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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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A LÓGICA DA AMNÉSIA

por Jacques Rancière

J'ai la mémoire qui flanche" [Tenho falhas de memória], assim começa a célebre canção que serve de emblema ao filme "Jules et Jim" ["Uma Mulher para Dois"], de François Truffaut. Aquilo de que a heroína não se lembrava muito bem era a cor dos olhos e o nome do amado: "Eram azuis? Eram cinzentos?"; "ele se chamava, chamavam-no... Como o chamavam?". O esquecimento das qualidades sensíveis de um ser exterior é geralmente considerado como uma forma benigna dos distúrbios da memória. E a emoção amorosa é com frequência associada à impossibilidade de representar adequadamente sua causa. Mais grave, evidentemente, é o fato de não lembrar no final da frase o que se queria dizer ao começá-la ou, no porto de chegada, as razões pelas quais se partiu em viagem. Mais grave, ainda, esquecer repetidamente o que se disse e se fez. Essa amnésia está aparentemente no centro de nossa atualidade. Durante um ano, dia após dia, e a cada uma das 24 horas, George Bush e seus conselheiros, representantes republicanos, democratas e um bando de jornalistas e "experts" os mais variados se sucederam sem descanso nas telas da CNN, da Fox ou de suas congêneres para exprimir o pavor que lhes causavam, e que a todos nós deviam causar, as armas de destruição em massa de posse do dirigente iraquiano. Contudo, à medida que os exércitos enviados para impedir o uso dessas armas se aproximavam de seu objetivo, esse objetivo parecia sair da memória. Não se encontraram armas de destruição em massa na passagem das tropas; portanto, nessas mesmas redes de televisão, bastante ocupadas em narrar de hora em hora o que acontecia, não houve tempo de falar da não-informação constituída por esse não-encontro. A informação contínua é isto: só se fala do que é matéria de informação, a ameaça sentida e expressa em cada uma das 24 horas, a intervenção que responde à ameaça. Onde achar ainda o tempo de lembrar-se da causa da ameaça e de pedir que a intervenção a verifique? Onde achar o tempo de surpreender-se com o fato de que aquele que detém armas de destruição em massa se esqueça de servir-se delas e se ocupe em escondê-las quando atacado? Qual é exatamente a utilidade de armas de guerra que não servem para a guerra? Pode-se responder, é verdade, que a hipotética posse de armas de destruição em massa era algo secundário comparado a uma realidade, essa sim, absolutamente certa: que o Iraque era governado por um ditador. A intervenção encontrava finalmente sua legitimidade, menos na neutralização das armas do ditador que na doação feita a seu povo do contrário da ditadura, que se chama democracia ou liberdade.


Que a liberdade seja preferível à ditadura, isso se admite; a dificuldade é saber em que consiste essa liberdade e a quem compete preferi-la à servidão


Bem positivo
Que a liberdade seja preferível à ditadura, isso se admite sem muita dificuldade. A dificuldade é saber em que consiste essa liberdade e a quem compete preferi-la à servidão. Quem se dá o trabalho de levar a liberdade aos outros deve supor que ela é um bem positivo cujo simples poder dissipa as trevas do "eixo do mal". Interrogado porém sobre o que pensava das pilhagens de Bagdá, o secretário da Defesa dos EUA [Donald Rumsfeld], que fora o cérebro da operação Liberdade Iraquiana, deu esta singular resposta: a liberdade é indivisível, portanto ela é também a liberdade de cometer erros e crimes. O problema é que essa liberdade nunca faltou aos iraquianos, como tampouco aos outros, e sob esse aspecto o ditador era tão livre para cometer crimes ou ter armas de destruição em massa quanto os saqueadores para saquear seus palácios. Assim, convém entender essa doação da liberdade como algo diferente do livre-arbítrio, que escolhe entre o bem e o mal. Convém entendê-la como o bem positivo que constitui para um povo a possibilidade de governar-se a si mesmo. Era esse bem que os exércitos norte-americanos traziam ao povo iraquiano ao livrá-lo de seu ditador. Para isso era preciso, claro, anular definitivamente a regra do direito internacional que proibia a um Estado imiscuir-se nos assuntos internos de outro. Até então, essa barreira só havia caído timidamente sob a forma do "direito de ingerência humanitária". Esse direito, inicialmente reivindicado pelas organizações humanitárias para socorrer populações em perigo de extermínio, fora-lhes concedido, em meio aos combates, pelas grandes potências. Com isso, opôs-se às regras do direito internacional um direito superior, o direito absoluto da vítima do dano absoluto. A vítima do dano absoluto é aquela que está na impossibilidade de fazer valer de alguma maneira seu direito. Segue-se, evidentemente, que esse direito, superior a toda regra de direito, só pode ser exercido por um outro, mais exatamente por um exército de intervenção estrangeira.

Sofrimento absoluto
Como pode esse direito de exceção tornar-se a regra? Para tanto é preciso que a privação de liberdade política seja ela mesma identificada à situação de miséria absoluta que justifique a intervenção do justiceiro. Ora, o sofrimento de viver sem liberdade política deixa-se verificar menos facilmente que o de ser lançado às estradas, após ter visto sua casa queimada e sua família exterminada. A menos que se faça argumento da própria ausência de sofrimento para identificar as duas situações e legitimar a intervenção.
Qual é, perguntar-se-á então, a consequência bem conhecida da ditadura? É tirar dos subjugados o gosto da liberdade, portanto o sofrimento de sua privação. A impossibilidade em que eles estão de reclamar sua liberdade é assim o sofrimento absoluto que dá a outros a obrigação de devolver-lhes essa liberdade, nem que seja pela força das armas.
O argumento torna-se aqui um tanto sutil e, melhor que os oradores da Fox News, são os filósofos que se encarregam Fuzileiro recebe rosa de um colega no colégio Bagdá, no norte da capital iraquiana, onde estão acampadas as forças dos EUA de manejá-lo. Às vésperas do conflito, um filósofo francês publicava no "Le Monde" uma crônica onde atacava com vigor os pacifistas impenitentes que se perguntavam se seria possível dar aos povos, contra sua vontade, o presente da liberdade. Não perguntemos aos povos o que eles querem, replicava esse filósofo. A resposta nos é suficientemente conhecida. Desde o ano de 1576, que viu a publicação do "Tratado da Servidão Voluntária", de Etienne de la Boétie, sabe-se o que querem os povos: querem ser alienados. Pouco importa a quê -ao consumo, às religiões, aos símbolos. Eles sempre o quiseram e sempre o haverão de querer. Logo... Mas logo o quê? Aí está o problema. Com efeito, dessa afirmação pode-se concluir tudo -e o seu contrário. Primeira conclusão: já que eles querem ser alienados, deve-se deixá-los com seus mestres. Segunda conclusão: é preciso libertá-los contra sua vontade, mesmo que utilizem essa liberdade para se alienarem novamente.

Mestres melhores
Terceira conclusão: como de todo modo eles serão alienados, é preciso aliená-los a mestres melhores, mestres livres. Resta saber, é claro, por que o povo assim encarregado de impor aos outros sua liberdade é o único a escapar à universal preferência dos povos pela servidão. Em filosofia, isso se chama um raciocínio indefinido: um raciocínio tal que, estabelecidas as premissas, qualquer conclusão se pode deduzir delas. O raciocínio indefinido completa a espiral própria à política da amnésia. O conquistador esquece o que ia buscar. O jornalista se esquece de perguntar-lhe se encontrou o que buscava. O político que exalta a liberdade trazida aos oprimidos manu militari se esquece de que, por décadas, designou como próprio do totalitarismo o fato de querer fazer a felicidade dos povos contra a vontade deles. O filósofo se esquece, em meio a seu raciocínio, de que nada se pode concluir dele a não ser a equivalência de todas as conclusões. Nosso presente costuma ser descrito como a era da amnésia. Disso são acusadas geralmente as novas tecnologias da memória e da comunicação. Dizem que são a televisão, a internet e o reinado da comunicação que nos tornam esquecidos, ao imporem seu presente sem limite e seu real indissociável da simulação. É responsabilizar a técnica por mais crimes do que ela é capaz de cometer. As máquinas de informação comunicam o que seus mestres as fazem comunicar.

Presente perpétuo
A explicação deve antes ser buscada do lado dos mestres. É a absorção da política no puro exercício do poder sem limite que impõe essa amnésia contínua e essa perda do raciocínio no indefinido. A lógica do governo mundial é a de uma indistinção em que todas as diferenças se abolem. Pois esse governo se ocupa apenas de um mal postulado como infinito e de um terror que não tem antes nem depois.
"Justiça infinita" foi recentemente o nome com que se viu consagrado o desaparecimento de todas as distinções que delimitavam até então a justiça: vingança privada e sanção pública, guerra e operação de polícia, política, direito, moral e religião igualmente engolfados na guerra infinita do bem contra o mal. A indistinção do poder estende agora seu reinado à abolição das diferenças temporais, ao reinado de um presente sem interrupção no qual o antes e o depois não são mais distinguíveis do que a causa e o efeito ou o meio e o fim.
Dizia-se outrora que a força sempre encontrava os fatos e os argumentos para legitimá-la. Hoje, é antes o esquecimento dos fatos e a impossibilidade de chegar ao fim do raciocínio que acompanham o desdobramento da superpotência. Não é simplesmente porque estes servem melhor a suas vontades. É mais radicalmente, talvez, porque o próprio do poder sem limite consiste em não mais se lembrar do que ele quer, em destruir o tempo mesmo em que poderia lembrar-se disso.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.


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