São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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O escritor sul-africano e Prêmio Nobel J.M. Coetzee fala à Folha dos romances "Homem Lento", lançado nos EUA e Inglaterra, e de "À Espera dos Bárbaros", que está sendo publicado no Brasil

O prazer ausente

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN


Não vamos desperdiçar a palavra "tragédia'; não é trágico perder a perna; às vezes, nem é trágico morrer

J.M. Coetzee não é um escritor fácil de entender. Não que sua narrativa seja intrincada ou seu estilo, pesado. Pelo contrário, a clareza é um dos muitos adjetivos desse autor e Prêmio Nobel sul-africano, autor de "Desonra" e "Vida e Época de Michael K" (ambos pela Companhia das Letras).
Coetzee, 66, é insondável no que diz respeito à sua relação com o público. Concede entrevistas raramente -e por escrito. Nas respostas, "fala" pouco, geralmente o suficiente apenas para literalmente destruir a pergunta e o moral do entrevistador. Parece mesmo estar se divertindo às custas do jornalista -como poderá ser conferido logo abaixo.
Na cerimônia em que recebeu o Nobel, em 2003, Coetzee pulou a lista de agradecimentos de praxe e soltou um longo e enigmático discurso metaficcional ("Ele e Seu Homem") sobre o escritor inglês Daniel Defoe e seu célebre personagem, Robinson Crusoé.
A metaficção, a propósito, é um dos recursos que o autor mais gosta de manipular. Em "Slow Man" (Homem Lento), seu mais recente romance (ed. Secker & Warburg), ainda sem data de lançamento por aqui, Coetzee volta a infiltrar na trama a personagem Elizabeth Costello, uma espécie de alter ego já conhecida de seus romances anteriores.
Por meio dessa velhinha, uma escritora áspera que usa vestidos com motivos florais, Coetzee costuma emitir comentários cifrados e refletir sobre os limites da ficção.
Tudo começa com um acidente. Numa estrada em Adelaide, na Austrália, Paul Rayment, um homem idoso, é atropelado e tem a perna amputada. Em seguida, apaixona-se pela enfermeira que cuida dele, uma imigrante croata, casada e com filhos, e acaba, de maneira atrapalhada, declarando-se. A mulher, assustada, foge.
É nesse momento que Costello entra em sua casa sem avisar, dizendo-se incomodada pela vulgaridade da história de amor não-correspondido de Rayment. Apresentando-se minimamente, instala-se em sua casa e passa a manipular a vida da personagem. Por aqui, enquanto "Homem Lento" não chega, é lançado "À Espera dos Bárbaros" (leia texto abaixo), uma fábula política escrita em 1980 que se passa num império fictício, atemporal e que permite analogias históricas (ou atuais) sobre os homens e o poder.
Acerca de ambos os livros, Coetzee "conversou" com a Folha, por e-mail. Leia abaixo as respostas que, de tão secas e curtas, nem precisaram ser editadas.

Folha - Em "Homem Lento" não estamos mais na África do Sul, e sim na Austrália. Ainda assim, o sr. continua impondo um mesmo traço para suas paisagens e cenários, dando a eles uma ambientação onírica, onde ruas, casas e pessoas que não estão no centro dos eventos, não agem como se os percebessem, e as que estão neles parecem viver numa espécie de alucinação. O sr. concorda?
J.M.Coetzee -
Sempre acreditei que os leitores têm o direito de ler ficção de acordo com seu próprio desejo, sem a supervisão ou a direção do autor falando por fora do livro.
Por isso, se acho meus cenários oníricos ou não, isso não tem nenhuma importância.

Folha - Paul Rayment sente uma espécie de prazer ao voar logo após o acidente. Mas, em seguida, percebe que está numa situação trágica. Esses segundos de felicidade são comparáveis à idéia de criar um personagem e depois "perdê-lo" para os leitores?
Coetzee -
Não vamos desperdiçar a palavra "tragédia". Não é trágico perder a perna. Às vezes, nem é trágico morrer. Quanto ao acidente de Paul, nós todos sabemos que, em situações de vida ou morte, a pessoa tem a impressão de que o tempo está parado e que se alcança um elevado e concentrado poder de consciência.

Folha - Costello entra na história de Rayment quando considera que esta atingiu um ponto em que se parecia com um romance barato. Por que escolheu esse momento específico?
Coetzee -
Justamente porque, no seu modo de entender, como uma romancista experiente, a história de Paul havia começado a perder seu momentum.

Folha - O que Costello diria sobre a literatura inglesa contemporânea?
Coetzee -
Eu não sei. Eu mesmo não tenho muito a dizer sobre a literatura inglesa contemporânea. Eu não leio um centésimo da torrente de livros que saem das prensas ano após ano.

Folha - Por que o seu protagonista perde as pernas? Por que você não escolheu braços ou mãos?
Coetzee -
Paul é um ciclista e sente prazer ao andar de bicicleta. Depois do acidente que sofre, esse prazer lhe é arrancado.

Folha - Em "À Espera dos Bárbaros" a tortura é usada contra os prisioneiros. Agora, em "Homem Lento", um homem que perdeu uma perna tem de viver com seu corpo dilacerado. Mencionarei uma frase de cada um dos livros -"perder uma perna não é mais do que um ensaio para perder tudo" e "a dor é real, todo o resto está sujeito à dúvida". Por que a dor é tão essencial para expor os seus personagens?
Coetzee -
Nós todos tentamos criar um casulo de bem-estar e conforto ao redor de nós. A dor penetra esse casulo. Quanto à frase "a dor é a verdade", é preciso reforçar que o personagem que mais segue esse lema em "À Espera dos Bárbaros" é um torturador profissional.

Folha - Ao negar sua especificidade histórica, o Império em "À Espera dos Bárbaros" pretende ser universal. É possível lê-lo hoje, mais de 20 anos após ser escrito, e fazer uma analogia com os conflitos de poder pelos quais o mundo passa? Poderia o império ser os EUA (com os ingleses) e os bárbaros, os iraquianos?
Coetzee -
Existe um ditado americano segundo o qual, "se o sapato serve, vista-o". Não é parte do meu trabalho direcionar a maneira como os meus livros devem ser lidos.

Folha - O personagem do Magistrado, em "À Espera dos Bárbaros", e Elizabeth Costello, em "Homem Lento", expressam as suas próprias opiniões?
Coetzee -
Minhas opiniões, na maioria dos temas, não têm mais valor ou importância que as das outras pessoas. E trabalhos de ficção não sobrevivem tanto a ponto de passarem a existir apenas para permitir que os autores expressem as suas próprias opiniões sobre o mundo.


Slow Man
272 págs., 16,99 libras, R$ 73 de J.M. Coetzee. Ed. Secker & Warburg.

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3170-4033) ou no site www.amazon.co.uk


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