisse que o que está fazendo é estudos culturais.

Por quê?
Porque ele prefere dizer que está fazendo estudo literário, temendo ser confundido com o Grossberg. Nunca passaria pela cabeça dele estar fazendo estudos culturais, mas é isso que ele faz. Ao comparar Machado de Assis com Helena Morley, ele entra num campo canônico dos estudos culturais. Além disso ele pensa a forma cultural em relação dialética com a formação socioistórica.

Candido também acharia estranho ser incluído aí...
Acharia estranhíssimo. No entanto ele escreveu um livro sobre o caipira ["Os Parceiros do Rio Bonito"]. E o que é a "Dialética da Malandragem"? Portanto ele fez estudos culturais avant la lettre.

Para a sra., uma das tarefas dos estudos culturais seria perceber a emergência do novo. No Brasil, o que seria esse "novo"?
O "Cidade de Deus", de Paulo Lins.

E o que mais?
No teatro, a Companhia do Latão [dirigida por Sérgio de Carvalho]. "O Invasor", no cinema, bem como o próprio "Cidade de Deus" do Fernando Meirelles. Ele usa a linguagem da mercadoria, da propaganda, para falar da realidade de quem está excluído do consumo. O "Cronicamente Inviável" [de Sergio Bianchi] é excelente. O "Ônibus 174" [de José Padilha e Felipe Lacerda] também. Aliás, acho que o cinema brasileiro está passando por uma fase muito interessante. Enfim, as pessoas estão tentando compreender o que está acontecendo por meio da arte.

No final do seu livro, analisando "Duas Meninas", a sra. diz que a decadência econômica na Diamantina da virada do século 19 para o 20 permitiu um afrouxamento das explorações de classe, redução da iniquidade social etc. Isso quer dizer que é preciso haver decadência econômica para que as relações sociais se humanizem? Não haveria aí uma visão idealista ou idealizada da pobreza?
É preciso esclarecer esse ponto. Na verdade o objetivo da observação é mostrar que a idéia de progresso precisa ser relativizada: progresso a qualquer preço é sempre regressão. Era preferível não ter progresso e ter felicidade. Ninguém é contra a noção de progresso nem contra a sociedade de mercadorias. Queremos cada vez mais mercadorias -para todos.


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