UOL


São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade


Os EUA agiram no Iraque como se estivessem no século 19, ignorando que o sistema internacional é agora regulado pela globalização


O GIGANTE FORA DO TEMPO

Luiz Carlos Bresser Pereira
especial para a Folha

A guerra contra o Iraque ficará provavelmente na história dos EUA como um dos grandes equívocos de seu governo. A decisão unilateral desse país de iniciar a guerra terminou em vitória militar, mas, com o transcorrer do tempo, veremos que resultou em derrota política à medida que seu caráter unilateral conflitou com a lógica básica da globalização. Os 6 milhões de pessoas que se reuniram para protestar no dia 15 de fevereiro de 2003, principalmente nos países cujos dirigentes estavam apoiando a guerra, foram uma indicação clara da existência da sociedade civil mundial. O fato de que essa opinião pública e a maioria dos governos condicionasse seu apoio à guerra à aprovação do Conselho de Segurança constituiu uma demonstração do poder moral da ONU. A grande potência, porém, ignorou que vivemos na era da globalização e da democracia e, apoiada pelo Reino Unido, se lançou em uma guerra apenas aparentemente vitoriosa. Terminada ela, a hegemonia americana, ao invés de haver se afirmado, ficará provavelmente prejudicada; a maior segurança pretendida pela guerra resultará no seu contrário: em reforço do terrorismo, em maior insegurança em todo o mundo, e em maior instabilidade política no Oriente Médio.

Equilíbrio de poderes
No passado (1) os impérios não foram objeto de repúdio tão universal. O que mudou? Mudou, fundamentalmente, a própria lógica das relações internacionais. O mundo do século 21 não é mais o mundo da diplomacia, do equilíbrio de poderes, no qual grandes potências, geralmente vizinhas, ameaçavam-se com guerra em razão de problemas de fronteira e eventualmente a evitavam por meio da diplomacia, mas o mundo da globalização, no qual os países competem entre si comercialmente por meio de suas empresas e se relacionam uns com os outros por meio de um complexo sistema multilateral. Não é mais também o mundo dos regimes aristocráticos e autoritários, mas o mundo da democracia.
Já no século 20 as duas grandes guerras mundiais revelaram absoluta gratuidade. Terminada a Segunda Guerra, o caminho na direção do capitalismo global foi atrasado pela Guerra Fria. Entretanto, com o colapso da União Soviética, a globalização se tornou o novo sistema de relações internacionais, substituindo o sistema do equilíbrio de poderes. E, mais amplamente ainda, se tornou o novo sistema político que organiza o mundo em torno da Organização das Nações Unidas e do sistema institucional internacional criado em torno dela.
Uma terceira grande fase da história se abria. Agora as fronteiras de todos os grandes países, exceto as do Paquistão com a Índia, estavam definidas, e, todos os mercados, abertos. Agora, nenhum grande Estado-nação, exceto aqueles dois, tinham inimigos entre outros grandes países. O comércio, os investimentos diretos e as finanças passaram a ter como espaço todo o mundo, e a competição econômica tornou-se generalizada. Começava, assim, a era do sistema global, na qual os Estados-nação se tornaram mais interdependentes, mas não perderam sua soberania.
Pelo contrário, contradizendo o que afirma o saber convencional, os Estados-nação tornaram-se ainda mais estratégicos no plano das relações econômicas, à medida que a globalização é a competição entre as empresas apoiadas por seus respectivos Estados nacionais -ou, mais diretamente, a competição entre os Estados nacionais por meio das suas empresas (2). Estas devem agora competir em nível internacional por meio do comércio, da tecnologia, dos investimentos diretos e dos financiamentos, mas nessa competição os Estados nacionais sabem perfeitamente que empresas devem apoiar -ou seja, quais são aquelas que são de propriedade principal de seus cidadãos- assim como estas sabem de quem esperar apoio.
O século 20 não foi apenas o século da globalização: foi também o século da democracia. Com a revolução capitalista e a industrialização, três novos atores surgiram: a burguesia, a classe trabalhadora e a nova classe média profissional. Da incorporação inevitável dessas três classes sociais ao processo político resultaram as democracias modernas. Estas emergem no início do século 20, quando o Estado de direito e as liberdades individuais liberais já haviam se consolidado, e o temor de que trabalhadores com direito a voto fizessem a revolução socialista começava a desaparecer. Um a um os principais países ricos adotaram o sufrágio universal, e a democracia se transformou no regime preferido por todos.
Embora possa interessar a todos, a globalização interessa principalmente aos países ricos, e em particular aos EUA, que controlam a moeda-reserva do mundo, o dólar. Os presidentes americanos perceberam, desde o presidente Wilson, qual era o interesse do seu país: aumentar a abertura dos mercados.
Com o fim da Guerra Fria, o presidente Clinton percebeu que o longo esforço de seu país para abrir todos os mercados fora bem-sucedido e jogou o jogo político da globalização -um jogo intrinsecamente multilateral- com energia e determinação. Ele fazia o discurso da globalização ao mesmo tempo em que buscava maiores vantagens para seu país.
Nesse processo, percebeu que a guerra perdera importância relativa e reduziu em cerca de um terço as despesas militares dos Estados Unidos, sem entretanto prejudicar o avanço das novas tecnologias, cuja sinergia com as despesas militares é conhecida.
Com o presidente Bush, a política externa americana sofreu uma mudança de 180 graus. Ao invés de promover a globalização, o governo passou, na prática, a atacá-la, ao ignorar seu caráter multilateral do mundo global e ao aumentar a segurança de um sistema internacional cuja principal demanda é segurança (3). Em uma sociedade global em construção, o presidente dos EUA pretende impor sua vontade de forma imperial, por meio da pressão econômica e do uso da força militar.


Os presidentes americanos perceberam, desde Wilson, qual era o interesse do seu país: aumentar a abertura dos mercados


Ao propor a guerra contra o Iraque, da mesma forma que antes, ao denunciar o Protocolo de Kyoto [acordo de 1997 para redução de gases do aquecimento global] ou ao recusar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, Bush e os falcões nacionalistas e messiânicos que o rodeiam se revelaram governantes incapazes de compreender a natureza do tempo em que vivem e estão transformando os EUA em um gigante fora do tempo, que age como se estivesse no século 19.
Henry Kissinger, falcão histórico americano que não teve dúvidas em apoiar desde o início a guerra, escreveu, logo após a queda de Bagdá, um artigo com um título muito sugestivo, "Para Que o Mundo Não Volte ao Século 19" (Folha, 13/4/2003). Ao fazer afirmações desse tipo, o ex-secretário de Estado americano [entre 1973 e 77] percebe o risco da volta do mundo ao século 19, mas não identifica a causa porque continua a pensar em termos desse século: em termos da diplomacia do equilíbrio de poderes.
Nesse mundo global e crescentemente democrático, o governo Bush, usando o 11 de setembro como uma desculpa, decidiu agir unilateralmente como se fosse um império, quando, no mundo do século 21, já não há mais espaço para as decisões unilaterais. [O cientista político] Joseph Nye argumentou que os EUA, embora hegemônicos, não o são suficientemente para poder agir dessa forma. A hegemonia dos EUA seria mais militar do que econômica, e mais econômica do que cultural ou ideológica (4). Concordo com Nye, mas no passado potências que eram relativamente menos hegemônicas do que os EUA, como, por exemplo, a Inglaterra no século 19, nem por isso estavam impedidas de agir unilateralmente e de ser impérios. Nos termos em que estou argumentando, os EUA não podem ser império, não porque não tenham suficiente força militar para tal, mas porque as normas que organizam as relações internacionais mudaram estruturalmente durante o século 20, no quadro da globalização. O sistema global, caracterizado pela competição generalizada, por um crescente conjunto de normas jurídicas definindo essa competição e pela democracia em nível nacional, enfrenta hoje o desafio de regulamentar os mercados e mais amplamente todas as relações internacionais, fazendo avançar a criação de um sistema de direito internacional. Ora, esse desafio só poderá hoje ser enfrentado pela política: pela negociação e pela argumentação, não pela força. No processo de liderança multilateral da criação de um sistema internacional mais ordenado, não estou esperando que os EUA ajam como anjos. O que espero é que defendam seus interesses, como os demais países devem defender os seus. Foi isso o que Clinton fez em toda a sua gestão, ao transformar a globalização em sua bandeira. Sua política, como a de abrir a conta de capitais e de propor o crescimento com poupança externa, causou graves prejuízos para outros países, especialmente os países de desenvolvimento intermediário, como o Brasil e a Argentina (5). Mas cabia aos brasileiros e argentinos defenderem seus interesses. Os EUA, ao defenderem os interesses americanos, agiram como deles se espera: estavam sendo os líderes do jogo da globalização em que os jogadores não ganham igualmente, mas do qual a soma tende a ser maior que zero.


Não estou esperando que os EUA ajam como anjos; o que espero é que defendam seus interesses, como os demais países devem defender os seus


O pretendido império
Como explicar uma guerra que não faz sentido, seja no plano ético, no da segurança internacional ou da economia? Creio que estamos diante de um caso exemplar de erro histórico de um governo. Com a guerra, o governo Bush quer afirmar seu próprio poder, quer fazê-lo valer, quer mostrar para o mundo, como o próprio presidente Bush deixou claro em seu discurso sobre o estado da União, de 2003, que nenhum outro país tem o direito de fazer frente à potência americana. Segundo essa lógica, já que os EUA são hegemônicos no campo econômico e militar, têm poder imperial e assim devem agir. Aliás, como todos os impérios no passado agiram. Usando da força, impondo sua vontade. Estamos, assim, diante de uma atitude de orgulho. Estamos vendo um grupo ultraconservador e nacionalista que controla o governo americano usar a hybris nacional de um povo que se viu alçado a uma situação de poder aparentemente incontrastável para adotar políticas radicais que não consultam seu interesse. Esse poder está sendo usado para alcançar um objetivo messiânico. O grupo em torno do presidente americano é um grupo cristão fundamentalista, que está em uma cruzada contra o "eixo do mal". Um eixo do mal que não é necessariamente fundamentalista: Saddam Hussein era o líder de um partido nacionalista secular, o Baath, não de um partido fundamentalista islâmico. Em estudo recente, [o professor da Universidade Columbia] Ralph della Cava mostrou o caráter fundamentalista do governo americano. Os fundamentalistas cristãos, principalmente evangélicos ou pentecostais, nos 20 últimos anos se aproximaram dos setores conservadores do Partido Republicano. O objetivo é a reversão dos princípios da sociedade secular liberal americana, a serem substituídos por uma ordem moral cristã e pela afirmação da supremacia americana.

Concepção equivocada
A explicação da guerra a partir de uma perspectiva messiânica faz sentido se a juntarmos à perspectiva imperialista. Uma perspectiva que, nos termos do próprio discurso neoconservador americano, casa como uma luva com a messiânica. Como os europeus se dispuseram a civilizar o resto do mundo a partir da descoberta do caminho das Índias e da América, os americanos agora se dispõem a exercer sua missão civilizadora.
Como os EUA alcançaram indiscutível hegemonia econômica e militar, têm a obrigação moral de estender ao resto do mundo "a maneira americana de viver", liberal e democrática, ética e cristã. Abandonando-se a retórica, que, embora importante, não esclarece tudo, a explicação da política de guerra do governo Bush está em um silogismo baseado na concepção equivocada de hegemonia: "Todos os países que, no passado, foram hegemônicos econômica e militarmente se transformaram em impérios. Os EUA alcançaram essa condição no final do século 20. Logo, devem cumprir o seu destino natural".
Quem provavelmente formulou melhor esse silogismo foi um dos intelectuais neoconservadores -da direita nacionalista, portanto- que mais tem apoiado e inspirado a política externa do governo americano, Robert Kagan. Segundo ele, as razões da guerra são claras. Um país que é hegemônico economicamente deve deixar claro para o resto do mundo sua própria hegemonia, armando-se. E aplicou essa tese para criticar a "velha Europa", que resiste em se armar.
Ao agir assim, a Europa estaria se revelando fraca, insegura, incapaz de desempenhar o papel que lhe cabe de segunda grande potência no cenário internacional (6). Para o realista Kagan, portanto, a força militar continua a ser a base das relações internacionais. A ameaça de guerra ou a própria guerra continuam sendo a maneira legítima de o poder hegemônico se impor de forma imperial.
O apoio que esse tipo de argumento teve nos EUA, especialmente nos meios conservadores e nacionalistas que hoje dominam o Partido Republicano, revela a desorientação em que se encontra parte da sociedade e das elites americanas.
Ofuscadas pelo seu próprio poder militar, não entendem os fatos novos que mudaram o curso da história no século 20, não percebem que a diplomacia do equilíbrio de poderes deu lugar à política da globalização, não compreendem a profundidade da revolução democrática ocorrida no século 20 e assim não se dão conta de que o poderio militar hoje é muito menos estratégico do que o era no passado. Continuam a imaginar que o poder das armas resolverá os problemas internacionais, ignorando que hoje, no quadro da competição econômica global, o poderio militar perdeu dramaticamente espaço para o poder da negociação e da argumentação. Na negociação, o poder econômico continua fundamental; na argumentação, a coerência das idéias e seu embasamento em valores morais são os dois elementos-chave.

Notas
1. Essa seção e a seguinte resumem o argumento que desenvolvi em "Depois da Diplomacia do Equilíbrio de Poderes, a Política da Globalização", in "Novos Estudos Cebrap", nš 65, março de 2003, págs., 91-110.
2. Geoffrey Garrett (autor de "Partisan Politics in the Global Economy", Cambridge University Press) foi um dos poucos analistas que contestou esse saber convencional, mostrando com dados de ampla pesquisa que, embora a globalização seja um fato, os Estados nacionais continuam a contar com ampla autonomia para definir suas políticas internas.
3. Uma revista insuspeita como é a "Business Week" (14/4/2003) afirmava na semana anterior à tomada de Bagdá: "O crescimento da economia depende da globalização e da inovação, e ambas poderão ser prejudicadas pela guerra e pelo pós-guerra potencialmente difícil... A tensão diplomática em volta da guerra poderá influenciar as negociações comerciais, ameaçando a contínua abertura dos mercados globais".
4. Joseph Nye, "The Paradox of American Power -Why the World's Only Superpower Can't Go It Alone" (Oxford University Press).
5. Luiz Carlos Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano, "Desenvolvimento Econômico com Poupança Externa?", in "Revista de Economia Política" de abril de 2003.
6. Robert Kagan, "Of Paradise and Power - America and Europe in the New World Order" (ed. Alfred A. Knopf).

Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de economia política na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Esta é uma versão resumida de trabalho com o título "O Gigante Fora do Tempo - A Guerra do Iraque e o Sistema Global", que será publicado no próximo número da revista "Política Externa".


Texto Anterior: + autores: A lógica da amnésia
Próximo Texto: + livros: O futuro de um gênero
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.