São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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O escritor Salman Rushdie escreve sobre sua paixão pelo futebol
GOOOL

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Salman Rushdie é um dos escritores mais conhecidos da atualidade, mas está longe de ser um dos mais lidos. Se o mundo muçulmano ortodoxo for incluído na conta, aliás, Rushdie é conhecido exatamente como alguém que não se deve ler: em 1989, o aiatolá Khomeini, do Irã, condenou-o à morte e pôs sua cabeça a prêmio, por ter escrito um livro, "Os Versos Satânicos", em que supostamente havia ofensas a Maomé.
De lá para cá, Rushdie -que nasceu na Índia, em 1947, mas vive na Inglaterra desde menino- mora escondido, sob guarda da Scotland Yard. Nem os (tênues) esforços diplomáticos na época, nem as dezenas de manifestações, escritos, protestos, abaixo-assinados e simpósios em favor da liberdade de expressão tiveram maior efeito. A condenação fatal só foi revogada no ano passado, com a ascensão de um novo aiatolá, um pouco mais liberal; mas a vida do escritor continua mesmo assim sendo uma questão de estratégia pessoal e militar, e é improvável que isso possa mudar até o fim de seus dias.
Que a passagem específica do livro responsável por tamanha celeuma seja apenas um sonho de uma personagem; que o próprio escritor já fez o que pôde, dentro dos limites da dignidade humana e literária, para sublinhar a distância entre autor e narrador; que o texto, afinal, esteja muito longe do que seria reputado ofensivo para os padrões do mundo culto do Ocidente: nada disso pode alterar uma contingência que mais parece tirada de algum relato fantástico do próprio Rushdie, mas que, de literária, não tem nada. Ela serve de emblema, precisamente, da resistência à leitura, que é a marca do dogmatismo e da tirania, características ainda hoje da vida na maior parte do planeta.
Salman Rushdie tornou-se um escritor de renome já com seu primeiro livro, "Midnight's Children" (Os Filhos da Meia-Noite, 1981). Foi logo identificado como um praticante do "realismo mágico", transportado para a língua inglesa com acentos orientais. Sem nenhuma ingenuidade no que concerne às possibilidades de uma literatura escolada na filosofia do pós-guerra, seus livros exploram as virtudes da narrativa -o prazer de contar histórias-, num contexto em que o explicável e o inexplicável se cruzam, e elementos de sonho e da mitologia convivem com a cotidianidade.
Isto vale tanto para um romance ambicioso como "O Último Suspiro do Mouro" ou o recente "O Chão Onde Ela Pisa", quanto para os contos de "Oriente/Ocidente" ou o livro infantil "Haroun" e o "Mar de Histórias". Se fosse possível imaginar uma mistura de "As Mil e Uma Noites", García Márquez e o realismo psicológico do inglês Graham Greene, o resultado seria alguma coisa como Salman Rushdie. A diferença é aquilo que é só dele, e menos fácil de definir: um tom pessoal, entre a desilusão e o maravilhamento, entre a paixão física do mundo e a perda -ou consciência da perda- desse mesmo mundo.
Esse tom, temperado por doses maiores de ceticismo, é típico também dos seus ensaios e crônicas, que abrangem desde a crítica literária até a autobiografia, desde a história e a política até, muito justificadamente, os protestos contra a censura e o tolhimento da liberdade do escritor. Alguns desses textos foram recolhidos em "Imaginary Homelands" (Pátrias Imaginárias); outros tantos vêm sendo publicados em revistas como a "New Yorker", de onde foi traduzido o seu lindo ensaio sobre futebol, publicado nesta edição.
O maior escritor brasileiro sobre o assunto, Nelson Rodrigues, costumava dizer que cada partida é um drama dostoievskiano, ou uma tragédia de Shakespeare. Aos olhos de Rushdie, cada jogo é mais uma, entre mil e uma noites; mais uma história, que dá sequência às anteriores e serve de passagem para as próximas, na existência imprevisível e emocionada de cada torcedor.
Seu ensaio vai recortando a lembrança de uma única partida -a final da Copa Worthington de 1999, entre Tottenham Hotspur e Leicester City- com memórias de infância, anedotas, casos e outras tantas histórias que se cruzam à maneira de uma galeria oriental ou um labirinto. Pobre do leitor que não for capaz de ver no futebol um dos campos mais ricos de paixão e revelação humana. Pobre do torcedor que não for capaz de ler, na literatura, a duplicação dessa experiência, multiplicada por força da escrita e pela inteligência das emoções.
Dar um sentido vivo a essa simples palavra -"futebol"; fazer do gramado um espelho de quem vê, e de quem vê um espectador digno dessas grandezas; atingir, com histórias, o "realismo mágico" do muito explicado e inexplicável esporte mais popular do mundo: não é pequena a ambição do escritor, nesse pequeno tratado da paixão de ser torcedor.
Seu último lance define, ainda, a integridade que, para ele, mais do que para qualquer outro, é uma necessidade e um exemplo. Entrando ou saindo de um estádio de futebol, saindo ou entrando nas páginas de um jornal, Salman Rushdie é mais um anjo torto da liberdade de expressão. E o que ele nos faz ver, nos livros como na bola, não é mais, nem menos, do que a expressão humana da liberdade.


Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica) e autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.



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