São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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PARTE 1

Maurice ou A Choupana do Pescador

MARY SHELLEY
Para Laurette, de sua amiga sra. Shelley

Numa tarde de domingo em setembro, um viajante chegou à cidade de Torquay, um porto marítimo no litoral sul de Devonshire. Era uma tarde morna e agradável, e as ondas do mar levemente agitado pela brisa brilhavam sob o Sol. As ruas da cidade estavam vazias: tendo ido à igreja, os habitantes almoçavam antes do próximo serviço religioso. O viajante percorreu as ruelas da cidade até chegar ao semicírculo de casas que rodeia o porto; então, deteve-se diante da porta de uma estalagem de aparência limpa. O viajante era um homem por volta dos 45 anos; seu porte era notavelmente ereto; ágil e mesmo gracioso no andar; seus cabelos eram negros e crespos, ainda que ligeiramente ralos sobre as têmporas; era bonito, um tanto crestado, e sorria com ar tão sereno e gentil que ninguém poderia vê-lo sem gostar dele. Nos trajes e nos modos, tinha a aparência de quem, tendo visto dias melhores, agora vivia pobremente; e parecia sério, mas não deprimido com a pobreza. Suas roupas eram grosseiras e empoeiradas; estava a pé e trazia um embornal afivelado às costas.
Entrou na estalagem e, livre do embornal, sentou-se junto à porta para descansar. Foi dali que viu passar um funeral, com certeza de um sujeito pobre: o caixão era carregado por alguns camponeses, e quatro pessoas de luto o seguiam. Três deles, apesar de sérios, pareciam distraídos e indiferentes; o quarto era um garoto de uns 13 anos: chorava e parecia tão tomado de dor que não observava nada em seu redor. Algo na aparência do garoto atraiu a atenção do viajante; e, num certo instante em que ele parara de chorar e olhara para os lados da estalagem, o viajante pensou que raras vezes encontrara um jovem tão bonito. Virou-se para a proprietária e perguntou: de quem era o funeral e quem era o rapaz que o acompanhava?
"Aquele", respondeu a mulher, "era o funeral do velho Barnet, o pescador; e o garoto era uma espécie de criado ou aprendiz que vivia com ele desde a morte de sua mulher".
"Ele é da cidade?"
"Não é daqui, nem sei de onde vem; é filho de gente pobre, ou os pais jamais o teriam mandado viver na cabana do velho Barnet. A vizinhança diz que é bom menino, mas não sei nada dele."
O viajante suspirou e disse: "O garoto pode não ser nada para mim, mas sua aparência e suas maneiras me agradam muito". Um rapaz da região que jantava numa mesa no canto da sala levantou-se e disse: "Moro perto da cabana do velho Barnet e conheço bem o rapaz: é a melhor criatura deste mundo, e não há quem o conheça que não goste dele. E, como o senhor parece intrigado, posso contar tudo sobre ele, caso o senhor deseje". O viajante assentiu e o rapaz começou assim:
"A cabana do velho Barnet fica a umas três milhas da cidade, ao pé de uma falésia e protegida por umas árvores; é muito isolada e pobre; na primavera, a maré quase sobe até a porta; e, quando o vento sopra, o borrifo do mar vem bater nas janelas. Nenhum vizinho entende como uma choupana tão velha consegue suportar o desgaste do tempo, ou como algum vento sul não lança as ondas sobre ela, tão perto do mar ela está. Mas, como é protegida pelo penhasco e foi construída em terreno um pouco mais alto que a praia, fora do alcance das ondas mais tempestuosas, ela permanece ali tal como a conheço desde que nasci, uma velha choupana castigada pelo tempo, o teto coberto de líquen e musgo. Ao lado dela há um pequeno abrigo para onde se arrasta o barco, além de um telheiro onde as redes e as velas eram guardadas quando o velho voltava do mar. Um córrego de água doce escorre falésia abaixo e vai dar no mar; quando era garoto, eu lançava barquinhos de papel no regato para vê-los navegar rumo ao mar, até que se perdessem entre as ondas grandes.
O velho Barnet e a mulher viviam ali. Ele era um velho muito trabalhador; cedo ou tarde, lá estava seu barquinho no mar, e muitas vezes, quando ninguém mais se arriscava a sair, Barnet zarpava e voltava com peixe bom e fresco para o mercado de Torquay. A mulher era tão entrevada que raramente deixava a velha poltrona de espaldar alto e tecido de lã, em que ficava sentada consertando redes ou ensinando a ler alguma criança das fazendas vizinhas. Nossa fazenda fica apenas a meia milha da choupana e eu sou um dos que aprendeu a ler na grande Bíblia da senhora Barnet. Não deixava que lhe pagassem pelo serviço, dizendo que era só dever de boa vizinhança; mas todo domingo eu costumava levar para ela uma cesta de frutas e legumes, e todo outono ela recebia uma dúzia de garrafas da nossa melhor cidra.
Faz bem um ano que essa boa mulher morreu, e todas as crianças choraram em seu funeral: pois além de ensinar a ler, ela nunca ralhava com ninguém (a única punição era proibir que a visitassem), fazia bonitas bolas de lã e contava histórias de "Goody Two-Shoes' e dos "Babes in the Wood', ou então cantava a balada de Chevy Chase (1) e muitas outras que agradavam a adultos e crianças. Afora isso, ela fazia mil pequenos favores, como consertar suas roupinhas quando se rasgavam por acidente, que faziam dela a preferida de todos. Barnet ficou muito amargurado quando ela morreu; não que fosse de muita ajuda, já que só saía da poltrona com muito esforço: mas, quando ele voltava ensopado da pesca, durante os dias tempestuosos de inverno, quando quase toda onda quebrava contra o barco, ela cuidava de ter o fogo aceso e a cabana em ordem para o jantar. Depois que ela morreu, ele era obrigado a vir faminto e às vezes encharcado até o mercado aqui na cidade; e, quando voltava, ele não sabia muito bem como preparar a comida e limpar o quarto. Além disso, agora ele tinha que costurar sozinho as redes e, como isso tomava boa parte de seu tempo, ele já não pescava como antes. Tudo isso o deixava macambúzio. Uns dois meses depois da morte da senhora Barnet, ele veio com lágrimas nos olhos até a nossa fazenda, dizendo que devia largar a pesca e tentar a sorte no interior, que a velha cabana sob a falésia tornara-se odiosa desde a morte da mulher. Era um velho robusto, mas os cabelos eram brancos como neve, as costas curvadas pela idade; dava pena ouvi-lo falar em abandonar a choupana, o barco e tudo o que tinha no mundo para tentar a sorte entre estranhos. Meu pai confortou-o, fez que jantasse conosco e prometeu que de vez em quando mandaria minha irmã Betsy arrumar a cabana. Ele voltou para casa de coração mais leve.
No dia seguinte, o vento soprou forte, e o velho, sem poder zarpar com o barco, sentou-se numa rocha que formava uma espécie de assento próximo à choupana e começou a costurar as redes. Enquanto estava assim ocupado, o garoto de quem estamos falando, cujo nome é Maurice, se aproximou e se sentou ao seu lado na rocha. O garoto era estranho por estes lados; depois de se cumprimentarem, ficaram ambos em silêncio por algum tempo; finalmente, Maurice disse: "Acho que poderia ajudá-lo com isso e, como não tenho nada para fazer, gostaria que me deixasse tentar'.
"Tente e seja bem-vindo', disse Barnet, "mas como é possível que você não tenha nada a fazer? Bons garotos devem trabalhar; você não é da região, e não é bom que um garoto da sua idade fique vagando sozinho por aí'. "Meus pais são pobres', retrucou Maurice, "e, como não podiam me manter, tentei ganhar meu próprio pão; não me treinaram para nenhum ofício, e sempre fui fraco e incapaz para trabalhar pesado. Quando saí de casa, fui seguindo um homem de uma fazenda não muito distante, onde me deram trabalho de sobra nos campos, nos estábulos e nos celeiros. Trabalhava duro, porque meu patrão era severo, e acabei caindo doente; quando eu não pude mais trabalhar, eles me mandaram embora, e acho que teria morrido se uma pobre mulher não tivesse tomado conta de mim. Era tão pobre que não quis ser um fardo para ela além do tempo necessário, mas agora estou muito fraco para trabalhar para o meu antigo patrão, e é por isso que saí pelo mundo, e serei grato a quem me ajudar, oferecendo algum trabalho que eu possa realizar ou dizendo onde conseguir algum; pois tenho disposição e, ainda que seja eu a dizê-lo, sou honesto e sempre fui considerado prestativo e industrioso'.
O velho Barnet observou o rosto do garoto; o senhor sabe que menino bonito ele é; naquela época sua aparência adoentada fazia dele um perfeito objeto de compaixão; tem a voz mais suave do mundo e tudo o que dizia parecia dirigido ao coração do velho homem. Ele pensou: não tenho filho nesta terra; meu único parente é um irmão que despreza um pobre pescador como eu. Minha mulher morreu, não tenho ninguém para me ajudar ou para me animar com um "até mais, Deus lhe dê boa sorte!' quando saio para pescar. Com certeza é o céu que me mandou este garoto e sinto até que já o amo como se fosse meu filho. Ficará comigo; posso mantê-lo como mantinha minha pobre mulher que se foi; ele pode arrumar a cabana, costurar as redes e velas e quem sabe se nos serões de ventania ele não pode ler a Bíblia para mim, como fazia minha mulher.
Foi uma bela idéia: o acordo foi logo fechado, e desde então Maurice vive com o velho Barnet lá na cabana. Ele é um bom menino, honesto, prestativo e esperto; quando o conhecemos, nós todos em casa gostamos dele. Sabe ler bem passavelmente, e então meus irmãozinhos passaram a visitá-lo todo domingo, como faziam com a velha senhora, e não há ninguém de mais tranquilo. Transformou a cabana em outra coisa: limpou-a, consertou cadeiras velhas, caiou a chaminé, lustrou e pôs em ordem potes e panelas. Andava sempre contente, sempre trabalhando, sempre pronto para fazer uma boa ação para os pobres como para os ricos. O velho se afeiçoava mais e mais a ele, e muitas vezes agradecia a Deus pelo dia em que ele chegara ali. Quando estava no mar de dia, o velho conseguia enxergar as árvores que se balançavam sobre o teto da cabana; de noite, conseguia distinguir a vela que Maurice colocava à janela para indicar o curso a seguir. Quando o velho chegava à praia, o garoto estava sempre lá para ajudá-lo a puxar o barco para o abrigo; no inverno, encontrava um fogo aceso para preparar o jantar e a mesa coberta com uma toalha velha, áspera e limpa. De manhã, enquanto ele ia ao mercado, Maurice baldeava a água do barco, costurava as redes, ajeitava as velas e pronunciava um sorridente "Deus lhe dê sorte!' quando o velho zarpava para o mar. Viveram vários meses dessa maneira, muito felizes, e aí, na semana passada, o velho Barnet morreu".
O rapaz calou-se e o viajante perguntou: "O que será do garoto?". "Não sei; mas ele é tão bem visto que não acho que vá passar aperto. Eu mesmo estou agora deixando a região por algumas semanas, vou visitar minha avó em Sidmouth; mas, quando voltar, minha primeira pergunta será sobre Maurice. Contei-lhe uma longa história, senhor, mas espero que me perdoe; o senhor já vai acabando o almoço, não vou detê-lo mais. Adeus!". "Obrigado, de coração. Adeus e boa viagem", foi a resposta, e o rapaz foi-se embora da estalagem.
O viajante permaneceu mais algum tempo com a cabeça apoiada sobre uma das mãos, pensando no que fazer. Queria muito investigar mais a respeito de Maurice, mas, quando pensou no que tinha a fazer em Exeter, não pôde se decidir a atrasar a partida: descansou por mais uma hora, tomou do embornal e partiu pelo caminho de Exeter.
Chegou a essa cidade na manhã seguinte. Mais tarde explicarei o que ele tinha para fazer; por enquanto, direi apenas que, depois de passar três dias de angústia, foi obrigado a desistir de seus afazeres e voltar ao ponto de partida, a fim de descobrir se algo acontecera nesse ínterim que pudesse ajudá-lo; ao mesmo tempo, decidiu visitar a cabana do velho Barnet, descobrir o que fora feito de Maurice e oferecer seus serviços para encontrar-lhe um novo lugar, onde pudesse ganhar seu pão honestamente, sem ser esfalfado. E agora, abandonando-o com seu embornal no caminho de volta de Exeter a Torquay, vamos dar uma olhada na cabana sob a falésia e vejamos o que é feito de Maurice e que saída haverá para seus infortúnios.



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