São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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O holocausto e a consciência histórica alemã

Cinquenta e seis anos após o final da Segunda Guerra Mundial, as discussões entre intelectuais alemães sobre as consequências dos crimes cometidos entre 1933 e 1945 a mando do Estado alemão se tornaram hoje de repente -e bem rápido- mais acirradas, mais obsessivas mesmo, do que nunca. Pelo menos é esse o efeito que elas estão tendo nas múltiplas perspectivas externas nacionais. E, como além disso se parte da idéia, bem justificada pela experiência histórica, de que com o tempo tais traumas "cicatrizam" da mesma maneira que ferimentos físicos, a mais recente agudeza dessas palavras e sentimentos alemães é um notável, e a princípio enigmático, dado novo com o qual deveriam se confrontar fora da Alemanha. Só que, antes que nos perguntemos como isso tudo se explica, o fenômeno em questão deveria ser examinado da maneira mais clara possível. Não se trata, certamente, de um aumento de acessos de culpa ou mesmo de inquietação moral em toda a população alemã. Nesse sentido, pelo contrário, a intensidade emocional há anos vem diminuindo mais do que seria de esperar. Tampouco são os chamados "Holocaust studies" que fazem o debate se acirrar. Tais estudos hoje florescem sobretudo em algumas universidades americanas sem que se reflita que sua institucionalização acadêmica pode incluir o perigo (ou talvez até a obscenidade) de uma normalização dos crimes ocorridos. Notável mesmo é apenas o fato de que nos últimos anos sobretudo a controvérsia dos especialistas intelectuais alemães quanto a um possível lugar para o Holocausto na concepção nacional de história venha se acalorando tanto e que a dinâmica do embate tenha atingido posições extremadas e, portanto, inconciliáveis que não podem mais, absolutamente, ser classificadas segundo polarizações do tipo "auto-acusadoras" versus "auto-apaziguadoras" ou mesmo "esquerda" versus "direita". Ao pensar a fundo o problema colocado, parecem porém continuar predominando sobre a clareza dos conceitos e das lógicas argumentativas os sentimentos -ainda que estes também sejam em parte os sentimentos satisfeitos de auto-acusação moral.

História da memória
O que impele a extremos as posições opostas são principalmente -como num processo de auto-imunização fora de controle- as reações dos protagonistas à intensidade da própria contenda. Em posicionamentos independentes, mas convergentes, o egiptólogo Jan Assmann e a anglicista Aleida Assmann, duas das mais respeitadas personalidades alemãs das ciências humanas de hoje, levantaram recentemente a tese de que o acirramento dos embates intelectuais seria o epílogo imediato de uma "história internacional da memória", na qual a lembrança do Holocausto com o tempo teria desaguado em "sentido normativo". Desse sentido normativo felizmente a memória histórica coletiva dos alemães não teria conseguido escapar, de tal modo que "o Holocausto como ponto de referência negativo da história alemã de maneira nenhuma tiraria os fundamentos da consciência histórica alemã, e sim seria antes o fundamento insondável sobre o qual essa consciência poderia se reconstruir". Ponto de referência e antagonista dessa posição é Karl Heinz Bohrer, editor da insigne revista mensal "Merkur", que pouco antes se queixara, numa palestra em Heidelberg, de que a incomum (porque quase invariável) concentração sobre o Holocausto pelos intelectuais da crítica social do país teria produzido uma "desmemoriação" patológica, sobretudo no que se refere ao passado nacional mais distante. Em outras palavras, teria levado a uma incapacidade de tematizar e pensar o passado alemão de outro modo senão como pré-história do Holocausto. Resultado: uma progressiva atrofia da consciência histórica nacional. A atual polarização de posições diferencia-se então de fases alemãs anteriores do mesmo debate, principalmente por Bohrer reclamar uma consciência histórica nacional positiva, específica e ao mesmo tempo -o que é bem incomum como associação mental- insistir na "incomparabilidade" histórica dos crimes nazistas. Para Bohrer, seriam crimes incomparáveis porque o Holocausto foi obra de uma das clássicas nações de cultura. Mais: porque possivelmente ele teria se originado do entendimento particular de cultura dessa própria nação (de um entendimento de cultura que daria aos valores de "pureza" e "limpeza" uma posição insuperavelmente alta). E porque nisso Bohrer segue "Le Différend", livro de Jean-François Lyotard, o terror nazista não teria concedido às suas vítimas nem sombra de possibilidade de reação ou adesão. Em seus motivos para a condenação incondicional do Holocausto e do nazismo, portanto, os antagonistas do debate estão de acordo. Sua divergência situa-se exclusivamente -e essa é a novidade no mais recente estado de discussão dos alemães- nas conclusões opostas que eles tiram dessas reações primárias em comum.


A esperança secular de redenção do passado alemão nazista é a esperança por uma "nova geração" de alemães, que "tenha interiorizado o momento daquele passado terrível, de tal modo que sua autoconsciência não tenha mais que olhar de lado"


Só que, ao se entrar nessa controvérsia com a esperança de interromper a dinâmica da recíproca projeção de posições cada vez mais extremadas, nota-se que quase tudo depende da questão implicada na afirmação de que o Holocausto teria "recebido" uma boa dose de sentido coletivamente obrigatório na consciência do mundo posterior e assim teria enfim encontrado um lugar na consciência histórica dos alemães.

Extrair um sentido
Fica evidente que intelectuais como Aleida Assmann e Jan Assmann se incluem aí e se colocam com isso numa tradição tão venerável quanto inevitavelmente próspera, a de que é possível aprender algo da história e, mais exatamente, que a "história da memória que tende a ser de toda a humanidade quer recordar Auschwitz para que nunca mais seres humanos em nome da autoridade de alguns sejam despojados de sua honra e outros, até outros Estados, assistam a isso impassíveis".
A possibilidade, em princípio, de extrair um tal sentido dos crimes nazistas, e exatamente dele tirar essa lição, é indiscutível. O que na verdade está em discussão e de modo mais decisivo é o problema de saber se esse sentido e essa lição são específica e substancialmente suficientes para que possam sozinhos (e isso, sim, está em jogo, na medida em que o desejo de Bohrer de uma consciência política nacional positiva esteja sendo contestado) ser o fundamento insondável para uma nova consciência histórica alemã. O que somos de fato capazes de compreender -assim crê a cultura ocidental desde Giambattista Vico- são aquelas ações ou aqueles produtos que nós mesmos tenhamos sido capazes de executar ou fabricar. É justamente sobre esse pressuposto de uma inteligência, de uma racionalidade e uma responsabilidade universalmente compartilhadas que se baseia, de modo inverso, a confiança de que seria possível deter com êxito atos semelhantes de potenciais assassinos do futuro por meio do "sentido normativo" do Holocausto. Porém é só deixar clara uma tal consequência para sentir que se trata aí de uma intenção abstrata e portanto bastante fraca. Sem contar outra questão igualmente importante: se seria mesmo inevitável (e oportuno) manifestar aos assassinos nazistas, com nosso entendimento, outros sinais de nosso perdão. Em todo caso, o propósito de evitar um Holocausto no futuro é, mais do que óbvio, vazio e por isso infrutífero demais para sozinho justificar a consciência de uma nação (ou qualquer outra forma de vida coletiva). O que resultaria, porém, se ao contrário, segundo as premissas da interpretação de Lyotard, se partisse do pressuposto de que, pelo fato histórico da recusa de qualquer direito à reação e adesão em relação às vítimas, por essa recusa teria se estrangulado um possível nexo de sentido entre o acontecimento do nazismo e os tempos que lhe seguiram e que assim a história alemã teria se desconjuntado? Essa opção (e de todo modo ambos os lados de nosso objeto de discussão não são senão opções, a favor ou contra as quais se pode decidir, e não posturas "necessárias") dá a entender primeiramente que se está recusando aos assassinos nazistas a até então inevitável admissão de entendimento, o que inclui a convicção de que de modo inverso eles ou potenciais sucessores seus de todo modo não poderiam ser (ter sido) impedidos de cometer seus crimes por meio de argumentos ou advertências. Com tal postura, Claude Lanzmann, diretor do documentário "Shoa", provocou anos atrás o público intelectual. Com relação à história alemã bem como com relação a uma possível história da humanidade isso quer dizer ainda que ambas as opções não oferecem estruturalmente nenhum nexo de sentido possível, e com isso nenhum lugar mais para o Holocausto. Claro que a recusa ao entendimento tem seu preço e suas consequências. O preço se encontra na necessidade filosoficamente problemática e, do ponto de vista político, talvez até perigosa de remeter tais crimes a uma zona conceitual fora do humanamente possível. As consequências, no entanto, encontram-se, na verdade, no imperativo de que os historiadores e a opinião pública alemães devam se concentrar naqueles momentos passados de sua história nacional dos quais se possa produzir um nexo de sentido e, se possível, até carregado de conteúdo positivo com o seu momento presente. Pois, se nos recusamos a compreender o Holocausto, então ele deixa de ser apropriado como fundamento de uma nova e, menos ainda, de uma insondável consciência nacional. De modo algum, porém, será pelas implicações dessas consequências que a Alemanha, como se tem afirmado, esteja se isolando em tempos de integração européia e talvez até mesmo global. Pelo contrário: exceção nacional se isolando no plano internacional é, antes, o anseio por uma consciência histórica que se apóie com exclusividade nos gestos morais em si, naturalmente mais do que adequados, de um assumir de culpa e de boas intenções para o futuro. É exatamente uma consciência histórica assim que, há muito tempo e mesmo em nível internacional provocando mal-estar, vem causando o efeito peculiar de que justamente os intelectuais alemães (diante da atrofia de sua identidade nacional, acrescente-se) se sintam convocados a ser porta-vozes de uma postulada consciência mundial.

Holocausto recalcado
Mas voltar-se para conteúdos potencialmente positivos da história alemã não equivale a recalcar o Holocausto? A realidade cotidiana cultural na Alemanha de hoje prova o contrário. Afinal, nela se desenvolve o fomento de bens culturais nacionais -pensemos na produção intelectual dos germanistas ou no trabalho dos institutos Goethe por todo o mundo-, obviamente ao lado do autocomprometimento com a lembrança do Holocausto.
O que ambos os dados impõem não é a decisão diante de alternativas, e sim mais uma vez questionar se a lembrança do Holocausto deve ser convertida no estabelecimento de "sentido normativo". Senão, qual seria a alternativa para o estabelecimento do "sentido normativo"? Uma possibilidade estaria numa relação com o Holocausto como parte do passado alemão que pelo menos de modo aproximativo possa ser redefinida pelo conceito teológico de "redenção".
Quem espera redenção espera que circunstâncias felizes (ou pelo menos lembradas como felizes) do passado distante, as quais se desfizeram por delitos incisivos no passado recente, um dia possam ser reconstituídas (não se pode esperar para o futuro, segundo a lógica da redenção, mais do que aquilo que já ocorreu no passado distante ou que se apresente como ocorrido). O Holocausto seria aquele "delito incisivo", e o que se deveria reconstituir seria aquela "relação" do povo alemão com os judeus e talvez até com outros povos do mundo, como deve ter havido muito antes de 1933.
Quem espera redenção também está disposto, porém, a fazer sacrifícios, sem que -e isso é decisivo- com sua disposição implique uma garantia de redenção ou mesmo a pretensão de que num certo instante o estado de felicidade do passado deva ser considerado reconstituído. A vítima da nação alemã deveria estar disposta a num tempo futuro expor-se à presentificação dos crimes do Terceiro Reich sem limitações e sem a autoproteção de sentidos moralizantes determinados.
Isso também equivaleria a dizer, então, que a esperança secular de redenção do passado alemão nazista é a esperança por uma "nova geração" de alemães, a qual, conforme Bohrer formulou, finalmente "tenha interiorizado o momento daquele passado terrível, de tal modo que sua autoconsciência não tenha mais que olhar de lado". Mas por essa geração esperamos nós, de fora da Alemanha continuamente e até agora em vão.


Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34).
Tradução de Marcelo Rondinelli.




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