São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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Distinções entre os estilos de jogar futebol e entre a predileção, em ex-colônias da América Latina, por este esporte ou pelo críquete revelam traços culturais e políticos de latino-americanos e ingleses

Sobre jogos e dribles

Claudio Elisabetsky/Divulgação
Meninos jogam futebol sob marquise no parque Ibirapuera, em São Paulo


PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

A idéia de uma história do esporte foi largamente aceita na última geração, conforme comprovam publicações como "Journal of Sport History" e "International Journal for the History of Sport". A idéia de uma história cultural do esporte já é mais controversa, embora já tenha recebido o apoio de antropólogos de destaque, desde Christian Bromberger e Eduardo Archetti até Roberto DaMatta.
Esses três enxergam o futebol, em especial, como uma forma daquilo ao qual ainda outro antropólogo, Clifford Geertz, chamou de "deep play" (jogo profundo) -ou seja, um esporte que revela muito sobre os valores das culturas nas quais é praticado e assistido com mais entusiasmo. Geertz cunhou seu termo para interpretar a briga de galos em Bali, mas se alguém ainda duvida que o esporte expressa, inculca e reforça valores culturais, deveria analisar as histórias paralelas do futebol e do críquete no Novo Mundo.
Foi o Exército norte-americano (incluindo os fuzileiros navais) que introduziu o beisebol em Cuba, na República Dominicana e no Japão (onde uma equipe formada por estudantes derrotou os norte-americanos em 1896). Do mesmo modo, foram empresários britânicos e seus filhos que introduziram o futebol na América do Sul, onde os primeiros clubes de futebol eram associados às escolas inglesas em Buenos Aires e em outros lugares.
A primeira partida de futebol da qual se tem registro na Argentina aconteceu em 1867, seguida por partidas no Uruguai e no Brasil (pouco após a chegada de Charles Miller a Santos, em 1894, com duas bolas de futebol). Pouco depois desses acontecimentos foram fundados clubes nesses três países. Para um historiador cultural -ou para um antropólogo-, o que fascina nesses três casos é a maneira como o estilo do esporte foi adaptado ao estilo da cultura local.
Na ocasião da Copa do Mundo de 1938, Gilberto Freyre publicou um artigo, que ficaria famoso, em que descrevia a maneira brasileira de jogar como "um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual". "Nós dançamos com a bola", ele escreveu (e eu me recordo dessa frase vívida cada vez que vejo jogadores brasileiros na televisão). Freyre chamou a atenção para o que descreveu como "nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas, as técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto".
O que ele estava dizendo aqui, com relação ao futebol, era algo que, mais tarde, iria repetir em "Ingleses no Brasil", num contexto muito diferente, quando comentou a imitação de móveis ingleses feita no Brasil por artesãos negros. Resumindo os contrastes entre os dois estilos com dois de seus conceitos prediletos, Freyre descreveu a disciplinada maneira inglesa de jogar como "apolínea", enquanto o estilo brasileiro seria "dionisíaco".
Na Argentina também se fala em dois estilos de futebol, sendo que o espírito de equipe e a disciplina dos jogadores ingleses são descritos, com menos cortesia do que fez Freyre, como "mecânicos", e o estilo "anglo-saxão" é apresentado em contraste com a espontaneidade e o individualismo maiores dos "criollos".
Enquanto Freyre interpretava o estilo espontâneo como expressão da herança cultural africana, comentaristas argentinos tendem a enxergá-lo como latino. Será que ambos podem estar certos?

Disciplina exagerada
A hoje célebre partida de futebol jogada na Argentina em 1867 teve lugar no Buenos Aires Cricket Club, que havia sido fundado em 1832. Apesar dessa longa tradição, o críquete nunca chegou a deitar raízes na Argentina, como fez o futebol. Talvez fosse visto como demasiado disciplinado, demasiado inglês. Seja por que razão, o esporte não chegou a ser adaptado para a cultura local, tanto assim que mais ou menos morreu na década de 1930.
Já no Caribe, por outro lado -mais especificamente, na parte anglófona do Caribe-, a história do críquete é muito diferente. Ela começa há ainda mais tempo, pois os escravos e seus senhores já o jogavam no final do século 18. Como aconteceu com o futebol na Argentina, o críquete se disseminou pelas Índias Ocidentais por meio de escolas de elite como o Kingston College, na Jamaica. Tornou-se parte da cultura popular, ao mesmo tempo em que, em lugar do campo específico para o esporte, passou a ser jogado nas ruas e praias. As equipes freqüentemente jogavam descalças, e o estilo de jogo se tornou mais agressivo, mais espetacular, menos cavalheiresco e menos inglês. Assim como o futebol brasileiro sofreu a influência da capoeira, o críquete das Índias Ocidentais foi influenciado pela tradição da luta com bastões (incluindo o uso de um bastão para defender-se contra pedradas).
O novo estilo fez sucesso. Em 1900 algumas equipes já estavam viajando ao exterior para jogar, e em 1950 as Índias Ocidentais derrotaram os ingleses na própria Inglaterra -o equivalente à derrota brasileira pelo Uruguai, na copa do mesmo ano. O fato de os ingleses apreciarem a qualidade dos adversários é mostrado pelos títulos de cavaleiro outorgados a jogadores de destaque, como Gary Sobers e Learie Constantine.
O críquete tornou-se um elemento central na cultura das Índias Ocidentais, pelo menos na cultura masculina (embora muitas mulheres também assistam às partidas). O esporte é homenageado em calipsos e também em "Rites", do grande poeta jamaicano Edward Kamau Brathwaite. Foi um historiador de Trinidad e Tobago, Cyril James, quem certa vez criticou seu colega inglês G. M. Trevelyan por ter omitido o nome do jogador de críquete W. G. Grace de sua história social da Inglaterra.
Por que, então, o futebol deitou raízes no Brasil, enquanto o críquete o fez nas Índias Ocidentais? Afinal, as tradições africanas eram e são fortes nas duas regiões. Uma explicação possível para a divergência é que o críquete é mais distintamente inglês do que o futebol, que era jogado em muitas partes da Europa. Como parte do Império Britânico, as Índias Ocidentais tinham mais intimidade com a Inglaterra e sua cultura do que o Brasil jamais teve -intimidade demais para ser cômoda, vale notar.

Esporte e política
A analogia traçada entre o críquete e o Parlamento (um tópico predileto do ex-primeiro-ministro John Major) contém um núcleo importante de verdade. Ambos os sistemas, o do críquete e o do Parlamento, requerem que os participantes respeitem as regras do jogo, que são menos fáceis de ignorar ou desafiar do que são nos casos do futebol ou do governo presidencialista. Ambos os sistemas -quase escrevi "ambos os esportes"- dependem da alternação regular entre defesa e ataque, governo e oposição. Falando de política hoje, alguns ingleses dirão que já é hora de o Partido Conservador ter seu turno no poder. Por isso mesmo, a oportunidade de derrotar os ingleses em seu esporte próprio significa muito para Sobers, Constantine, James e outros jogadores.
O críquete tornou-se uma forma de oposição ao colonialismo, ou, pelo menos, uma válvula de segurança que permitia que se extravasassem os sentimentos de hostilidade em relação ao sistema colonial, que, de outro modo, poderiam ter sido canalizados para a rebelião. Como resultado, partes desse sistema sobreviveram à partida dos colonizadores. Hoje, quase meio século após a independência da Jamaica, que aconteceu em 1962, os habitantes das Índias Ocidentais ainda jogam o esporte inglês.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain


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