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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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+ brasil 504 d.C.

ANDANÇAS COLONIAIS

por Evaldo Cabral de Mello

Ainda está por estudar a rotina da mobilidade horizontal no Brasil colonial, assunto que não tem a ver com o tema cenográfico do deslocamento geográfico e da expansão territorial, como na história do bandeirantismo, mas com a existência individual, que se presta idealmente à análise prosopográfica, uma vez organizado um abrangente corpo de documentação biográfica. As fontes relativas à visitação inquisitorial de finais do século 16 são, a esse respeito, valiosas, indicando que na existência cotidiana dos colonos houve mais intercâmbio regional, na acepção social e humana da palavra, e não apenas no econômico e político, do que sugerem os velhos estereótipos da sedentariedade e da monotonia inerentes a uma sociedade estratificada. Num estudo desse tipo, certas categorias socioprofissionais teriam de ser privilegiadas: os magistrados, os militares, os homens de negócio. O exemplo do poeta Bento Teixeira, o autor da "Prosopopéia", é apenas um entre muitos que se podem colher naqueles papéis. Nascido no Porto, Bento Teixeira habitou o Espírito Santo, a Bahia e Pernambuco, onde foi finalmente colhido nas malhas do Santo Ofício, que o mandou de volta para o reino. No seu depoimento, o poeta daria, aliás, o verdadeiro motivo da sua errância: a infidelidade da mulher, que o fazia por todo lugar objeto do ridículo público, a ponto de em Salvador lhe entornarem um urinol na cabeça. À saída do cárcere, Bento Teixeira publicará seu poema graças à proteção do terceiro donatário de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho, que na sua quinta lisboeta se recuperava das feridas de Alcácer-Quibir, ocasião em que, segundo a lenda cultivada ciosamente pela família, mas que lhe custará a antipatia castelhana, cedera seu cavalo a d. Sebastião para que El Rei pudesse fugir da mourama.

Os sam-paulistas
Há anos, estudando a guerra dos mascates, topei com paulistas, ou sam-paulistas, como se dizia na época, que, derrotados por reinóis e baianos na Guerra dos Emboabas em torno dos controles das minas, haviam participado ativamente das alterações pernambucanas de 1710-1711, com um ardor antilusitano, nascido da sua experiência recente de homens que haviam abandonado São Paulo para servir nos Palmares, chamado por amigos ou parentes que ali se encontravam desde os tempos de Domingos Jorge Velho. Seu descontentamento tinha também a ver com suas reivindicações fundiárias na região, ainda desatendidas pela coroa depois da destruição do famoso quilombo. O fato é que a insatisfação reinante nas fileiras sam-paulistas foi instrumentalizada por um dos chefes do partido da nobreza na Guerra dos Mascates, Bernardo Vieira de Melo, que após a vitória contra os comerciantes reinóis ocupou o Recife com um contingente deles, no objetivo de garantir o controle da praça, por ocasião da chegada da frota anual do reino. A história da participação do "terço dos paulistas" na colonização do sertão do Nordeste já foi feita por Pedro Puntoni, numa obra exemplar. Aqui, limito-me a referir o destino de um dos seus chefes, Manuel Álvares de Morais Navarro, que após os anos de luta optou pela sedentariedade de um engenho de açúcar ao norte de Olinda, propriedade que por isso veio a ser designada por engenho do Paulista, nome do atual município, que há mais de meio século foi importante pólo têxtil do Estado. Outro caso de sertanista envolvido na Guerra dos Mascates foi o de Cristóvão de Mendonça Arrais, que se tornou mestre-de-campo do terço de Olinda e cuja inércia e covardia à frente da tropa da nobreza se tornou objeto das severas críticas dos seus aliados. Nas chamadas "alterações de Goiana", ocorridas em fins do século 17, em protesto contra a reintegração da capitania de Itamaracá à propriedade do marquês de Cascais, descendente do primeiro donatário, já se havia distinguido certo Nicolau Bequimão, cujo patronímico exótico denuncia relação de parentesco com Manuel Bequimão (ou Beckman), que anos antes encabeçara a revolta dos colonos maranhenses contra o governador Sá de Menezes e a Companhia de Comércio (1682). Sabe-se que um irmão de Manuel, Tomás Bequimão, advogado e poeta satírico, fora naquela oportunidade exilado para Pernambuco. Nicolau Bequimão seria provavelmente filho ou irmão desse letrado. Pela mesma época, as autoridades coloniais estiveram às voltas com certo andarilho -que recentemente despertou a curiosidade do historiador Stuart Schwartz-, o qual, dizendo-se príncipe, vagou pelo interior pernambucano com um séquito de fiéis, talvez sebastianistas inconscientes, até cair nas mãos dos esbirros da coroa. Outras figuras de sudestinos mais ou menos inquietos afloram no Nordeste ao iniciar-se, em 1817, o ciclo do que o poeta Manuel Bandeira chamou das "revoluções libertárias". O capixaba Domingos José Martins foi um dos chefes do movimento, quando sua loja maçônica de Londres, onde, segundo se dizia, falira como comerciante, o enviou ao Recife para impedir que os pedreiros livres pernambucanos se deixassem seduzir pelo canto de sereia dos seus correligionários fluminenses, tutelados pelo Grande Oriente de Portugal, que havia anos, por sua vez, se tornara satélite da maçonaria francesa, para irritação dos ingleses.

Carreira versátil
Martins foi, como se sabe, executado na Bahia, mas seu irmão Francisco, que ele trouxera para Pernambuco, faria carreira militar na Província, tornando-se, entre 1822 e 1824, um dos esteios do partido unitário na sua luta contra os autonomistas.
O forasteiro mais conspícuo entre os protagonistas de 17 foi o santista Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, que, ouvidor de Olinda, começava uma das carreiras mais versáteis de homem público brasileiro, o que não é dizer pouco num país em que a versatilidade política não acarreta nenhum opróbrio.
Antônio Carlos, que era uma ponta-de-lança da maçonaria fluminense, de que fora grão-mestre, foi deixado, por isso mesmo, à margem da conspiração, mas, quando ela triunfou, seus serviços foram aceitos, embora limitados à condição de assessor, não de membro, do diretório revolucionário. Na controvérsia em torno do regime a ser adotado, ele atuou na sombra em favor da proposta para que se abrissem negociações com d. João 6º, manobra destinada a infletir o movimento na direção da monarquia constitucional, almejada pelas maçonarias fluminense e lisboeta. Os republicanos, contudo, ganharam a parada no curto prazo; e Antônio Carlos foi encarregado de elaborar a lei orgânica do novo regime, fazendo-o, porém, de maneira não discreta e tão pouco comprometedora que por muito tempo ela seria atribuída a frei Caneca.
O Andrada não desanimou na atividade anti-republicana, tanto mais que a revolução havia extinguido seu cargo, as ouvidorias sendo odiadas como uma das formas do despotismo e da corrupção coloniais. Afinal de contas, a noção de república ficara desde a Revolução Francesa (1789) perigosamente amalgamada à de democracia; e, como ele indagará à Alçada, que não se deixou convencer e o enviou para os cárceres da Bahia por mais de quatro anos, que empenho poderia ter no triunfo de "uma ordem de coisas que, roubando-lhe a paz, o arremessava às vagas de uma oclocracia tempestuosa, e, privando-o de um lugar honroso e de lucro, o reduzia a humilde cliente de demagogos, a maior parte tirados do pó e sem mérito? Como não odiaria antes e trabalharia com afinco para destruir um sistema que, derrubando-o da ordem da nobreza a que pertencia, o punha a par da canalha e ralé de todas as cores e lhe segava em flor as mais bem fundadas esperanças de ulterior avanço e de mores dignidades?".


Mas o Santo Ofício não o esquecia, sendo delatado como "homem mui libertino", pois não ouvia missa, não jejuava nos dias de preceito nem permitia que sua mulher e escravos o fizessem, deixava que a capela do engenho se arruinasse


Indulto
Antônio Carlos sondou um magnata rural, o coronel Suassuna, concordando ambos em que "os homens de qualidade estavam arruinados se não ajuntarem os seus esforços para destruir uma cabala de malfeitores". Mas Suassuna não pôde cumprir a promessa de aliciar apoios no sul da Província, notoriamente contra-revolucionária. Um fluminense, João Antônio Rodrigues de Carvalho, também comprometeu-se em 1817. Concluídos seus estudos de cânone em Coimbra, um valido de d. João 6º, o futuro barão de Santo Amaro, patrocinou suas ambições, embora parente seu escrevesse que, de tal patrocínio, ele só se aproveitara para obter um decreto "para meter sua desinquieta mulher numa casa de correção". Regressando ao Rio com o monarca em 1808, Carvalho também se insinuou junto do almirante Sidney Smith, a quem dedicou uma ode cantando suas proezas navais. Graças a essas e outras influências, foi nomeado juiz-de-fora em Goiana e depois ouvidor no Ceará, onde, indispondo-se com o governador, foi, primeiramente, acusado de bigamia, acusação que o "incomodou terrivelmente" por se ver "obrigado, pela honra, a separar-se imediatamente de uma mulher virtuosa", vale dizer, da senhora cearense com quem vivia; e depois, ao saber-se da revolução no Recife, de cumplicidade na conjura revolucionária, motivo pelo qual foi posto em ferros e mandado para o reino. Carioca da rua do Ouvidor, o dicionarista Antônio de Morais Silva fora estudar direito em Coimbra, de onde fugiu para a Inglaterra, escapando à sanha inquisitorial. Em Londres, tornou-se secretário do embaixador de Portugal, mas, anos depois, ao retornar ao reino, teve o cuidado de passar por Roma, onde obteve do Vaticano um indulto que o pôs a coberto das investidas do Santo Ofício. Só àquela altura, já quarentão e quando já havia publicado a primeira edição do seu "Dicionário" (1789), regressou ao Brasil, que deixara menino, para ocupar um cargo de magistratura em Salvador, onde contactou José da Silva Lisboa, o futuro visconde de Cairu, a quem presenteou com um exemplar de "A Riqueza das Nações" [de Adam Smith]. Adoecendo da vista, resolveu fixar-se em Pernambuco, onde seu sogro era um dos comandantes militares da Província. Ali, Morais Silva adquiriu o engenho novo da Muribeca, adotando métodos avançados de produção de açúcar e dedicando seus ócios à ampliação do "Dicionário", cuja segunda edição é de 1812.

Patrono do adesismo
Entretanto o Santo Ofício não o esquecia, sendo novamente delatado como "homem mui libertino", pois não ouvia missa, não jejuava nos dias de preceito nem permitia que sua mulher e escravos o fizessem, deixava que a capela do engenho se arruinasse e consentia que os filhos brincassem na bagaceira com uma imagem de são José com o Menino Jesus nos braços. Entretanto, quando a revolução republicana estourou, nosso filósofo esquivou-se de exercer a função de conselheiro para que fora nomeado e, malgrado ter casa na rua Nova, ficou pelo engenho, onde, prevendo a contra-revolução realista, jogou no rio toda a imensa correspondência com figuras do Iluminismo português e estrangeiro. Outros sudestinos comprometidos em 17 foram mineiros. João Carlos Mayrink da Silva Ferrão, irmão da Maria Dorotéia que o poeta Gonzaga transfigurara em Marília de Dirceu, foi intitulado com razão por Sérgio Buarque de Holanda o patrono do adesismo nacional. Mayrink viera para o Recife como secretário do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que, antes de ser expulso pela revolução de 1817, promoveu seu casamento numa rica família de comerciantes da Província. O governo republicano manteve-o no cargo, devido à sua competência, embora ele buscasse delicadamente escusar-se, a pretexto de doença. Esmagada a república, Mayrink intermediou, na companhia do inglês Henry Koster, autor do mais saboroso livro que estrangeiro algum escreveu sobre o Nordeste colonial, a rendição do Recife, que fora bloqueado pela esquadra de Rodrigo Lobo. E o que é mais, perseguido pela Alçada, que o reputava subversivo, o próprio governador Luís do Rego Barreto o escondeu em palácio, patrocinou sua fuga para a França e obteve sua reabilitação junto do Rio. Em 1824, por ocasião da disputa entre Pais Barreto e Manuel de Carvalho Pais de Andrade em torno da presidência da Província, disputa que desaguará na Confederação do Equador, Mayrink foi escolhido como tertius e nomeado para o cargo por d. Pedro 1º, que nunca lhe retirou sua confiança mesmo quando ele se recusou a assumir a função sob a ameaça de morte dos carvalhistas, o que lhe valerá um século depois a condenação do historiador Tobias Monteiro. Passada a borrasca, o imperador confirmou-o na função e depois o escolheu na lista de senadores pela Província, que representou até sua morte no Rio. Um segundo mineiro envolvido em 17, mas que não teve o mesmo êxito de Mayrink, foi Luís Fortes de Bustamante, natural de Ouro Preto e que conseguira em Pernambuco um lugar de escrivão. Entre os revolucionários, sua popularidade derivava da aura de inconfidente, a qual, autêntica ou não, ele cultivava ou permitia que cultivassem, com a discrição manhosa dos seus conterrâneos, embora, vitorioso o movimento, dois dos seus filhos se tornassem "militares ardentíssimos", no registro de fonte coeva. O mesmo cronista assinala, porém, que aos primeiros sinais de malogro da república, Bustamante "esmoreceu"; e "uma negra melancolia, devorando-lhe a alma, lhe fez resfriar as primeiras ardências a fim de parecer menos culpado quando se realizassem os funestos presságios". Sua tática foi recompensada, sendo solto com os filhos graças a poderosas intercessões, fugindo todos para os Estados Unidos, exceto as senhoras da família, protegidas por um parente importante, o governador do Ceará, o qual, embora se abstivesse de visitá-las para não se comprometer, ajudou-as financeiramente por intermédio do ajudante de ordens.

Exemplo de gratidão
Na sua crônica, o padre Dias Martins menciona um terceiro natural das Minas, o padre Silvestre José da Costa Ferraz. Capelão do governador Caetano Pinto, professor de filosofia em Goiana e de gramática latina no Recife, ele deixou um belo exemplo de gratidão. Preso Caetano Pinto, o sacerdote advogou, "quanto lhe podiam permitir as trovoadas da revolução, a causa do seu benfeitor", prestando-lhe "todos os bons ofícios da mais grata amizade", a ponto de acompanhá-lo à corte malgrado os convites dos revolucionários, que reconhecidos à maneira cordial por que ele sempre os havia tratado, procuraram obter sua adesão ao regime republicano. No Rio, porém, suas ligações na Província tornaram-no suspeito, fazendo-o também dar com as costas nos cárceres da Bahia.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.".


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