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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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O futuro de um gênero

Donaldo Schüler
especial para a Folha

Que o gaúcho é uma criação literária não nos soa estranho. O gênero gauchesco é produto urbano, cultivado por autores saudosos da vida pastoril. Contribuição decisiva para a construção do homem sul-rio-grandense veio de José de Alencar, em "O Gaúcho". O romancista dotou o vaqueiro das campinas meridionais das qualidades do brioso herói que se bate pela liberdade. A criação alencariana impressionou até mesmo a mente iluminada de Euclides da Cunha. Tomando o gaúcho literário como real, o autor de "Os Sertões" o opõe ao sofrido e resistente sertanejo da Bahia.
Josefina Ludmer retoma, em "O Gênero Gauchesco", a palavra "gênero" em seu sentido originário, como genos, como nascimento de formas literárias, mas também como lei, legislação, legitimação. O que nasce entra na lei da escrita. A escrita não mimetiza o observado, cria universos literários. A escrita funda tradições, feitas de repetições, variações, convenções. Ludmer aventa três gêneros para a América Latina: o gauchesco, o indianista e o anti-escravagista. Detém-se no gênero gauchesco, que nasce durante a guerra da independência às margens do Prata e termina em fins do século 19.
O Exército "patriota" arregimenta o "delinquente" gaúcho. A literatura culta o acolhe com seus hábitos linguísticos. Comparecem o uso literário da voz e o uso militar dos corpos. O Exército e a poesia confraternizam, completam-se. A literatura gauchesca, politizando a polaridade civilização-delinquência, propicia a passagem de um pólo a outro.
Visto que a literatura gauchesca molda o perfil do gaúcho, transformando-o de delinquente em patriota, o primeiro locutor fictício da literatura gauchesca é o gaúcho que exalta a pátria. O gênero se constrói no movimento da ida (à barbárie) e da volta (à civilização). Na oposição ida e volta, se equilibra "Martín Fierro" [do argentino José Hernandez (1834-86)]. O herói, que se perde na barbárie, se reequilibra ao retornar à civilização.
Vemos no ensaio de Ludmer a retomada de uma tese de Lévi-Strauss, exposta em "Tristes Trópicos". Para o antropólogo, a escrita é dominadora em si mesma. Um chefe nhambiquara apropria-se dela para reforçar sua autoridade sobre a sua tribo ágrafa. A questão é complexa. Contestando Lévi-Strauss, Derrida, ao afirmar que nem toda escrita é alfabética, desloca a escrita para a origem.
Por esse viés, os povos sem alfabeto são muitos, mas povos sem escrita não há. No caso da literatura gauchesca, haveria que examinar a contaminação da escrita ao acolher vocabulário, ritmos, sons, atos segregados. No Brasil, Simões Lopes Neto transforma o falar gauchesco em língua literária. Em "Grande Sertão: Veredas", a voz rude do interiorano Riobaldo silencia a voz urbana do doutor.
Ludmer pensa que a revolução literária acontece quando "Martín Fierro", popularizado, transforma a oralidade. Mas a passagem já se dá em Picardia [personagem desse romance], invenção literária que afeta a escrita. Admitida a circularidade vitalizadora de oralidade e escrita, podemos acompanhar o processo em andamento aqui desde "Iracema" a "Macunaíma". Como poderia a escrita represar, se ela é dinâmica por natureza?
Palavras definem e transgridem fronteiras rumo ao vedado, ao segregado, ao indefinido. O movimento de ida e volta aproxima opostos a ponto de os fundir. A barbárie é uma força revolucionária dentro da própria civilização. A circulação é sustentada pelo ciclismo viconiano da prosa de Joyce, que implode e renova a língua do dominador. Vozes confraternizam e se hostilizam num gênero vivo e ativo que não pára de gerar.
O entrecruzamento de textos mina hegemonias sem excluir a autoral. O ensaio encerra com Picardia. Por não conhecer mãe nem pai, o personagem já não está preso aos antepassados como os heróis consagrados. Nada impede que se lance ao futuro, a uma pátria sem fronteiras. Ludmer, ao lembrar que o ensaio foi concebido durante a ditadura militar e escrito durante a democracia, insere no texto sua própria biografia.


Donaldo Schüler é ficcionista, ensaísta e tradutor de "Finnegans Wake" (ed. Ateliê), de James Joyce.


O Gênero Gauchesco
309 págs., R$ 33,00 de Josefina Ludmer. Trad. de Antônio Carlos Santos. Argos (r. Senador Attílio Fontana, 591-E, CEP 89809-000, Chapecó, SC, tel. 0/xx/ 49/321-8218).


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