São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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Poemas de Dino Campana registram uma vida acidentada
Uma descarga poética

HEITOR FERRAZ
especial para a Folha

A poesia do italiano Dino Campana (1885-1932) é ainda pouco conhecida no Brasil. Até recentemente, pouca coisa havia em português: algumas traduções publicadas na revista "Azougue", de jovens poetas paulistanos; e um texto da série "Retratos-Relâmpagos", de Murilo Mendes. Murilo também escreveu um poema em homenagem ao poeta nascido em Marradi, província de Florença, em 1885. Agora, a Lacerda Editores acaba de publicar "Novelas em Alta Velocidade", com tradução de Paulo Malta.
A edição lançada é uma primeira apresentação da poética de Dino Campana e traz alguns poemas em prosa pinçados do único livro que ele publicou em vida, "Cantos Órficos" ("Canti Orfici"). Sua poesia é apontada por críticos como integrante do simbolismo tardio italiano. Mas, ao mesmo tempo, Campana manteve laços estreitos com os poetas futuristas, como Marinetti. Trata-se de fato de uma poesia bastante afinada com a modernidade, na qual a velocidade muitas vezes molda a percepção e a escrita do poeta. A pequena mostra editada agora é um bom exemplo disso.
Os poemas são uma espécie de registro lírico de passagens da trajetória de Campana, que pontuou sua vida por vagabundagens, deambulações, prisões e longas estadas em manicômios. "Estive alguns meses na prisão. Dois ou três meses na Suíça, em Basiléia; por arruaça. Briguei com um suíço: as contusões. Não fui condenado. Tinha parente, me recomendou. Na Itália, preso, e depois um mês na prisão, em Parma, por volta de 1902-1903. Estive no manicômio de Imola, do professor Brugia: estive ali quatro meses. Na Bélgica, depois de Imola, no manicômio de Tournay, outros quatro meses...", escreveu o poeta. E assim foi, chegando ainda a passar pela Argentina e Rússia. Acabou terminando sua vida no manicômio de Castel Pulci, em Florença (de 1918 até a sua morte, aos 47 anos).
Nessas perambulações, ele fez de tudo. Estudou química farmacêutica, foi ferreiro, tocador de triângulo na Marinha argentina, porteiro de circo, pedreiro, carvoeiro em navios mercantes, foguista, bombeiro. Campana, enfim, certamente dá motivos para um bom romance. Mas, como dizia Murilo Mendes, "é preciso resistir à tentação de explorar os arcanos de sua fascinante biografia" e adentrar os textos dos "Cantos Órficos". Esse livro foi publicado em 1914, contendo poemas em prosa e em versos regulares e livres. Segundo o tradutor Paulo Malta, uma anotação deixada pelo poeta florentino trazia o desejo de reunir sua poesia sob o título dado à atual coletânea em língua portuguesa. E esse título resume bem sua poética frenética, construída como notas encadeadas de um diário de viajante, em alta velocidade.
Campana tinha uma obsessão pela velocidade dos trens, um tema que aparece em boa parte dos textos. "Estava no trem em correria: estirado no vagão, sobre a minha cabeça fugiam as estrelas e os sopros do deserto num fragor férreo", escreveu em "Pampa". Em outro poema, a recorrência temática leva a uma espécie de decomposição do movimento (assim como no quadro "Nu Descendo uma Escada", da fase ainda cubista de Marcel Duchamp): "O vapor das máquinas se confundia com a névoa: os fios se apensavam e se reapensavam na penca de argolas dos postes telegráficos que se sucediam automaticamente".
Segundo Murilo Mendes, Campana atingiu uma lírica baseada "na energia da palavra, na transposição de ambientes insólitos, na aliança do realismo e do fantástico, na criação de símbolos extraídos à vida das cidades modernas". A leitura dos poemas de "Novelas em Alta Velocidade", em cuidadosa tradução de Paulo Malta e "nota editorial" de Alexei Bueno, apresenta um mestre da moderna escrita fragmentária, de alta voltagem. Como disse Murilo, em Campana sentia-se "a poesia como se fosse uma descarga elétrica, um alto explosivo".



A OBRA
Novelas em Alta Velocidade - Dino Campana. Trad. Paulo Malta. Lacerda (r. Dona Mariana, 205, CEP 22280-020, RJ, tel. 0/xx/ 21/538-1406). 79 págs. R$ 10,00.



Heitor Ferraz é jornalista e poeta, autor de "Resumo do Dia" e "A Mesma Noite".


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