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LIVROS
Coletânea traz poemas de Salvatore Quasimodo, um dos grandes líricos italianos do século
Trágica dialética da lembrança
BENEDITO NUNES
especial para a Folha
O "fervor pensante da recordação" é a dominante da poesia de
Salvatore Quasimodo, um dos
três grandes líricos italianos deste
século, ao lado de Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale. Em
Ungaretti, o mais velho, com
quem os outros dois muito terão
aprendido, pulsa deslumbrada
percepção do mundo, evocando
instantes de fulgor, de instantâneo conhecimento ou de extática
alegria: "Ilumino-me/ de imenso"
(M'illumino d'immenso) (1). Mas
essa mesma luminosa imensidão,
que passa "entre uma flor colhida
e outra doada", não é senão, segundo os versos de "Alegria",
dando-nos a versão da eternidade
para Ungaretti, "o inexprimível
nada". "Sob o céu sereno", via-se
o poeta como "imagem/ passageira... Presa numa roda/ imortal".
Mas o céu sereno, de onde os deuses todos tinham fugido, estava
vazio.
Para Eugenio Montale, irônico
poeta desse esvaziamento,
em permanente debate com
o Deus moral
cristão, o
imenso é o domínio do efêmero, do esquecimento e
da morte. É difícil imaginar a
morte desse
Deus, e difícil é ainda, para Montale, imaginar que possa moralmente punir-nos por faltas que
não cometemos nem ontem nem
hoje, mas no infinito dos tempos:
"Não sei por que de Deus se pretende/ que as minhas faltas castigue/ e os meus benfeitores premie/ O que Lhe compete fazer não
é assunto nosso./ (Nem mesmo
Seu, provavelmente.)/ O que é terrível é pensar o impensável." (2).
Estamos condenados, sim, mas
pela condição, avessa a toda inteligibilidade, que tornou o homem
possível. Essa nota de desespero
intelectual de Montale já não ressoaria no pessimismo de Leopardi, mestre comum desses três
poetas?
Nascemos em meio a dores e vivemos do consolo da pena de viver. "É funesto a quem nasce o dia
natal" (3). O pessimismo leopardiano, que esse verso do "Canto
Noturno a um Pastor Errante da
Ásia" resume, não é uma simples
rejeição da vida por intrinsecamente má, sem bonança ou promessa de felicidade. De nossas
perdas sobrevêm as dores; e a pena de viver consiste em recordar o
que, aos poucos, de nós vai tirando "o infinito andar do tempo".
Nada mais triste e acerba do que a
lembrança, como "vão desejo do
passado", no reconhecimento
magoado do que alegremente já
se viveu.
A voz histórica ativa de Platão,
fundadora de uma das fortes tradições do pensamento ocidental,
nos diz que conhecer é lembrar;
toda coisa só se torna conhecida
por meio do acesso reminiscente,
a que nos eleva o amor premido
pelo desejo, a uma idéia universal,
organizadora da experiência e a
ela sobreposta, permitindo-nos
identificar o que não é idêntico no
diverso e mutável curso da realidade empírica perceptiva. Mas só
os poetas, a que Platão vedou entrada em sua "República", mostrariam o lado inverso letal do conhecimento: ao reviver, a lembrança celebra a morte do objeto
do amor; a reminiscência escava o
túmulo daquilo que se ama.
Quando surge, a idéia universal se
erige em lápide
funérea do real
empírico, conforme outra
voz, a de Quasimodo, nos
diz em contraposição ao platonismo: "Não
tenho mais
lembranças,
nem as desejo;/
toda memória
se remonta à morte,/ a vida não se
acaba. Cada dia/ é nosso...".
A morte de Quasimodo, poeta
da Resistência na Itália, comprometido com os "partigiani" à época da Segunda Guerra, é tanto individual quanto coletiva: a morte
das amadas e o coletivo, impiedoso assassinato, ora dos companheiros ora dos inimigos, "tão
vermelhos, tão inchados" na também morta cidade de Milão, sangue correndo "pelos rios da terra". Por mais que se o interpele, o
invisível se cala. Deus, que não
mais consola nem da "dura pena
do nascer" nem da "ânsia precoce
de morrer", é não o pai, mas o
opositor do homem, por sua vez
alvo de seu antiteísmo, a quem só
se pode pedir que nos dê "da dor o
pão cotidiano". Talvez seja Ele,
tanto quanto o sopro do vento
-metáfora preferencial de Quasimodo, não no sentido rilkiano
da transbordante transcendência,
como imagem de plenitude, mas
como viageiro e melancólico
hausto da terra siciliana-, que
chame o trânsfuga ao seu primitivo sítio, ao qual o devolve a memória como um ritual de réquiem
em missa de corpo presente. "... A
vida/ não é esse bater, terrível,
fundo/ no coração, não é compaixão, não é/ senão jogo sangrento
onde a morte/ se enflora."
Mesmo a nostalgia da terra,
comparada à tristeza da carne,
tem a difusa força do mal: o forte
vento de dissipação da memória,
antes perda do que ganho. A despeito disso, não se quer perder a
memória; ainda que seja um eco,
mais vale perdurar a lembrança,
porque perdido o amor o desejo
não se aplaca, materializado nas
coisas que remotamente se associam à pessoa amada. Se a memória é o túmulo do amor que ela faz
reconhecer, amor e morte, como
um dia proclamou Leopardi, são
ao mesmo tempo irmãos. "Fratelli a un tempo stesso, Amore e
Morte/ Ingeneró la sorte./ ...". Um
ao outro reflete, mutuamente espelhados. O momentâneo êxtase
daquele pode fazer esquecer a sua
parceira. Mas esta logo se recobra:
"...no sentimento de morte,/ eis-me assustado de amor". Não é a
lembrança capaz de eliminar esse
sentimento, mas a calma contemplação da natureza, que absorve a
morte na vida. A eternidade de
Quasimodo é a da terra, do sangue, da célula, da carne, do lugar
de nascimento: "E tudo me sabe a
milagre;/ e eu sou aquela água de
nuvens/ que hoje reflete nas poças/ mais azul seu pedaço de céu,/
aquele verde que se racha da casca/ e que tampouco ontem à noite
existia".
Porém, sob os aspectos anteriormente assinalados, Salvatore
Quasimodo é um poeta leopardiano. Não por acaso "As Lembranças" ("I Ritorni"), um de seus
mais belos poemas, descende, na
entonação nostálgica e nas imagens reminiscentes, da alta voltagem evocativa de "Le Ricordanze", de Leopardi:
"Belos astros da Ursa, eu não
pensava/ Volver um dia a contemplar-vos/ Sobre o jardim paterno, cintilantes;/ E conversar
convosco das janelas/ Dessa mansão em que morei criança,/ E onde vi definhar as alegrias./ Quantos sonhos outrora e fantasias/
Então das vossas luzes, companheiros,/ Forjou esse contemplar
em minha mente".
Em "As Lembranças", de Salvatore Quasimodo, em lugar do jardim paterno de Leopardi está a
Piazza Navona, de onde contempla as estrelas cintilantes, que, como o outro, "seguia de menino",
mas "estirado sobre os seixos do
Platani/ silabando as rezas no escuro", e portanto lembrando de
lembrar-se em sua terra natal, a
Sicília. E será proustiana, como
invasora sensação odorífera -de
goivo, gengibre, alfazema-, essa
restituição do passado, acompanhada por outra lembrança, a da
intenção de, naquele momento,
ler à mãe, já posta em penumbra
no presente da recordação, a fábula do filho pródigo em que se
tornara.
Filho pródigo que nunca volta,
o poeta como poeta cumula recordações em segundo grau, com
as cores e luzes dos caminhos por
onde perambula. O tema da contemplação estelar se duplica, em
Quasimodo, com os da partida,
da separação e da morte, de que
nascem a sua poesia, e que lhe imprimem, ao correr de acerbas
lembranças, como as de Leopardi,
um traço inconfundível de tragicidade.
Refiro-me à tragicidade expressa pelos poetas líricos gregos, que
Quasimodo traduziu: o sentimento da infelicidade de viver, do desamparo da existência. Não poderia o homem ter melhor sorte do
que não haver nascido, dizia
Teognis, o grego. Também Quasimodo guarda a memória desses
poetas e a transforma, fazendo
com que, segundo a trágica dialética da lembrança, ajudada pelo
pendor do tempo ao qual se associa, ela morra para poder renascer.
Notas:
1. Esta e as outras citações de Ungaretti
seguem a tradução de Sergio Was, "Alegria" (L'Allegria), edição bilíngue, Edições Sejup, Belém.
2. Eugenio Montale, "Poesias", seleção,
tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti, prefácio de Luciana Stegagno
Picchio, Editora Record.
3. Citamos Leopardi segundo a tradução
dos "Canti" por Mariajosé de Carvalho.
A OBRA
Poemas - Salvatore Quasimodo.
Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti. Ed. Record (r. Argentina,
171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/
21/585-2000). 288 págs. R$ 28,00.
Benedito Nunes é professor da Universidade Federal do Pará e autor, entre outros, de "Crivo de Papel" (Ática).
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