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Rituais vazios
Esvaziamento dos discursos políticos é fenômeno universal que transforma líderes em profetas
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Sabe-se que a política
possui seus rituais.
Os soberanos, os
príncipes e os chefes
de Estado demarcam
seus respectivos territórios
formalizando certas condutas
que distinguem os que mandam e os que obedecem.
Nas democracias contemporâneas os chefes procuram
mostrar que atuam no mesmo
plano de seus subordinados,
mas não é por isso que sub-repticiamente deixam de marcar
as diferenças.
No que nos concerne, que se
observem em particular as roupas do presidente Lula, que
quase não repete um terno e se
cobre de chapéus segundo as
circunstâncias.
Se usa um chapéu do Exército na viagem inspetora-eleitoral às obras do rio São Francisco, é porque pretende sinalizar
que todo o esforço da transposição das águas se faz mediante
a colaboração militar, portanto, sob seu comando formal.
Tudo nele simboliza, ao mesmo tempo, proximidade com o
eleitor e distância nos modos
de seu ser.
No entanto, quanto mais o
discurso político se esvazia de
sentido, tanto mais essa sinalização do poder se converte
num ritual vazio.
O fenômeno é universal, com
a exceção notável dos EUA. Note-se, por exemplo, o que Sarkozy [presidente francês] diz a
cada momento. Não lhe interessa se o que diz à tarde contradiz o que foi dito pela manhã, importa que seja ele quem
enuncia a situação a ser trazida
para o nível do discurso.
Não sabe de nada
Entre nós, como nos inclinamos a ser a caricatura do mundo, esse esvaziamento do discurso de nossos "grandes caciques" é flagrante.
Ninguém acredita, nem ele
mesmo, que o presidente do Senado, José Sarney, não sabia
das irregularidades cometidas
durante suas gestões. Mas assim mesmo ele declara não saber de nada, e todos nós terminamos sabendo de tudo como
se não soubéssemos de nada.
Vale tão só o ritual do falar
purgante.
O presidente Lula, desde a
crise do mensalão, é mestre
nesse purgar pelo discurso vazio. Nesta semana, a imprensa
anuncia que a defesa do ex-deputado Roberto Jefferson voltou a pedir que o Supremo Tribunal Federal inclua o presidente Lula entre as testemunhas do processo do mensalão.
Obviamente, o presidente
usará de suas prerrogativas de
responder por escrito, reafirmará sua ignorância do caso e
tudo continuará como está.
Mas os advogados cumprirão
a tarefa de dar uma conotação
política ao processo, oferecendo uma oportunidade ao presidente de repor o testemunho
no plano da indefinição conveniente a seus propósitos.
A fala desse poder mente,
pretende ser verdadeira, mas
todos sabem que ela é mentirosa. Isso porque as palavras não
estão valendo pelo que denominam, mas, antes de tudo,
porque simbolizam a chefia
que, exibindo-se como fazedor,
está além da verdade e da mentira. Desde os filósofos gregos
sabe-se que o discurso político
se desdobra no nível da retórica; pretende antes convencer
do que falar a verdade.
Mas não é por isso que deixa
de se revestir com o manto do
verdadeiro, pois somente assim, imaginando que estão no
verdadeiro, as pessoas podem
agir de forma coletiva, assumindo um mesmo paradigma.
Mas, se o paradigma da verdade e do interesse verdadeiro
deixam de operar, o que a fala
inconsequente simboliza?
Como esse discurso retórico
pode ainda ter efeito quando as
pessoas deixam de acreditar no
que estão dizendo e ouvindo?
Marginais
Tudo parece indicar que a fala da chefia não pretende se
responsabilizar pelo que está
sendo feito. O que faz é o chefe,
este e não outro, e, se suas frases são contraditórias, isso vem
demonstrar que o feito resulta
tão só dele, de seu ser, não de
suas palavras, vale dizer, das
determinadas opções que foi
obrigado a dizer.
A ação política deixa então de
ser coletiva para se tornar um
dom a ser recebido por aqueles
que acreditam. Estes sabem
que o benefício não pode ser
generalizado, mas, graças à mediação da chefia, podem se
apropriar das margens do que
os poderosos já possuem.
Não pedem igualdade, apenas participação, ainda que seja
pela margem. Participam do jogo político reafirmando sua
condição de marginais, contentando-se com os restos de um
sistema produtivo que alimenta uma sociedade de consumo.
Pierre Clastres, em seu estudo sobre os guaranis, nos conta
que, no fim da tarde, o chefe se
levantava e começava a discursar ao léu, sem eira nem beira.
Os índios continuavam ocupados em suas tarefas cotidianas,
mas, entre eles e o divino, um
elo estava sendo tramado.
Como Clastres estava com a
cabeça no ser e tempo, de Heidegger, ele dizia que o chefe
guarani falava do ser.
Na política atual os "caciques" estão se tornando profetas do vazio. E como o nada, assim como o ser, não tem outra
determinação a não ser ele
mesmo, pode aparecer como a
tela onde projetamos todas as
nossas carências como se elas
já estivessem sendo resolvidas.
Lula configura o outro do desastre do ensino brasileiro, do
aparelhamento do Estado, o
outro da derrocada de nossas
infraestruturas, o outro da falência de nossas instituições
políticas, o outro além do bem e
do mal.
E também o outro dos velhos
caciques, que agora sobrevivem
tão só mediante essa alteridade
comprometida.
Ele e seus companheiros tingem e cobrem a política brasileira com seu manto de verdade
falsa, ocultando assim o debate
que seria preciso fazer sobre os
gargalos atuais que atrasam
nosso desenvolvimento. E com
a falta de diálogo, eles continuam decidindo como querem
e como lhes convém.
Essa política tem resultado
em notável inclusão social, mas
acompanhada de forte enervamento de nossas jovens instituições democráticas. Como
evitá-la?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
jagiannotti@uol.com.br
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