São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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LIVROS
Coletânea traz poemas de Salvatore Quasimodo, um dos grandes líricos italianos do século
Trágica dialética da lembrança

BENEDITO NUNES
especial para a Folha

O "fervor pensante da recordação" é a dominante da poesia de Salvatore Quasimodo, um dos três grandes líricos italianos deste século, ao lado de Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale. Em Ungaretti, o mais velho, com quem os outros dois muito terão aprendido, pulsa deslumbrada percepção do mundo, evocando instantes de fulgor, de instantâneo conhecimento ou de extática alegria: "Ilumino-me/ de imenso" (M'illumino d'immenso) (1). Mas essa mesma luminosa imensidão, que passa "entre uma flor colhida e outra doada", não é senão, segundo os versos de "Alegria", dando-nos a versão da eternidade para Ungaretti, "o inexprimível nada". "Sob o céu sereno", via-se o poeta como "imagem/ passageira... Presa numa roda/ imortal". Mas o céu sereno, de onde os deuses todos tinham fugido, estava vazio.
Para Eugenio Montale, irônico poeta desse esvaziamento, em permanente debate com o Deus moral cristão, o imenso é o domínio do efêmero, do esquecimento e da morte. É difícil imaginar a morte desse Deus, e difícil é ainda, para Montale, imaginar que possa moralmente punir-nos por faltas que não cometemos nem ontem nem hoje, mas no infinito dos tempos: "Não sei por que de Deus se pretende/ que as minhas faltas castigue/ e os meus benfeitores premie/ O que Lhe compete fazer não é assunto nosso./ (Nem mesmo Seu, provavelmente.)/ O que é terrível é pensar o impensável." (2). Estamos condenados, sim, mas pela condição, avessa a toda inteligibilidade, que tornou o homem possível. Essa nota de desespero intelectual de Montale já não ressoaria no pessimismo de Leopardi, mestre comum desses três poetas?
Nascemos em meio a dores e vivemos do consolo da pena de viver. "É funesto a quem nasce o dia natal" (3). O pessimismo leopardiano, que esse verso do "Canto Noturno a um Pastor Errante da Ásia" resume, não é uma simples rejeição da vida por intrinsecamente má, sem bonança ou promessa de felicidade. De nossas perdas sobrevêm as dores; e a pena de viver consiste em recordar o que, aos poucos, de nós vai tirando "o infinito andar do tempo". Nada mais triste e acerba do que a lembrança, como "vão desejo do passado", no reconhecimento magoado do que alegremente já se viveu.
A voz histórica ativa de Platão, fundadora de uma das fortes tradições do pensamento ocidental, nos diz que conhecer é lembrar; toda coisa só se torna conhecida por meio do acesso reminiscente, a que nos eleva o amor premido pelo desejo, a uma idéia universal, organizadora da experiência e a ela sobreposta, permitindo-nos identificar o que não é idêntico no diverso e mutável curso da realidade empírica perceptiva. Mas só os poetas, a que Platão vedou entrada em sua "República", mostrariam o lado inverso letal do conhecimento: ao reviver, a lembrança celebra a morte do objeto do amor; a reminiscência escava o túmulo daquilo que se ama. Quando surge, a idéia universal se erige em lápide funérea do real empírico, conforme outra voz, a de Quasimodo, nos diz em contraposição ao platonismo: "Não tenho mais lembranças, nem as desejo;/ toda memória se remonta à morte,/ a vida não se acaba. Cada dia/ é nosso...".
A morte de Quasimodo, poeta da Resistência na Itália, comprometido com os "partigiani" à época da Segunda Guerra, é tanto individual quanto coletiva: a morte das amadas e o coletivo, impiedoso assassinato, ora dos companheiros ora dos inimigos, "tão vermelhos, tão inchados" na também morta cidade de Milão, sangue correndo "pelos rios da terra". Por mais que se o interpele, o invisível se cala. Deus, que não mais consola nem da "dura pena do nascer" nem da "ânsia precoce de morrer", é não o pai, mas o opositor do homem, por sua vez alvo de seu antiteísmo, a quem só se pode pedir que nos dê "da dor o pão cotidiano". Talvez seja Ele, tanto quanto o sopro do vento -metáfora preferencial de Quasimodo, não no sentido rilkiano da transbordante transcendência, como imagem de plenitude, mas como viageiro e melancólico hausto da terra siciliana-, que chame o trânsfuga ao seu primitivo sítio, ao qual o devolve a memória como um ritual de réquiem em missa de corpo presente. "... A vida/ não é esse bater, terrível, fundo/ no coração, não é compaixão, não é/ senão jogo sangrento onde a morte/ se enflora."
Mesmo a nostalgia da terra, comparada à tristeza da carne, tem a difusa força do mal: o forte vento de dissipação da memória, antes perda do que ganho. A despeito disso, não se quer perder a memória; ainda que seja um eco, mais vale perdurar a lembrança, porque perdido o amor o desejo não se aplaca, materializado nas coisas que remotamente se associam à pessoa amada. Se a memória é o túmulo do amor que ela faz reconhecer, amor e morte, como um dia proclamou Leopardi, são ao mesmo tempo irmãos. "Fratelli a un tempo stesso, Amore e Morte/ Ingeneró la sorte./ ...". Um ao outro reflete, mutuamente espelhados. O momentâneo êxtase daquele pode fazer esquecer a sua parceira. Mas esta logo se recobra: "...no sentimento de morte,/ eis-me assustado de amor". Não é a lembrança capaz de eliminar esse sentimento, mas a calma contemplação da natureza, que absorve a morte na vida. A eternidade de Quasimodo é a da terra, do sangue, da célula, da carne, do lugar de nascimento: "E tudo me sabe a milagre;/ e eu sou aquela água de nuvens/ que hoje reflete nas poças/ mais azul seu pedaço de céu,/ aquele verde que se racha da casca/ e que tampouco ontem à noite existia".
Porém, sob os aspectos anteriormente assinalados, Salvatore Quasimodo é um poeta leopardiano. Não por acaso "As Lembranças" ("I Ritorni"), um de seus mais belos poemas, descende, na entonação nostálgica e nas imagens reminiscentes, da alta voltagem evocativa de "Le Ricordanze", de Leopardi:
"Belos astros da Ursa, eu não pensava/ Volver um dia a contemplar-vos/ Sobre o jardim paterno, cintilantes;/ E conversar convosco das janelas/ Dessa mansão em que morei criança,/ E onde vi definhar as alegrias./ Quantos sonhos outrora e fantasias/ Então das vossas luzes, companheiros,/ Forjou esse contemplar em minha mente".
Em "As Lembranças", de Salvatore Quasimodo, em lugar do jardim paterno de Leopardi está a Piazza Navona, de onde contempla as estrelas cintilantes, que, como o outro, "seguia de menino", mas "estirado sobre os seixos do Platani/ silabando as rezas no escuro", e portanto lembrando de lembrar-se em sua terra natal, a Sicília. E será proustiana, como invasora sensação odorífera -de goivo, gengibre, alfazema-, essa restituição do passado, acompanhada por outra lembrança, a da intenção de, naquele momento, ler à mãe, já posta em penumbra no presente da recordação, a fábula do filho pródigo em que se tornara.
Filho pródigo que nunca volta, o poeta como poeta cumula recordações em segundo grau, com as cores e luzes dos caminhos por onde perambula. O tema da contemplação estelar se duplica, em Quasimodo, com os da partida, da separação e da morte, de que nascem a sua poesia, e que lhe imprimem, ao correr de acerbas lembranças, como as de Leopardi, um traço inconfundível de tragicidade.
Refiro-me à tragicidade expressa pelos poetas líricos gregos, que Quasimodo traduziu: o sentimento da infelicidade de viver, do desamparo da existência. Não poderia o homem ter melhor sorte do que não haver nascido, dizia Teognis, o grego. Também Quasimodo guarda a memória desses poetas e a transforma, fazendo com que, segundo a trágica dialética da lembrança, ajudada pelo pendor do tempo ao qual se associa, ela morra para poder renascer.

Notas:
1. Esta e as outras citações de Ungaretti seguem a tradução de Sergio Was, "Alegria" (L'Allegria), edição bilíngue, Edições Sejup, Belém.
2. Eugenio Montale, "Poesias", seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti, prefácio de Luciana Stegagno Picchio, Editora Record.
3. Citamos Leopardi segundo a tradução dos "Canti" por Mariajosé de Carvalho.



A OBRA
Poemas - Salvatore Quasimodo. Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/585-2000). 288 págs. R$ 28,00.



Benedito Nunes é professor da Universidade Federal do Pará e autor, entre outros, de "Crivo de Papel" (Ática).

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