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O escritor sul-africano e Prêmio Nobel J.M. Coetzee fala à Folha dos romances "Homem Lento", lançado nos EUA e Inglaterra, e de "À Espera dos Bárbaros", que está sendo publicado no Brasil
O prazer ausente
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Não vamos desperdiçar a palavra "tragédia'; não é trágico perder a perna; às vezes, nem é trágico morrer
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J.M. Coetzee não é um escritor fácil de entender. Não que sua narrativa seja intrincada ou seu estilo, pesado. Pelo contrário, a clareza é um dos muitos adjetivos desse
autor e Prêmio Nobel sul-africano,
autor de "Desonra" e "Vida e Época
de Michael K" (ambos pela Companhia das Letras).
Coetzee, 66, é insondável no que
diz respeito à sua relação com o público. Concede entrevistas raramente -e por escrito. Nas respostas, "fala" pouco, geralmente o suficiente
apenas para literalmente destruir a
pergunta e o moral do entrevistador.
Parece mesmo estar se divertindo às
custas do jornalista -como poderá
ser conferido logo abaixo.
Na cerimônia em que recebeu o
Nobel, em 2003, Coetzee pulou a lista de agradecimentos de praxe e soltou um longo e enigmático discurso
metaficcional ("Ele e Seu Homem")
sobre o escritor inglês Daniel Defoe e
seu célebre personagem, Robinson
Crusoé.
A metaficção, a propósito, é um
dos recursos que o autor mais gosta
de manipular. Em "Slow Man" (Homem Lento), seu mais recente romance (ed. Secker & Warburg), ainda sem data de lançamento por aqui,
Coetzee volta a infiltrar na trama a
personagem Elizabeth Costello, uma
espécie de alter ego já conhecida de
seus romances anteriores.
Por meio dessa velhinha, uma escritora áspera que usa vestidos com
motivos florais, Coetzee costuma
emitir comentários cifrados e refletir
sobre os limites da ficção.
Tudo começa com um acidente.
Numa estrada em Adelaide, na Austrália, Paul Rayment, um homem
idoso, é atropelado e tem a perna
amputada. Em seguida, apaixona-se
pela enfermeira que cuida dele, uma
imigrante croata, casada e com filhos, e acaba, de maneira atrapalhada, declarando-se. A mulher, assustada, foge.
É nesse momento que Costello entra em sua casa sem avisar, dizendo-se incomodada pela vulgaridade da
história de amor não-correspondido
de Rayment. Apresentando-se minimamente, instala-se em sua casa e
passa a manipular a vida da personagem. Por aqui, enquanto "Homem Lento" não chega, é lançado
"À Espera dos Bárbaros" (leia texto
abaixo), uma fábula política escrita
em 1980 que se passa num império
fictício, atemporal e que permite
analogias históricas (ou atuais) sobre os homens e o poder.
Acerca de ambos os livros, Coetzee
"conversou" com a Folha, por e-mail. Leia abaixo as respostas que,
de tão secas e curtas, nem precisaram ser editadas.
Folha - Em "Homem Lento" não estamos mais na África do Sul, e sim na
Austrália. Ainda assim, o sr. continua
impondo um mesmo traço para suas
paisagens e cenários, dando a eles
uma ambientação onírica, onde ruas,
casas e pessoas que não estão no centro dos eventos, não agem como se os
percebessem, e as que estão neles parecem viver numa espécie de alucinação. O sr. concorda?
J.M.Coetzee - Sempre acreditei que
os leitores têm o direito de ler ficção
de acordo com seu próprio desejo,
sem a supervisão ou a direção do autor falando por fora do livro.
Por isso, se acho meus cenários
oníricos ou não, isso não tem nenhuma importância.
Folha - Paul Rayment sente uma espécie de prazer ao voar logo após o
acidente. Mas, em seguida, percebe
que está numa situação trágica. Esses
segundos de felicidade são comparáveis à idéia de criar um personagem e
depois "perdê-lo" para os leitores?
Coetzee - Não vamos desperdiçar a
palavra "tragédia". Não é trágico
perder a perna. Às vezes, nem é trágico morrer. Quanto ao acidente de
Paul, nós todos sabemos que, em situações de vida ou morte, a pessoa
tem a impressão de que o tempo está
parado e que se alcança um elevado
e concentrado poder de consciência.
Folha - Costello entra na história de
Rayment quando considera que esta
atingiu um ponto em que se parecia
com um romance barato. Por que escolheu esse momento específico?
Coetzee - Justamente porque, no
seu modo de entender, como uma
romancista experiente, a história de
Paul havia começado a perder seu
momentum.
Folha - O que Costello diria sobre a
literatura inglesa contemporânea?
Coetzee - Eu não sei. Eu mesmo
não tenho muito a dizer sobre a literatura inglesa contemporânea. Eu
não leio um centésimo da torrente
de livros que saem das prensas ano
após ano.
Folha - Por que o seu protagonista
perde as pernas? Por que você não escolheu braços ou mãos?
Coetzee - Paul é um ciclista e sente
prazer ao andar de bicicleta. Depois
do acidente que sofre, esse prazer lhe
é arrancado.
Folha - Em "À Espera dos Bárbaros"
a tortura é usada contra os prisioneiros. Agora, em "Homem Lento", um
homem que perdeu uma perna tem de
viver com seu corpo dilacerado. Mencionarei uma frase de cada um dos livros -"perder uma perna não é mais
do que um ensaio para perder tudo" e
"a dor é real, todo o resto está sujeito
à dúvida". Por que a dor é tão essencial para expor os seus personagens?
Coetzee - Nós todos tentamos criar
um casulo de bem-estar e conforto
ao redor de nós. A dor penetra esse
casulo. Quanto à frase "a dor é a verdade", é preciso reforçar que o personagem que mais segue esse lema
em "À Espera dos Bárbaros" é um
torturador profissional.
Folha - Ao negar sua especificidade
histórica, o Império em "À Espera dos
Bárbaros" pretende ser universal. É
possível lê-lo hoje, mais de 20 anos
após ser escrito, e fazer uma analogia
com os conflitos de poder pelos quais
o mundo passa? Poderia o império ser
os EUA (com os ingleses) e os bárbaros, os iraquianos?
Coetzee - Existe um ditado americano segundo o qual, "se o sapato
serve, vista-o". Não é parte do meu
trabalho direcionar a maneira como
os meus livros devem ser lidos.
Folha - O personagem do Magistrado, em "À Espera dos Bárbaros", e Elizabeth Costello, em "Homem Lento",
expressam as suas próprias opiniões?
Coetzee - Minhas opiniões, na
maioria dos temas, não têm mais valor ou importância que as das outras
pessoas. E trabalhos de ficção não
sobrevivem tanto a ponto de passarem a existir apenas para permitir
que os autores expressem as suas
próprias opiniões sobre o mundo.
Slow Man
272 págs., 16,99 libras, R$ 73
de J.M. Coetzee. Ed. Secker & Warburg.
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados
na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3170-4033)
ou no site www.amazon.co.uk
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