São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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Além dos espíritos livres


EM "A GAIA CIÊNCIA" O FILÓSOFO ALEMÃO FRIEDRICH NIETZSCHE SE DESPEDE DO ENTUSIASMO DA FASE INICIAL E JÁ ANTEVÊ O NIILISMO DE "ASSIM FALOU ZARATUSTRA"


Oswaldo Giacoia Junior
especial para a Folha

Felizmente, nem só em hecatombe e barbárie acaba o segundo semestre de 2001. Aos amantes dos bons livros, ele proporciona também uma alegria sem par: a tradução brasileira, por Paulo César de Souza de "A Gaia Ciência", do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Trata-se de uma obra magnífica, sob todos os pontos de vista, que interessa não apenas a filósofos e jusfilósofos, teólogos, psicólogos e cientistas sociais como também a estetas, germanistas, estudiosos da linguagem, poetas, teóricos da literatura.
Publicado em agosto de 1882, "A Gaia Ciência" foi originalmente concebida por seu autor como uma continuação em cinco livros (expressão que Nietzsche preferia à nossa designação "capítulos") de "Aurora", publicado no ano anterior. A obra se inscreve, portanto, num registro de continuidade em relação aos escritos anteriores de Nietzsche (1844-1900), em especial a "Humano Demasiado Humano" e "Aurora". Tematicamente, o texto está fortemente vinculado à crítica e a análise psicológica da moral e da religião, enquanto potências culturais.
Também desse ponto de vista, é necessário apreciar "A Gaia Ciência" sob a perspectiva do programa de filosofia para espíritos livres ("Freigeisterei"), que Nietzsche havia concebido no final dos anos 70 do século 19, e com o qual se distanciava daquela metafísica de artista característica de suas primeiras obras, especialmente de "O Nascimento da Tragédia", em que se faz sentir pronunciadamente o peso das influências da filosofia da vontade de Arthur Schopenhauer e do projeto de obra de arte total do músico Richard Wagner, de cuja combinação Nietzsche esperava um renascimento da potência ético-política da tragédia ática no seio da cultura autenticamente alemã.


"A Gaia Ciência" respira uma atmosfera solar, um estado anímico de convalescença e retorno da saúde, uma mudança de pele, transformação de perspectiva diante do conhecimento e da vida


Desse modo, "A Gaia Ciência" pode ser vista como aprofundamento das posições iluministas -alguns comentadores chegam a designar essa fase intermediária do pensamento de Nietzsche como positivista- que o autor havia assumido com "Humano Demasiado Humano", com as quais abandonava o primado concedido à arte enquanto perspectiva privilegiada para a crítica da cultura, passando a depositar suas esperanças emancipatórias na racionalidade científica. Por essa razão, dedicara a primeira edição de "Humano Demasiado Humano" ao pensador e iconoclasta francês Voltaire e escolhera como epígrafe desse livro uma passagem de "O Discurso do Método", de René Descartes, numa clara indicação do que se deveria compreender por espírito livre: aquele que se libertou das cadeias da ignorância e da superstição e está à altura das mais ousadas conquistas e feitos espirituais dos tempos modernos. E, no entanto, "A Gaia Ciência", ao mesmo tempo em que coroa a filosofia dos espíritos livres, já representa também um distanciamento, uma despedida em relação ao seu entusiasmo inicial, um decisivo encaminhamento no sentido de uma postura afetiva e intelectual que será característica do derradeiro período da produção filosófica, mais particularmente daquele momento de que "Assim Falou Zaratustra" (cujas quatro partes constitutivas foram editadas entre 1883 e 1885). É em "A Gaia Ciência" (no aforismo 125), que figura o anúncio da "morte de Deus" e, com ela, aquele ensombrecimento do horizonte humano, o niilismo, que estão no ponto de partida da inteira concepção de "Assim Falou Zaratustra". Vemos, portanto, que a intenção inicial de desdobrar "Aurora" em cinco novos capítulos foi transformada por Nietzsche, ao longo de 1882, no projeto de um novo livro, composto de quatro partes, com o título de "A Gaia Ciência". Trata-se aqui sempre ainda de um fascínio pelas ciências, mas agora por um novo ideal de cientificidade, a saber, por uma ciência alegre, jovial, liberada da gravidade e da aridez da erudição científica tradicional. O recurso à expressão dos trovadores provençais -a ciência "gaiata"- indica um novo assalto da paixão pela arte, pela graça, leveza e humor. Para epígrafe do novo livro, Nietzsche compôs o epigrama caracteristicamente sugestivo: "Vivo em minha própria casa, Jamais imitei algo de alguém E sempre ri de todo mestre Que nunca riu de si também". "A Gaia Ciência" continua a ser um livro para espíritos livres; porém com a diferença de que tais espíritos são agora capazes de rir de si próprios, ou seja, de fazer a crítica de sua própria paixão pela ciência e de sua obstinação pela verdade. Penso que uma das principais razões pelas quais o projeto de continuação de "Aurora" é substituído por "A Gaia Ciência" é que este livro traduz uma nova disposição geral do espírito e do ânimo em Nietzsche.

Atmosfera solar
"Aurora" é um livro das profundezas, Nietzsche chega a empregar, para caracterizar seu estado de espírito nesse livro, a figura de uma marmota que teria penetrado fundo nos subterrâneos e subsolos da moralidade ocidental, como propósito de espirar por debaixo de seus fundamentos. "Aurora" é também um livro que traduz as vivência de um período de doença, abatimento, solidão e frustração. "A Gaia Ciência", ao contrário, respira uma atmosfera solar, um estado anímico de convalescença e retorno da saúde, um retorno à superfície, uma mudança de pele, transformação de perspectiva diante do conhecimento e da vida.
Com efeito, na base existencial de "A Gaia Ciência" encontra-se uma nova experiência filosófica, uma vivência fundamental de agonia e êxtase, que determina um destino humano e sobre-humano, ou seja, a experiência do eterno retorno. Como se sabe, este constitui, ao lado da vontade de poder, o segundo ensinamento fundamental de "Assim Falou Zaratustra", sem dúvida a obra capital de Nietzsche.
O penúltimo aforismo de "A Gaia Ciência" -é sempre conveniente mencionar que, em sua primeira edição, a obra era dividida em quatro partes, portanto o livro quarto representava então sua conclusão-, com o título "O Maior dos Pesos", formula o ensinamento do eterno retorno, nos termos seguintes:
"E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: "Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem -e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente -e você com ela, partícula de poeira!". Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou & Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: "Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!".".
Em seguida à enunciação, nesses termos, do ensinamento do eterno retorno que ou pesaria sobre nossos atos como o mais grave dos pesos ou nos instalaria perante o conjunto da vida numa disposição de nada mais desejar senão de sua eterna confirmação e acolhimento, sem acréscimo nem subtração, Nietzsche conclui "A Gaia Ciência" com o aforismo intitulado "Incipit Tragoedia" [a tragédia começa", uma antecipação quase literal do prólogo de "Assim Falou Zaratustra". Percebe-se, pois, que "A Gaia Ciência", particularmente o livro quarto, se insere na ambiência espiritual do Zaratustra, respira o ar dos píncaros de inspiração, de onde brotou a força e a magia daquela obra.
Portanto, ela nos faz avançar da filosofia dos espíritos livres para uma nova vivência filosófica, com seu novo horizonte de sentido. Mas "A Gaia Ciência" nos proporciona ainda muito mais.
Em 1886, Nietzsche escreve uma série de prefácios para uma segunda edição de suas obras anteriores, inclusive "A Gaia Ciência". Também ela, pois, é imensamente beneficiada pela auto-reflexão que caracteriza tais prefácios, que inscrevem cada um dos escritos anteriores no registro próprio das vivências fundamentais da biobibliografia do autor.
Cabe ao extraordinário prefácio de "A Gaia Ciência" a interpretação da história da filosofia, em seu conjunto, como uma história do longo mal-entendido sobre o corpo.
Para além disso, porém -evidenciando com esse gesto o lugar privilegiado de "A Gaia Ciência" nessa trajetória-, Nietzsche acrescenta a ela um quinto livro diretamente conectado com os temas e problemas fundamentais de sua derradeira filosofia, como a transvaloração de todos os valores e a auto-supressão da moral por dever de honestidade intelectual; portanto, em fecunda comunicação com os textos que se seguirão a "Para Além de Bem e Mal" até a autobiografia intelectual, "Ecce Homo", que preludia a catástrofe de Turim.
Outra característica marcante dessa obra é que nela se configura um exemplo privilegiado do que Nietzsche entendia por um livro marcado por um apelo pessoal. Nietzsche se via nele como um mestre que se colocava em busca de discípulos ideais, que ele pensava ser possível formar como espíritos livres, indivíduos singulares, capazes de se tornar senhores de si mesmos, de resistir a toda sorte de tutelagem e servilismo intelectual:
"Vademecum Vadetecum
Atraem-lhe meu jeito e minha língua,
Você me segue, vem atrás de mim?
Siga apenas a si mesmo fielmente:
-Assim me seguirá -com vagar! Com vagar!".
Esse caráter pessoal do escrito se revela na sequência determinada para os livros, com seus temas dominantes e variações, na disposição dos aforismos no interior dos livros, com o objetivo de preparar o leitor ideal para o acesso ao pensamento fundamental do eterno retorno.
Como afirma o filósofo austríaco Jörg Salaquarda, em "A Gaia Ciência" surpreendemos Nietzsche como um mestre em ação, em cuja atividade muito há de autobiográfico. "Tornado mestre por meio da experiência do pensamento do eterno retorno, tendo diante dos olhos, na pessoa de Lou Salomé, uma discípula potencial, ele se esforça até o fim para, em sua mais recente publicação, expor tão claramente quanto possível tudo aquilo contra ou a favor do que ele se colocava. "Fórmula da felicidade", resumiu ele essa tendência anos depois, no início de "O Anticristo", "um sim, um não, uma linha reta, uma meta".
Por tudo isso, vê-se, pois, o quanto fazia falta uma tradução brasileira de "A Gaia Ciência", uma das mais belas contribuições da moderna literatura filosófica alemã. Um texto absolutamente vital para qualquer pesquisa séria tanto sobre a filosofia de Nietzsche como, em geral, sobre o pensamento filosófico da modernidade. E, no entanto, a despeito de toda a importância que fica reservada a essa obra no conjunto do pensamento de Nietzsche, ainda são muito poucos, no Brasil, os estudos que a tomam como objeto privilegiado. Também para o suprimento dessa carência a recente tradução importará num contributo da mais alta relevância.
A esse respeito, cabe dizer que a edição é das mais escrupulosas, em todos os sentidos. O cuidado de manter o texto original dos poemas, ao lado das traduções, é um bom indicativo dessa preocupação louvável com a alta qualidade. Do mesmo modo que a inclusão dos glossários de nomes de pessoas, a lista com os títulos de cada um dos aforismos e o importante guia representado pelo índice remissivo pelo qual o leitor pode ser imediatamente dirigido a termos e conceitos de seu particular interesse.


Nietzsche se via como um mestre em busca de discípulos ideais, que ele pensava ser possível formar como indivíduos singulares, capazes de se tornar senhores de si


A tradução é notável: inspirada, segura de si, cuidadosa, precisa, bem-sucedida em escolhas léxicas, esforçando-se ao máximo para resgatar com o sucesso de que o texto em português dá vigoroso testemunho -o virtuosismo estilístico do escritor e poeta Friedrich Nietzsche. Nesse sentido, é necessário acrescentar que "A Gaia Ciência" talvez seja o melhor exemplo daquela virtude excelsa de que Nietzsche se considerava portador: a maestria nos mais variados estilos, cada um deles apropriado à transmissão de uma determinada forma de patos.
"A Gaia Ciência" combina a força das sentenças curtas, dos epigramas, a graça da linguagem poética, o longo fôlego de textos dissertativos, com a maestria aforística, uma alternância de tempos e ritmos das frases e períodos que Nietzsche transporta da composição musical para o léxico filosófico. De tudo isso a tradução de Paulo César de Souza se mostra notavelmente à altura.
Com mais essa pérola acrescentada à série de traduções das obras de Nietzsche em português, a Companhia das Letras oferece ao leitor dos mais variados gêneros o privilégio de experimentar, em tal intensidade, o prazer no exercício da leitura e do pensamento.

A Gaia Ciência
352 págs., R$ 31,00
de Friedrich Nietzsche. Trad. Paulo César de Souza. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).


Oswaldo Giacoia Junior é professor livre-docente de filosofia da Universidade Estadual de Campinas, autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da Alma" (ed. da Unicamp).



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