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"Isso é armação de carioca",
diz Cabral de Mello
DA REPORTAGEM LOCAL
Essa história de comemoração da vinda da
corte ao Brasil é armação de carioca para
promover o Rio de Janeiro." Destoando do alvoroço
em que se encontram historiadores, prefeitura do Rio, monarquistas e festeiros de plantão, o pernambucano Evaldo
Cabral de Mello diz que não
existem comemorações históricas autênticas e que a efeméride dos 200 anos pode servir
para reforçar interpretações
equivocadas sobre o período
joanino e a Independência.
Leia, abaixo, trechos da entrevista que o autor de "A
Fronda dos Mazombos" (ed.
34) e "Rubro Veio" (ed. Topbooks) concedeu à Folha, por
telefone.
(SYLVIA COLOMBO)
FOLHA - O que o sr. está achando
da comemoração dos 200 anos da
vinda da corte ao Brasil?
EVALDO CABRAL DE MELLO - Não
gosto de celebrações de efemérides em geral. Não acredito em
comemorações históricas que
sejam autênticas. Não quis me
envolver nas comemorações
dos 500 anos do Descobrimento, por exemplo. Essa coisa de
fazer festa em torno de dom
João 6º é armação de carioca
para promover o Rio.
FOLHA - Que problemas o sr. vê no
modo como esse debate está vindo
à tona?
MELLO - Há no Brasil uma insistência em reforçar o lugar-comum segundo o qual foi dom
João 6º o responsável pela unidade do país. É até difícil reagir
contra a historiografia que celebra a manutenção dessa integridade como resultado da vinda da família real. Isso não é
verdade. A unidade do Brasil foi
construída ao longo do tempo e
é, antes de tudo, uma fabricação da coroa, mas não com o
objetivo de que se criasse a partir dela um país independente.
Ela está relacionada à situação de Portugal no contexto europeu daquela época. Os poderosos eram a França e a Inglaterra e era preciso pensar estratégias para garantir o futuro do
país naquele panorama.
A idéia de que era preciso fortalecer um império com os territórios de Portugal e Brasil começou no século 18, com dom
Luís da Cunha [1662-1740,
influente diplomata português que viveu em Londres,
Madri e Paris], e foi desenvolvida depois com o Conde de
Linhares, dom Rodrigo de
Sousa Coutinho (1755-1812).
Além disso, é um absurdo
que hoje se celebre a unidade
antes de tudo -quando se
pensa nesse momento da
nossa história-, em vez de
discutir que tipo de instituições republicanas e constitucionais estavam surgindo. Parece que herdamos o complexo de pequenez de Portugal
para valorizar tanto essa
questão.
FOLHA - O Brasil não melhorou
depois da vinda da família real?
MELLO - A corte portuguesa
que aqui chegou era uma corte parasita, que explorava as
Províncias para manter a
mesma estrutura que tinha
na Europa. Nem sequer houve um esforço de adaptar a
máquina administrativa a
uma nova situação, a uma extensão territorial tão grande.
Estando aqui, dom João 6º
foi levando as coisas com a
barriga. Só um raciocínio tortuoso pode relacionar suas
atitudes diretamente com a
questão da unidade. Quando
os historiadores pensam assim, não estão distinguindo
os resultados das ações de
dom João 6º das conseqüências inesperadas que elas provocaram.
Em geral, aqueles que se
dedicam a esse tema não deixam claro o que era intencional e o que não era, por parte
do rei.
Também ninguém dá importância ao fato de que dom
João 6º esvaziou nosso erário
antes de partir. Todos lembram que ele fundou o Banco
do Brasil, mas nunca que deixou o Brasil falido quando foi
embora daqui.
A verdade é que nós herdamos desse período o pior,
uma monarquia unitária que
todo o país teve de sustentar.
A própria urbanização do
Rio se deu às custas das Províncias.
Deve-se lembrar que, nos
primeiros tempos, a corte desalojou os moradores da cidade para que os nobres tivessem onde viver. No período joanino, o Rio virou uma cidade portuguesa, um corpo estranho dentro do Brasil. E as
outras regiões é que pagaram
a conta. Foi só depois de muito tempo que o Rio foi se tornar uma cidade brasileira.
FOLHA - E quanto à relação entre
a vinda da família e a Independência?
MELLO - Nunca se reconheceu que a Independência foi
uma manobra contra-revolucionária encabeçada por dom
Pedro 1º, cuja intenção era
imunizar o Brasil do contágio
da onda liberal que estava tomando Portugal [com a revolta constitucionalista do Porto, em 1820].
Originalmente, os problemas no Rio se deram entre
portugueses liberais e absolutistas. Estes queriam impedir
que aqui se passasse o mesmo
que estava sucedendo em
Portugal. Depois é que os brasileiros se integraram ao processo. É muito pertinente a
idéia de "interiorização da
metrópole", formulada por
Maria Odila Leite da Silva
Dias ["A Interiorização da
Metrópole e Outros Estudos", ed. Alameda].
FOLHA - Vê um viés conservador
no resgate que está sendo feito
dos personagens da monarquia?
MELLO - Sim, isso existe. E os
personagens são todos lamentáveis, de uma mediocridade impressionante. E agora
ficam com essa história de
que dom João 6º se apaixonou pelo Brasil, pelo Rio, por
São Cristóvão... É tudo de um
sentimentalismo muito besta
e apelativo.
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