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+ literatura
As entranhas do continente
Enrique
Vila-Matas
escreve sobre
o chileno
Roberto Bolaño, um dos principais autores
latino-americanos
das últimas
décadas
ENRIQUE VILA-MATAS
Por muitos e muitos
anos, o chileno Roberto Bolaño levou
em Blanes, na Costa
Brava catalã, uma vida semelhante à de Sensini,
personagem de vários de seus
contos: a vida de um escritor
argentino que deu para beber e
que sobrevive enviando seus
escritos a todo tipo de concurso literário espanhol de terceira categoria.
Por muitos e muitos anos, o
autor de "Chamadas Telefônicas", sem tostão no bolso, não
teve telefone. Vivia isolado em
Blanes com a mulher e o filho, e
sua escrita tinha alguma coisa
de escondido e clandestino.
Até o dia em que, chegando
aos 40, publicou "A Literatura
Nazista na América do Sul", livro que passou relativamente
despercebido aos olhos de quase todo mundo, mas não aos de
Jorge Herralde, diretor da editora Anagrama, que o notou e, à
falta de telefone, escreveu ao
autor uma carta que indagava
sobre sua produção.
Um mês mais tarde, Bolaño
enviava a Herralde "Estrela
Distante", romance escrito em
estado de graça durante três
semanas intensas de 1996, relato curto, mas dotado de grande
energia narrativa.
Alguns meses mais tarde,
terminou um outro livro, de título talvez irônico, "Chamadas
Telefônicas". E, dois anos depois, ainda sob efeito de seu
surto criativo, publicava o romance "Os Detetives Selvagens", obra torrencial que obteve o Prêmio Herralde e o Prêmio Rómulo Gallegos (o mais
prestigioso em língua espanhola) e sacudiu uma minoria eleita de leitores e escritores.
Estes viram nesse livro o fim
de uma era em que haviam brilhado, na geografia literária latino-americana, o "Jogo da
Amarelinha", de Julio Cortázar, e os autores do célebre
boom, com García Márquez e
Vargas Llosa puxando a fila.
Com "Os Detetives Selvagens", os leitores tiveram a impressão de perceber os primeiros indícios reais do fim da panóplia de pássaros amazônicos,
isto é, os primeiros sinais do
fim da viagem impregnada de
cor local dos sacrossantos autores do boom (entre os quais,
é claro, jamais figuraram os
melhores, basta pensar em
Borges e Rulfo). Isso em primeiro lugar.
Mais ainda, tiveram a impressão de estarem diante de
um autor surpreendente, que,
instilando nos leitores a felicidade elementar proporcionada
pela paixão da leitura, instalara-se da noite para o dia diante
de um abismo onde ninguém o
esperava.
O que Bolaño estava fazendo
ali? Escrevia no limite, nessa linha depois da qual estava o vazio. Sabemos hoje que "Os Detetives Selvagens" deve ser
considerado, com "2066", o gigantesco romance póstumo,
um dos eixos principais da já
lendária e excepcional produção narrativa de Bolaño, morto
prematuramente três anos
atrás [em 15/7/2003].
Viagens infinitas
"Ninguém sabe direito como
esse homem pôde ir tão longe",
escreveu Eduardo Lago, para
quem Bolaño foi um escritor
que abriu caminho para outros.
Foi certamente assim que o
viram, desde o princípio, os jovens escritores, sobretudo os
latino-americanos.
Esse grande romance falava-lhes da viagem infinita de gente
que fora jovem e desesperada,
mas que não se entediara jamais; falava-lhes dos poetas coléricos da geração maldita que
nascera nos anos 50.
A novidade de "Os Detetives
Selvagens", como percebeu um
de seus primeiros críticos, o argentino Marcelo Cohen, não
estava "no relato do destino infame e interrompido de um latino-americano que quisera
brilhar, mas em algo superior: a
reivindicação das entranhas
poéticas do continente".
O livro fala de uma viagem
eterna, de uma fuga infinita no
curso da qual Arturo Belano e
Ulises Lima, dois poetas viscerais, procuram os traços perdidos de uma enigmática pioneira de seu próprio movimento
poético radical, traços que se
apagaram nos anos 20, no deserto mexicano de Sonora. O
deserto como metáfora exasperada do universo, lugar em que
tudo ainda é possível, uma vez
que nada ainda deixou marcas,
exceto o mais gigantesco dos
desesperos.
ENRIQUE VILA-MATAS é escritor catalão, autor de "A Viagem Vertical", "Bartleby e Companhia" e "O Mal de Montano" (ed. Cosacnaify).
Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Samuel Titan Jr.
De Bolaño, foi traduzido no Brasil
"Noturno do Chile" (Cia. das Letras).
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