São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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A ânsia de viver

Em "À Espera dos Bárbaros", Coetzee cria uma zona de resistência à alegoria ao pintar a tortura de forma crua

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O título "À Espera dos Bárbaros" remete imediatamente ao poema homônimo de Constantin Kaváfis e, mais que isso, pelos menos para o leitor letrado brasileiro -numa mostra da força da boa crítica-, ao ensaio "Quatro Esperas" (de "O Discurso e a Cidade"), de Antonio Candido. Ali, o autor comenta, além do poema citado, "O Deserto dos Tártaros", de Dino Buzzati, "O Litoral de Sirtes", de Julien Gracq, e "A Construção da Muralha da China", de Franz Kafka.
Assim, é quase sem esforço que se coloca este livro de 1980 de Coetzee, relançado agora por aqui em nova tradução, nessa mesma série. Afinal, o débito do escritor sul-africano a Kafka é mais do que conhecido, e o enredo do romance apresenta, de fato, muitas relações principalmente com o poema e com o texto de Buzzati, tais como a "espera angustiada" e os "atos sem sentido lógico" (para lembrar pontos que uniriam, segundo Candido, as obras).
"À Espera dos Bárbaros" conta a história de um velho magistrado em um posto afastado de um império que não é nomeado em um tempo não definido. A aparente tranqüilidade do local é alterada com a chegada de militares destinados a combater os "bárbaros" da região, pessoas que estariam colocando a ordem vigente em risco. O funcionário público se opõe a tal atitude, já que não vê perigo algum e considera que os "bárbaros" não passam de pequenos grupos nômades com os quais eventualmente faz negócios.
É a tortura, alternadamente descrita com detalhes ou apenas insinuada e sugerida, primeiro em uma moça com a qual posteriormente o magistrado cria um jogo de dependência e erotismo -às vezes bruto, às vezes delicado- e, em seguida, nele mesmo, o instrumento que modifica a estrutura de poder no lugar e dita a própria cadência da narrativa.
E é a tortura, com seu apelo direto ao que há de mais tenebroso no ser humano, o mais relevante indício de que, mais do que semelhanças, é importante neste momento apontar o que há de diferente entre esta obra e as estudadas por Antonio Candido em seu ensaio: "Meus torturadores não estavam interessados em graus de dor. Estavam interessados apenas em demonstrar o que significava viver num corpo, como um corpo, um corpo que pode contemplar certas noções de justiça apenas na medida em que está inteiro e bem, que logo esquece disso quando sua cabeça é agarrada, um funil é enfiado em sua garganta e litros de água salgada são vertidos dentro dele até ele tossir, vomitar, se debater e se esvaziar (...) Eles vêm a minha cela para me mostrar o sentido de humanidade e no espaço de uma hora me mostraram muita coisa".

Sem metáforas
Com essa materialidade absoluta do corpo exposto a seus limites e degradado, "À Espera dos Bárbaros" cria uma zona de resistência ao recurso alegórico, comum aos outros quatro textos. Nessas cenas de horror não há remissão a nenhuma outra instância, não há simbologia, não há metáfora.
O literário se cria pela possibilidade de dizer -intransitivamente. "Nada é pior do que aquilo que somos capazes de imaginar", afirma a certa altura o magistrado, sentença à qual se deve acrescentar outra, que ele pensa bem depois, ao se confrontar pela primeira vez com seus torturadores: "Que tudo seja dito!". Nem barulho, nem censura, nem "indizível": o romance parece propor que à literatura (à arte) cabe o espaço infinito entre o silêncio e esse definitivo "que tudo seja dito!".
Vale notar ainda que a contraposição entre este livro e as outras quatro obras se dá também de outro modo, conseqüente talvez com tal necessidade de "dizer". Se, como escreveu Antonio Candido, nas "quatro esperas" por ele analisadas se percebia uma "surda aspiração à morte", aqui existe uma violenta reafirmação da necessidade de existir: ""Quero dizer que ninguém merece morrer". Com minha túnica e o saco absurdos, com a náusea da covardia na boca, digo: "Quero viver. Como todo homem quer viver. Viver, viver, viver. De qualquer jeito".".


Adriano Schwartz é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste e autor de "O Abismo Invertido" (ed. Globo).

À Espera dos Bárbaros
208 págs., R$ 37,50 de J.M. Coetzee. Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3707-3500).



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