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O escritor Salman Rushdie escreve sobre sua paixão pelo futebol
GOOOL
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Salman Rushdie é um dos escritores mais conhecidos da atualidade, mas está longe de ser um
dos mais lidos. Se o mundo muçulmano ortodoxo for incluído na
conta, aliás, Rushdie é conhecido
exatamente como alguém que
não se deve ler: em 1989, o aiatolá
Khomeini, do Irã, condenou-o à
morte e pôs sua cabeça a prêmio,
por ter escrito um livro, "Os Versos Satânicos", em que supostamente havia ofensas a Maomé.
De lá para cá, Rushdie -que
nasceu na Índia, em 1947, mas vive na Inglaterra desde menino-
mora escondido, sob guarda da
Scotland Yard. Nem os (tênues)
esforços diplomáticos na época,
nem as dezenas de manifestações,
escritos, protestos, abaixo-assinados e simpósios em favor da liberdade de expressão tiveram maior
efeito. A condenação fatal só foi
revogada no ano passado, com a
ascensão de um novo aiatolá, um
pouco mais liberal; mas a vida do
escritor continua mesmo assim
sendo uma questão de estratégia
pessoal e militar, e é improvável
que isso possa mudar até o fim de
seus dias.
Que a passagem específica do livro responsável por tamanha celeuma seja apenas um sonho de
uma personagem; que o próprio
escritor já fez o que pôde, dentro
dos limites da dignidade humana
e literária, para sublinhar a distância entre autor e narrador; que o
texto, afinal, esteja muito longe do
que seria reputado ofensivo para
os padrões do mundo culto do
Ocidente: nada disso pode alterar
uma contingência que mais parece tirada de algum relato fantástico do próprio Rushdie, mas que,
de literária, não tem nada. Ela serve de emblema, precisamente, da
resistência à leitura, que é a marca
do dogmatismo e da tirania, características ainda hoje da vida na
maior parte do planeta.
Salman Rushdie tornou-se um
escritor de renome já com seu primeiro livro, "Midnight's Children" (Os Filhos da Meia-Noite,
1981). Foi logo identificado como
um praticante do "realismo mágico", transportado para a língua
inglesa com acentos orientais.
Sem nenhuma ingenuidade no
que concerne às possibilidades de
uma literatura escolada na filosofia do pós-guerra, seus livros exploram as virtudes da narrativa
-o prazer de contar histórias-,
num contexto em que o explicável
e o inexplicável se cruzam, e elementos de sonho e da mitologia
convivem com a cotidianidade.
Isto vale tanto para um romance ambicioso como "O Último
Suspiro do Mouro" ou o recente
"O Chão Onde Ela Pisa", quanto
para os contos de "Oriente/Ocidente" ou o livro infantil "Haroun" e o "Mar de Histórias". Se
fosse possível imaginar uma mistura de "As Mil e Uma Noites",
García Márquez e o realismo psicológico do inglês Graham Greene, o resultado seria alguma coisa
como Salman Rushdie. A diferença é aquilo que é só dele, e menos
fácil de definir: um tom pessoal,
entre a desilusão e o maravilhamento, entre a paixão física do
mundo e a perda -ou consciência da perda- desse mesmo
mundo.
Esse tom, temperado por doses
maiores de ceticismo, é típico
também dos seus ensaios e crônicas, que abrangem desde a crítica
literária até a autobiografia, desde
a história e a política até, muito
justificadamente, os protestos
contra a censura e o tolhimento
da liberdade do escritor. Alguns
desses textos foram recolhidos
em "Imaginary Homelands" (Pátrias Imaginárias); outros tantos
vêm sendo publicados em revistas
como a "New Yorker", de onde
foi traduzido o seu lindo ensaio
sobre futebol, publicado nesta
edição.
O maior escritor brasileiro sobre o assunto, Nelson Rodrigues,
costumava dizer que cada partida
é um drama dostoievskiano, ou
uma tragédia de Shakespeare.
Aos olhos de Rushdie, cada jogo é
mais uma, entre mil e uma noites;
mais uma história, que dá sequência às anteriores e serve de
passagem para as próximas, na
existência imprevisível e emocionada de cada torcedor.
Seu ensaio vai recortando a lembrança de uma única partida -a
final da Copa Worthington de
1999, entre Tottenham Hotspur e
Leicester City- com memórias
de infância, anedotas, casos e outras tantas histórias que se cruzam à maneira de uma galeria
oriental ou um labirinto. Pobre do
leitor que não for capaz de ver no
futebol um dos campos mais ricos
de paixão e revelação humana.
Pobre do torcedor que não for capaz de ler, na literatura, a duplicação dessa experiência, multiplicada por força da escrita e pela inteligência das emoções.
Dar um sentido vivo a essa simples palavra -"futebol"; fazer do
gramado um espelho de quem vê,
e de quem vê um espectador digno dessas grandezas; atingir, com
histórias, o "realismo mágico" do
muito explicado e inexplicável esporte mais popular do mundo:
não é pequena a ambição do escritor, nesse pequeno tratado da
paixão de ser torcedor.
Seu último lance define, ainda, a
integridade que, para ele, mais do
que para qualquer outro, é uma
necessidade e um exemplo. Entrando ou saindo de um estádio
de futebol, saindo ou entrando
nas páginas de um jornal, Salman
Rushdie é mais um anjo torto da
liberdade de expressão. E o que
ele nos faz ver, nos livros como na
bola, não é mais, nem menos, do
que a expressão humana da liberdade.
Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica) e autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.
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