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BRASIL 500 D.C.
Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, as touradas eram fonte
da alegria popular
Modos de fazer a nação feliz
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para aFolha
Uma das maiores frustrações de
leitor consiste nos grandes livros
que se perderam ou que então
não chegaram a ser escritos. A esse respeito, ocorre-me sempre o
exemplo da obra que, durante
muitos anos, Ortega y Gasset prometeu dedicar à tauromaquia,
"Paquiro, ou das Corridas de
Touros", tema que se jactava de
conhecer especialmente bem desde a juventude de "senhorito madrileño", embora na maturidade
já não frequentasse a chamada
"festa nacional".
Ortega era, aliás, useiro e vezeiro nessas promessas incumpridas: estudos que não escreveu ou
que, mais frequentemente, deixou pela metade, cursos que não
concluiu, ensaios que ficaram a
meio caminho. (Aconteceu-lhe o
mesmo que ele observara haver-se passado com Dilthey.) Sorte
idêntica teve seu compromisso de
analisar o que chamou "trágica
amizade, três vezes milenar, entre
o homem espanhol e o touro bravo", embora à arte cinegética, de
que não era especialmente adepto, dedicasse o ensaio notável com
que prefaciou as recordações de
caça do conde de Yebes.
Tudo que Ortega deixou acerca
das corridas foi a dúzia de páginas
que contém o epílogo para o livro
do toureiro Domingo Ortega, as
notas de um brinde que não pronunciou e a carta em que, do exílio lisboeta, saudou a publicação
da obra monumental de José Maria de Cossío, "Los Toros". Textos
de circunstância, em nenhum deles se topa com o que devia constituir para Ortega o interesse principal do toureiro, sua significação
histórico-cultural.
É no ensaio sobre Goya que ele
fornece a pista sobre o que teria sido o ensaio sobre tauromaquia.
Na sua maneira de ver, os historiadores da arte enganavam-se redondamente quando viam no
pintor de Fuentedetodos um artista que exprimia, do fundo de
sua solidão, uma irredutível individualidade. Ao contrário, Goya
parece-lhe alguém extremamente
sensível às circunstâncias vitais, o
"sintônico" da definição dos psiquiatras, isto é, alguém que está
permanentemente em sintonia
com o que o cerca, portanto, o que
vulgarmente classificamos de camaleônico.
Daquele engano caracterológico surgiu o suposto popularismo
do pintor, a falsa concepção de
um Goya que teria sido o primeiro a trazer o popular para o primeiro plano da pintura espanhola. Ora, os temas populares já estavam em moda na Espanha desde
os começos do século 18, graças a
artistas estrangeiros, clientes da
Coroa e da alta aristocracia, que
haviam importado o que constituía então um subgênero europeu. No tempo de Goya não havia, portanto, qualquer novidade
na utilização pictórica desses temas chamado "nacionais" -inclusive a sugestão para que ele os
pintasse partiu muitas vezes do
alto, vale dizer, dos seus fregueses.
Por conseguinte, em lugar de inventar o popular, o que Goya fez
foi colocar seu gênio a seu serviço.
Ortega explica o popularismo
de Goya pelo "fenômeno estranhíssimo" que ele equivocadamente pensou constituir originalidade espanhola. (Nós mesmos,
brasileiros, vivemos uma fase
muito parecida.) Esse fenômeno
histórico poderia ser resumido
nesta fórmula simples: a cultura
popular, inclusive as formas de vida cotidiana, impõe-se irresistivelmente à cultura nacional, eliminando a vigência dos padrões
das classes superiores, que, ademais, o que é igualmente importante, rendem-se entusiasticamente à novidade.
Por analogia com a linguística,
que rotula de "plebeísmo" a propensão coletiva a preferir a forma
popular dos vocábulos -por
exemplo, "paço", à forma culta,
"palácio"-, Ortega recorreu
àquela designação para caracterizar a tendência que avassalou a
Espanha setecentista, suspendendo por vários decênios a circularidade da cultura das elites e da cultura popular, que é de regra, mediante a consagração exclusiva
dos usos populares. Semelhante
processo tinha de parecer insólito
ao autor da "Rebelião das Massas", para quem a norma consistiria, pelo contrário (sinal de que
não conheceu o Brasil), em que as
classes subalternas admiram os
valores das classes privilegiadas e
procuram assimilá-los.
Ocorrera, portanto, na Espanha, uma inversão, uma "autêntica enormidade". Segregando-se
nas suas formas vitais, orgulhoso
delas, o povo esnobava os usos
elitistas, ao passo que a aristocracia e a burguesia delas se saturavam. Desde finais de Seiscentos, o
povo espanhol virou-se para dentro de si, estilizando suas maneiras tradicionais e dando lugar, aí
por meados da centúria seguinte,
à onda plebeísta que inundou o
país e cuja expressão máxima foi a
corrida de touros. Pois bem: essa
inversão, seja na Espanha bourbônica ou no Brasil de hoje, é o indício irrefutável de que as classes
dirigentes se acham incapacitadas
de criarem seus valores, se tornando, por conseguinte, inaptas a
exercer sua função diretora.
É sabido que o espetáculo taurino foi originalmente uma tradição da nobreza, que, de cima do
cavalo, símbolo senhorial, preferia lancear e picar os touros. Foi
precisamente quando a plebe espanhola começou a se introverter
que surgiram as primeiras alusões
ao "toureiro", denominação dos
homens do povo que, a pé, se exibiam nas vilas e povoados. Portanto não se tratava ainda da corrida de touros, que é um esporte
no sentido rigoroso da expressão,
ou seja, sujeito a regras formais.
Pensava Ortega que a corrida
propriamente dita só teria aparecido por volta de 1740. Não sei se o
fato já terá sido observado pelos
antropólogos, sempre atentos às
inversões de significado, mas caberia notar que a corrida reduziu
o uso do cavalo, principal elemento do combate aristocrático com o
touro, à etapa menos estimada da
luta, aquela em que intervêm os
picadores. Ao passo que, ao homem a pé, isto é, ao toureiro, cabem as fainas mais nobres da corrida, isto é, o trabalho de capa e
muleta e a colocação de banderilhas, sobre o cavaleiro recai a tarefa ingrata de picar a rês, o que o
torna o objeto privilegiado dos
doestos dos espectadores, sobretudo desde que se passou a proteger os cavalos com couraças. A
medida representou uma concessão à sensibilidade dos turistas do
norte dos Pirineus, que já ofereciam à festa uma clientela rentável, mas que ficavam terrivelmente chocados com a visão das tripas
dos animais estraçalhados pelos
touros.
O entusiasmo que a corrida de
touros suscitou na Espanha de
meados do século 17 foi intenso e
atingiu todas as categorias sociais.
Os ministros da Coroa iluminista
dos Bourbons chegaram mesmo a
preocupar-se com o fato de que a
gente do povo vendia a camisa para ir aos touros. Mas, espanhol de
boa cepa, apesar de toda sua cultura filosófica e germânica, Ortega não se isolou num elitismo desdenhoso e enxergou na "autêntica
enormidade" motivo de enriquecimento cultural -e, no toureiro,
o grande fator de felicidade nacional.
Nas suas mesmíssimas palavras:
"Poucas coisas em toda a história
apaixonaram tanto e fizeram tão
feliz nossa nação como esta festa";
"ricos e pobres, homens e mulheres dedicam uma boa parte de cada dia a prepararem-se para a corrida, a ir a ela, a falar dela e de seus
heróis"; "e não esqueçamos que o
espetáculo taurino é somente a face ou presença momentânea de
todo um mundo que vive oculto
por trás dele, desde os cercados
onde se criam as reses bravas até
os bares e tavernas onde se reúnem as tertúlias de toureiros e aficionados".
Ortega poderia estar falando do
Carnaval, do futebol ou da música
popular brasileira, e dando-nos o
trampolim para uma reflexão em
torno da nossa cultura atual.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O
Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos
e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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