|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ITALIANOS
A obra-prima de Dante ganha nova tradução para o português
O desafio da "Comédia"
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
Toda nova edição da "Divina
Comédia", de Dante Alighieri
(1265-1321), é um acontecimento
louvável. Também é certo que toda nova tradução integral do poema de Dante é, em certa medida,
uma tarefa de antemão votada ao
fracasso. Isso porque é impossível
sustentar, sem deixar esmorecer,
a excelência e a intensidade desse
poema de cem cantos. Só um outro Dante para conseguir isso
-talvez nem ele, já que estaria tolhido pela necessidade de conformar-se à letra de um outro poeta.
Recentemente a Editora 34 publicou uma nova versão da "Comédia" (o adjetivo "divina" foi
acrescentado posteriormente, por
leitores maravilhados, ao título
escolhido por Dante), com tradução e notas de Italo Eugênio Mauro. A edição, bem-cuidada, tem
muitos méritos: além de ser bilíngue, com o texto original impresso em caracteres legíveis, ao lado
de cada verso em português, o
poema de Dante vem encadernado em três volumes, os quais são
arrematados por um belo estojo.
Erros tipográficos, pouquíssimos.
Um deles, o mais grave, foi a supressão da palavra "outro" no
quinto canto, verso 108, do "Purgatório".
Talvez o leitor acostumado às
edições ilustradas da "Comédia"
sinta falta das poderosas imagens
que artistas como Gustave Doré
criaram para retratar os três reinos visitados por Dante: Inferno,
Purgatório e Paraíso. Mas a ausência de ilustrações não chega a
comprometer o resultado da edição. O que deve ser discutido, e o
que é de fato discutível, é o valor
de sua tradução.
Muitos poetas e escritores brasileiros já se aventuraram na tradução de alguns trechos da "Comédia", como Machado de Assis
(canto 25 do "Inferno"), Dante
Milano (cantos 5, 25 e 33 do "Inferno") e, mais recentemente, Augusto e Haroldo de Campos. Mas
até hoje bem poucos se deram ao
trabalho de traduzi-la integralmente em versos. Uma coisa é
verter fragmentos esparsos da
"Comédia"; outra muito diversa é
enfrentar o poema como um todo.
Para essa tarefa monumental é
necessário, além de um perfeito
conhecimento de ambas as línguas, uma certa dose de loucura,
no melhor dos sentidos: loucura
dos que se apaixonam por um determinado objeto e o perseguem,
obsessivamente, até o fim.
O trabalho de Mauro, levado a
cabo após 12 anos de dedicação
exclusiva, revela um rigor e uma
meticulosidade que impressionam. Mas, como criação poética,
o resultado é bastante irregular,
embora em alguns momentos o
tradutor tenha superado todas as
tentativas anteriores de traduzir o
poema de Dante para a língua
portuguesa.
Um dos principais problemas
da tradução é justamente, por paradoxal que possa parecer, o seu
excessivo apego à literalidade, em
nome da qual o tradutor muitas
vezes sacrificou toda a graça e
musicalidade do poema. Vários
críticos de Dante, entre eles Borges e T. S. Eliot, já notaram que
um dos "milagres" da "Comédia"
se deve à sua extrema variação rítmica e linearidade sintática -o
que alguns chamaram no Brasil
de "diretidade". Dante modula
seus versos conforme a matéria
que trata, quase sempre optando
pela sintaxe direta. Raramente incorre em grandes inversões. O
tradutor, para manter o sentido literal sem sacrificar a estrutura
métrica do poema (todo em "terza rima", forma fixa em que o primeiro e o terceiro versos de um
terceto rimam entre si, enquanto
o segundo rima com o primeiro
da estrofe seguinte), frequentemente adotou soluções pouco felizes, mormente ali onde não podia falhar, isto é, em passagens
que são pedras de toque para
qualquer tradução da "Comédia",
como o início dos cantos 1 e 3 do
"Inferno".
A famosa abertura do poema,
por exemplo, foi traduzida por
"A meio caminhar de nossa vida/
fui me encontrar em uma selva
escura:/ estava a reta minha via
perdida"; e o não menos célebre
"Per me si va ne la città dolente,/
per me si va ne l'eterno dolore,/
per me si va tra la perduta gente"
("Inferno", 3, 1-3) virou "Vai-se
por mim à cidade dolente,/ vai-se
por mim à sempiterna dor/ vai-se
por mim entre a perdida gente".
O sentido literal, o metro e a rima
foram preservados, mas a força
do original se perdeu na distância. O ritmo da versão portuguesa
é francamente claudicante.
É provável que alguns desses
contorcionismos tenham
decorrido de
uma espécie
de "angústia
da influência",
a necessidade
que tem todo
poeta, segundo o crítico
Harold Bloom,
de distinguir-se e desviar-se
de seus precursores. E o principal
precursor de Mauro é sem dúvida
Cristiano Martins, cuja tradução
da "Comédia" talvez ainda seja,
na média, a melhor que se tem em
português.
Outro fato digno de nota é a pudicícia do tradutor, que, tão fiel à
literalidade, evita cuidadosamente a tradução direta de certas expressões dantescas, preferindo recorrer a eufemismos. Por exemplo, a palavra "merda" (assim
mesmo, em italiano) nunca é traduzida por "merda" (em português), mas por "fezes" ("Inferno",
28, verso 27) ou "borra humana"
("Inferno", 18, 116).
Mas a tradução de Mauro também tem excelentes momentos,
principalmente nos trechos em
que o sentido literal do poema é
plasmado pela música dos versos
de Dante. Exemplos disso podem
ser lidos nessas três estrofes do
canto 29 do "Inferno" (versos 67-75), quando Dante e Virgílio entram na décima vala do oitavo círculo, onde são punidos os falsários:
"Quem sobre o ventre, e quem
sobre o costado/ um de outro jazia ou, de cansaço,/ mal se arrastava no hórrido valado.
Sem conversar seguíamos, passo a passo,/ vendo e ouvindo as
enfermas almas postas,/ incapazes de erguer o corpo lasso.
Duas vi sentadas, costas contra
costas,/ como assadeiras postas
pra esquentar,/ cobertas, da cabeça aos pés, de crostas".
Finalmente
cabe ressaltar o
engenho e, por
vezes, a ousadia da metrificação. Como
quando Mauro
corta ao meio o
advérbio "futuramente",
deslocando
sua terminação para o verso seguinte: "Os Ravagni estavam,
donde iria/ provir o conde Guido
e os que futura-/ mente grão Bellincione nomearia" ("Paraíso",
16, 97-99); ou quando, utilizando
um recurso consagrado pelo poeta português Camilo Pessanha em
fins do século 19, separa o pronome enclítico do verbo a que se subordina: "E: "De tudo cuidou Maria, por onde/ boa resultasse a boda, até esquecer-/ se de sua boca,
que ora a vós responde" ("Purgatório", 22, 142-144).
De modo geral, pode-se dizer
que a tradução de Mauro cresce à
medida que o poema avança do
"Inferno" ao "Paraíso", como se o
tradutor tivesse assimilado e descoberto, durante o percurso, a
melhor forma portuguesa para a
obra italiana.
A OBRA
A Divina Comédia - Dante
Alighieri. Trad. Italo Eugênio Mauro. 3 vols. Editora 34 (r. Hungria,
592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/
11/816-6777). R$ 49,00.
Texto Anterior: Heitor Ferraz: Uma descarga poética Próximo Texto: Luiz Dulci e Maria Betânia Amoroso: Poetas às pencas Índice
|