São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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+ literatura

As entranhas do continente

Enrique Vila-Matas escreve sobre o chileno Roberto Bolaño, um dos principais autores latino-americanos das últimas décadas

ENRIQUE VILA-MATAS

Por muitos e muitos anos, o chileno Roberto Bolaño levou em Blanes, na Costa Brava catalã, uma vida semelhante à de Sensini, personagem de vários de seus contos: a vida de um escritor argentino que deu para beber e que sobrevive enviando seus escritos a todo tipo de concurso literário espanhol de terceira categoria. Por muitos e muitos anos, o autor de "Chamadas Telefônicas", sem tostão no bolso, não teve telefone. Vivia isolado em Blanes com a mulher e o filho, e sua escrita tinha alguma coisa de escondido e clandestino. Até o dia em que, chegando aos 40, publicou "A Literatura Nazista na América do Sul", livro que passou relativamente despercebido aos olhos de quase todo mundo, mas não aos de Jorge Herralde, diretor da editora Anagrama, que o notou e, à falta de telefone, escreveu ao autor uma carta que indagava sobre sua produção. Um mês mais tarde, Bolaño enviava a Herralde "Estrela Distante", romance escrito em estado de graça durante três semanas intensas de 1996, relato curto, mas dotado de grande energia narrativa. Alguns meses mais tarde, terminou um outro livro, de título talvez irônico, "Chamadas Telefônicas". E, dois anos depois, ainda sob efeito de seu surto criativo, publicava o romance "Os Detetives Selvagens", obra torrencial que obteve o Prêmio Herralde e o Prêmio Rómulo Gallegos (o mais prestigioso em língua espanhola) e sacudiu uma minoria eleita de leitores e escritores. Estes viram nesse livro o fim de uma era em que haviam brilhado, na geografia literária latino-americana, o "Jogo da Amarelinha", de Julio Cortázar, e os autores do célebre boom, com García Márquez e Vargas Llosa puxando a fila. Com "Os Detetives Selvagens", os leitores tiveram a impressão de perceber os primeiros indícios reais do fim da panóplia de pássaros amazônicos, isto é, os primeiros sinais do fim da viagem impregnada de cor local dos sacrossantos autores do boom (entre os quais, é claro, jamais figuraram os melhores, basta pensar em Borges e Rulfo). Isso em primeiro lugar. Mais ainda, tiveram a impressão de estarem diante de um autor surpreendente, que, instilando nos leitores a felicidade elementar proporcionada pela paixão da leitura, instalara-se da noite para o dia diante de um abismo onde ninguém o esperava. O que Bolaño estava fazendo ali? Escrevia no limite, nessa linha depois da qual estava o vazio. Sabemos hoje que "Os Detetives Selvagens" deve ser considerado, com "2066", o gigantesco romance póstumo, um dos eixos principais da já lendária e excepcional produção narrativa de Bolaño, morto prematuramente três anos atrás [em 15/7/2003].

Viagens infinitas
"Ninguém sabe direito como esse homem pôde ir tão longe", escreveu Eduardo Lago, para quem Bolaño foi um escritor que abriu caminho para outros. Foi certamente assim que o viram, desde o princípio, os jovens escritores, sobretudo os latino-americanos. Esse grande romance falava-lhes da viagem infinita de gente que fora jovem e desesperada, mas que não se entediara jamais; falava-lhes dos poetas coléricos da geração maldita que nascera nos anos 50. A novidade de "Os Detetives Selvagens", como percebeu um de seus primeiros críticos, o argentino Marcelo Cohen, não estava "no relato do destino infame e interrompido de um latino-americano que quisera brilhar, mas em algo superior: a reivindicação das entranhas poéticas do continente". O livro fala de uma viagem eterna, de uma fuga infinita no curso da qual Arturo Belano e Ulises Lima, dois poetas viscerais, procuram os traços perdidos de uma enigmática pioneira de seu próprio movimento poético radical, traços que se apagaram nos anos 20, no deserto mexicano de Sonora. O deserto como metáfora exasperada do universo, lugar em que tudo ainda é possível, uma vez que nada ainda deixou marcas, exceto o mais gigantesco dos desesperos.


ENRIQUE VILA-MATAS é escritor catalão, autor de "A Viagem Vertical", "Bartleby e Companhia" e "O Mal de Montano" (ed. Cosacnaify).
Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Samuel Titan Jr.
De Bolaño, foi traduzido no Brasil "Noturno do Chile" (Cia. das Letras).


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