São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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Em "O Instinto da Linguagem", o pesquisador e discípulo de Chomsky Steven Pinker defende que as estruturas gramaticais têm bases biológicas

A seleção natural da sintaxe

João de Fernandes Teixeira
especial para a Folha

Falar sobre linguagem pode se tornar uma tarefa bastante estranha. Afinal de contas, estamos confinados na nossa própria linguagem e não podemos falar dela a não ser usando-a, ou seja, falar sobre como ela funciona já a pressupõe. Tentar traçar suas origens, isto é, contar a história de sua aparição também só pode ser feito por alguém que já possua alguma linguagem. Usar a linguagem para falar dela ou montar uma história de suas origens pode tornar-se apenas um exercício de imaginação, pois a sua aparição não foi precedida por nenhum tipo de fóssil linguístico ou pré-linguístico que pudéssemos um dia descobrir. Tudo se passa como se estivéssemos num pequeno bote em alto-mar, sem poder desmontá-lo para saber como foi construído.
Falar das origens da linguagem e de como ela funciona é a tarefa a que se propõe Steven Pinker neste livro que acaba de ser editado no Brasil. O autor é um jovem pesquisador do departamento de ciência cognitiva e neurociência do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Um homem que impressiona por seu trajar quase sempre em negro e pelos cabelos armados, o que lhe confere por vezes um ar de príncipe russo. Isso sem falar de sua eloquência, também impressionante, que tive oportunidade de presenciar numa palestra na Universidade Harvard em 1998. Pinker foi discípulo de seu colega no MIT, Noam Chomsky, esse Galileu da linguística, hoje mais conhecido por suas opiniões irreverentes acerca da sociedade globalizada. E, como bom discípulo, soube manter sua independência intelectual, discordando do mestre em alguns pontos cruciais.
O grande mérito de Chomsky foi mostrar que os processos pelos quais geramos e identificamos sentenças têm uma estrutura profunda, a estrutura de uma árvore, com seu tronco e ramos, e que gerar sentenças não é apenas alinhar sons ou símbolos. Seu livro clássico, "Estruturas Sintáticas", publicado em 1957, investiga a natureza dessas estruturas, analisando os possíveis algoritmos para gerar e reconhecer sentenças nas linguagens naturais. Chomsky nunca se arriscou a identificar essas estruturas com algum tipo de circuito cerebral, limitando-se apenas a sugerir que elas seriam, de alguma forma, inatas.
Pinker concorda com o inatismo de Chomsky, mas, contra o mestre, sustenta que a investigação da natureza da linguagem não pode se limitar a uma análise de estruturas e sistemas formais. A gramática é um sistema normativo, mas deve ser vista como um fenômeno natural, biológico. A linguagem é um produto da evolução, um fator decisivo que nos diferencia de todos os outros seres vivos. Possuímos essas estruturas inatas ou essa gramática universal, e esta está no nosso cérebro, sendo o resultado de um longo processo evolucionário ao qual a espécie humana esteve submetida. Nossa faculdade linguística -ou as estruturas da gramática universal- é, para usar os termos de Pinker, "instintiva": nossa linguagem é essencialmente um instinto de nossa espécie. "Sabemos falar da mesma maneira que as aranhas sabem tecer suas teias" (pág. 10). Ou, para invocar ainda outra passagem, Pinker nos diz que "a sintaxe é um órgão darwiniano, extremamente perfeito e complicado" (pág. 148). Neste sentido, ele teria dado um passo além de seu mestre, ao fazer considerações acerca da origem e da razão de ser dessas estruturas que os linguistas têm copiosamente se dedicado a descrever, valendo-se de uma explicação através dos processos de seleção natural.
Tais afirmações -em que pese serem corretas ou não- têm o mérito de ressaltar a necessidade da linguística se tornar, cada vez mais, uma investigação interdisciplinar. Uma ciência da linguagem tem de se situar no cruzamento entre psicologia, neurociência, biologia evolucionária e a própria teoria linguística. A ciência da linguagem não pode se limitar a ser uma análise empírico-formal das estruturas profundas subjacentes aos fenômenos linguísticos. Ou seja, é preciso retomar a conhecida sentença de Roman Jakobson (1896-1982), que dizia que o trabalho do linguista não pode nem deve ser alheio às investigações que se realizam em todas as suas áreas afins. Algo que soa hoje como um eufemismo, mas que ainda encontra muita resistência em alguns meios acadêmicos de orientação chomskiana. Uma situação quase paradoxal, se considerarmos que Chomsky é frequentemente lembrado como um dos pais da ciência cognitiva, um empreendimento científico que, nas últimas décadas, caracterizou-se como essencialmente interdisciplinar.
Outro mérito de Pinker é o fato de seu texto proporcionar ao leitor universitário uma visão geral da linguística, além de uma introdução a tópicos importantes da ciência cognitiva e da biologia evolucionária. Usando um estilo coloquial, Pinker nos arrasta por essa aventura fascinante, percorrendo temas como a gramática gerativa, léxico, morfologia, fonética e outros. Há também capítulos acerca da aquisição da linguagem, suas bases biológicas (genética e ontogenética) e sua evolução. O capítulo sete ("Cabeças Falantes"), que discute a possibilidade de automatizar alguns aspectos da linguagem natural, é particularmente instigante para aqueles que se interessam por inteligência artificial e suas possíveis aplicações na área de processamento linguístico.
Resta saber se podemos concordar integralmente com as teses de Pinker. Terá ele, ao tentar naturalizar a teoria de Chomsky -mesclando-a com teoria da evolução e seleção natural-, dado um passo além no sentido de desvendar a origem de nossas faculdades linguísticas? O que terá surgido primeiro, a linguagem ou a evolução? Seria possível formular algo como a teoria da evolução sem usar algum tipo de linguagem? Não estaríamos andando em círculos ao afirmar que a evolução selecionou a linguagem e que, ao mesmo tempo, foi a partir da linguagem que pudemos falar de evolução? Pois não será a teoria evolucionária apenas uma grande e genial metáfora a partir da qual pudemos organizar e buscar alguma compreensão de nosso possível passado filogenético? Esta parece ser uma pergunta inevitável a ser formulada para aqueles que lêem este livro com olhos filosóficos.


João de Fernandes Teixeira é doutor pela Universidade de Sussex (Inglaterra), professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Mente, Cérebro e Cognição" (ed. Vozes), entre outros.


O Instinto da Linguagem
628 págs., R$ 48,00 de Steven Pinker. Trad. Claudia Berliner. Editora Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/ 340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/ xx/11/ 3241-3677).



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