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PARTE 1
Maurice ou A Choupana do Pescador
MARY SHELLEY
Para Laurette, de sua amiga sra. Shelley
Numa tarde de domingo em setembro, um viajante chegou à cidade de Torquay, um porto marítimo no litoral sul de Devonshire. Era uma tarde morna e agradável, e as ondas do mar levemente agitado pela brisa brilhavam sob o Sol. As ruas da cidade estavam vazias: tendo ido à igreja, os habitantes almoçavam antes do próximo serviço religioso. O viajante percorreu as ruelas da cidade até chegar ao semicírculo de casas que rodeia o porto; então, deteve-se diante da porta de uma estalagem de aparência limpa. O viajante era um homem por volta dos 45 anos; seu porte era notavelmente ereto; ágil e mesmo gracioso no andar; seus cabelos eram negros e crespos, ainda que ligeiramente ralos sobre as têmporas; era bonito, um tanto crestado, e sorria com ar tão sereno e gentil que ninguém poderia vê-lo sem gostar dele. Nos trajes e nos modos, tinha a aparência de quem, tendo visto dias melhores, agora vivia pobremente; e parecia sério, mas não deprimido com a pobreza. Suas roupas eram grosseiras e empoeiradas; estava a pé e trazia um embornal afivelado às costas.
Entrou na estalagem e, livre do embornal, sentou-se junto à porta para descansar. Foi dali que viu passar um funeral, com certeza de um sujeito pobre: o caixão era carregado por alguns camponeses, e quatro pessoas de luto o seguiam. Três deles, apesar de sérios, pareciam distraídos e indiferentes; o quarto era um garoto de uns 13 anos: chorava e parecia tão tomado de dor que não observava nada em seu redor. Algo na aparência do garoto atraiu a atenção do viajante; e, num certo instante em que ele parara de chorar e olhara para os lados da estalagem, o viajante pensou que raras vezes encontrara um jovem tão bonito. Virou-se para a proprietária e perguntou: de quem era o funeral e quem era o rapaz que o acompanhava?
"Aquele", respondeu a mulher, "era o funeral do velho Barnet, o pescador; e o garoto era uma espécie de criado ou aprendiz que vivia com ele desde a morte de sua mulher".
"Ele é da cidade?"
"Não é daqui, nem sei de onde
vem; é filho de gente pobre, ou os
pais jamais o teriam mandado viver na cabana do velho Barnet. A
vizinhança diz que é bom menino,
mas não sei nada dele."
O viajante suspirou e disse: "O
garoto pode não ser nada para
mim, mas sua aparência e suas
maneiras me agradam muito".
Um rapaz da região que jantava
numa mesa no canto da sala levantou-se e disse: "Moro perto da cabana do velho Barnet e conheço
bem o rapaz: é a melhor criatura
deste mundo, e não há quem o conheça que não goste dele. E, como
o senhor parece intrigado, posso
contar tudo sobre ele, caso o senhor deseje". O viajante assentiu
e o rapaz começou assim:
"A cabana do velho Barnet fica a
umas três milhas da cidade, ao pé
de uma falésia e protegida por
umas árvores; é muito isolada e
pobre; na primavera, a maré quase
sobe até a porta; e, quando o vento
sopra, o borrifo do mar vem bater
nas janelas. Nenhum vizinho entende como uma choupana tão velha consegue suportar o desgaste
do tempo, ou como algum vento
sul não lança as ondas sobre ela,
tão perto do mar ela está. Mas, como é protegida pelo penhasco e foi
construída em terreno um pouco
mais alto que a praia, fora do alcance das ondas mais tempestuosas, ela permanece ali tal como a
conheço desde que nasci, uma velha choupana castigada pelo tempo, o teto coberto de líquen e musgo. Ao lado dela há um pequeno
abrigo para onde se arrasta o barco, além de um telheiro onde as
redes e as velas eram guardadas
quando o velho voltava do mar.
Um córrego de água doce escorre
falésia abaixo e vai dar no mar;
quando era garoto, eu lançava
barquinhos de papel no regato para vê-los navegar rumo ao mar, até
que se perdessem entre as ondas
grandes.
O velho Barnet e a mulher viviam ali. Ele era um velho muito
trabalhador; cedo ou tarde, lá estava seu barquinho no mar, e muitas
vezes, quando ninguém mais se
arriscava a sair, Barnet zarpava e
voltava com peixe bom e fresco
para o mercado de Torquay. A
mulher era tão entrevada que raramente deixava a velha poltrona
de espaldar alto e tecido de lã, em
que ficava sentada consertando
redes ou ensinando a ler alguma
criança das fazendas vizinhas.
Nossa fazenda fica apenas a meia
milha da choupana e eu sou um
dos que aprendeu a ler na grande
Bíblia da senhora Barnet. Não deixava que lhe pagassem pelo serviço, dizendo que era só dever de
boa vizinhança; mas todo domingo eu costumava levar para ela
uma cesta de frutas e legumes, e
todo outono ela recebia uma dúzia
de garrafas da nossa melhor cidra.
Faz bem um ano que essa boa
mulher morreu, e todas as crianças choraram em seu funeral: pois
além de ensinar a ler, ela nunca ralhava com ninguém (a única punição era proibir que a visitassem),
fazia bonitas bolas de lã e contava
histórias de "Goody Two-Shoes' e
dos "Babes in the Wood', ou então cantava a balada de Chevy
Chase (1) e muitas outras que
agradavam a adultos e crianças.
Afora isso, ela fazia mil pequenos
favores, como consertar suas roupinhas quando se rasgavam por
acidente, que faziam dela a preferida de todos. Barnet ficou muito
amargurado quando ela morreu;
não que fosse de muita ajuda, já
que só saía da poltrona com muito
esforço: mas, quando ele voltava
ensopado da pesca, durante os
dias tempestuosos de inverno,
quando quase toda onda quebrava
contra o barco, ela cuidava de ter o
fogo aceso e a cabana em ordem
para o jantar. Depois que ela morreu, ele era obrigado a vir faminto
e às vezes encharcado até o mercado aqui na cidade; e, quando voltava, ele não sabia muito bem como preparar a comida e limpar o
quarto. Além disso, agora ele tinha
que costurar sozinho as redes e,
como isso tomava boa parte de seu
tempo, ele já não pescava como
antes. Tudo isso o deixava macambúzio. Uns dois meses depois
da morte da senhora Barnet, ele
veio com lágrimas nos olhos até a
nossa fazenda, dizendo que devia
largar a pesca e tentar a sorte no
interior, que a velha cabana sob a
falésia tornara-se odiosa desde a
morte da mulher. Era um velho
robusto, mas os cabelos eram
brancos como neve, as costas curvadas pela idade; dava pena ouvi-lo falar em abandonar a choupana, o barco e tudo o que tinha
no mundo para tentar a sorte entre
estranhos. Meu pai confortou-o,
fez que jantasse conosco e prometeu que de vez em quando mandaria minha irmã Betsy arrumar a
cabana. Ele voltou para casa de coração mais leve.
No dia seguinte, o vento soprou
forte, e o velho, sem poder zarpar
com o barco, sentou-se numa rocha que formava uma espécie de
assento próximo à choupana e começou a costurar as redes. Enquanto estava assim ocupado, o
garoto de quem estamos falando,
cujo nome é Maurice, se aproximou e se sentou ao seu lado na rocha. O garoto era estranho por estes lados; depois de se cumprimentarem, ficaram ambos em silêncio por algum tempo; finalmente, Maurice disse: "Acho que
poderia ajudá-lo com isso e, como
não tenho nada para fazer, gostaria que me deixasse tentar'.
"Tente e seja bem-vindo', disse
Barnet, "mas como é possível que
você não tenha nada a fazer? Bons
garotos devem trabalhar; você não
é da região, e não é bom que um
garoto da sua idade fique vagando
sozinho por aí'. "Meus pais são
pobres', retrucou Maurice, "e,
como não podiam me manter,
tentei ganhar meu próprio pão;
não me treinaram para nenhum
ofício, e sempre fui fraco e incapaz
para trabalhar pesado. Quando saí
de casa, fui seguindo um homem
de uma fazenda não muito distante, onde me deram trabalho de sobra nos campos, nos estábulos e
nos celeiros. Trabalhava duro,
porque meu patrão era severo, e
acabei caindo doente; quando eu
não pude mais trabalhar, eles me
mandaram embora, e acho que teria morrido se uma pobre mulher
não tivesse tomado conta de mim.
Era tão pobre que não quis ser um
fardo para ela além do tempo necessário, mas agora estou muito
fraco para trabalhar para o meu
antigo patrão, e é por isso que saí
pelo mundo, e serei grato a quem
me ajudar, oferecendo algum trabalho que eu possa realizar ou dizendo onde conseguir algum; pois
tenho disposição e, ainda que seja
eu a dizê-lo, sou honesto e sempre
fui considerado prestativo e industrioso'.
O velho Barnet observou o rosto
do garoto; o senhor sabe que menino bonito ele é; naquela época
sua aparência adoentada fazia dele
um perfeito objeto de compaixão;
tem a voz mais suave do mundo e
tudo o que dizia parecia dirigido
ao coração do velho homem. Ele
pensou: não tenho filho nesta terra; meu único parente é um irmão
que despreza um pobre pescador
como eu. Minha mulher morreu,
não tenho ninguém para me ajudar ou para me animar com um
"até mais, Deus lhe dê boa sorte!'
quando saio para pescar. Com certeza é o céu que me mandou este
garoto e sinto até que já o amo como se fosse meu filho. Ficará comigo; posso mantê-lo como mantinha minha pobre mulher que se
foi; ele pode arrumar a cabana,
costurar as redes e velas e quem
sabe se nos serões de ventania ele
não pode ler a Bíblia para mim,
como fazia minha mulher.
Foi uma bela idéia: o acordo foi
logo fechado, e desde então Maurice vive com o velho Barnet lá na
cabana. Ele é um bom menino,
honesto, prestativo e esperto;
quando o conhecemos, nós todos
em casa gostamos dele. Sabe ler
bem passavelmente, e então meus
irmãozinhos passaram a visitá-lo
todo domingo, como faziam com
a velha senhora, e não há ninguém
de mais tranquilo. Transformou a
cabana em outra coisa: limpou-a,
consertou cadeiras velhas, caiou a
chaminé, lustrou e pôs em ordem
potes e panelas. Andava sempre
contente, sempre trabalhando,
sempre pronto para fazer uma boa
ação para os pobres como para os
ricos. O velho se afeiçoava mais e
mais a ele, e muitas vezes agradecia a Deus pelo dia em que ele chegara ali. Quando estava no mar de
dia, o velho conseguia enxergar as
árvores que se balançavam sobre o
teto da cabana; de noite, conseguia
distinguir a vela que Maurice colocava à janela para indicar o curso a
seguir. Quando o velho chegava à
praia, o garoto estava sempre lá
para ajudá-lo a puxar o barco para
o abrigo; no inverno, encontrava
um fogo aceso para preparar o
jantar e a mesa coberta com uma
toalha velha, áspera e limpa. De
manhã, enquanto ele ia ao mercado, Maurice baldeava a água do
barco, costurava as redes, ajeitava
as velas e pronunciava um sorridente "Deus lhe dê sorte!' quando
o velho zarpava para o mar. Viveram vários meses dessa maneira,
muito felizes, e aí, na semana passada, o velho Barnet morreu".
O rapaz calou-se e o viajante perguntou: "O que será do garoto?".
"Não sei; mas ele é tão bem visto
que não acho que vá passar aperto.
Eu mesmo estou agora deixando a
região por algumas semanas, vou
visitar minha avó em Sidmouth;
mas, quando voltar, minha primeira pergunta será sobre Maurice. Contei-lhe uma longa história,
senhor, mas espero que me perdoe; o senhor já vai acabando o almoço, não vou detê-lo mais.
Adeus!". "Obrigado, de coração.
Adeus e boa viagem", foi a resposta, e o rapaz foi-se embora da
estalagem.
O viajante permaneceu mais algum tempo com a cabeça apoiada
sobre uma das mãos, pensando no
que fazer. Queria muito investigar
mais a respeito de Maurice, mas,
quando pensou no que tinha a fazer em Exeter, não pôde se decidir
a atrasar a partida: descansou por
mais uma hora, tomou do embornal e partiu pelo caminho de Exeter.
Chegou a essa cidade na manhã
seguinte. Mais tarde explicarei o
que ele tinha para fazer; por enquanto, direi apenas que, depois
de passar três dias de angústia, foi
obrigado a desistir de seus afazeres
e voltar ao ponto de partida, a fim
de descobrir se algo acontecera
nesse ínterim que pudesse ajudá-lo; ao mesmo tempo, decidiu
visitar a cabana do velho Barnet,
descobrir o que fora feito de Maurice e oferecer seus serviços para
encontrar-lhe um novo lugar, onde pudesse ganhar seu pão honestamente, sem ser esfalfado. E agora, abandonando-o com seu embornal no caminho de volta de
Exeter a Torquay, vamos dar uma
olhada na cabana sob a falésia e
vejamos o que é feito de Maurice e
que saída haverá para seus infortúnios.
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