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A ânsia de viver
Em "À Espera dos Bárbaros", Coetzee cria uma zona de resistência à alegoria ao pintar a tortura de forma crua
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O título "À Espera dos Bárbaros" remete imediatamente ao poema homônimo de Constantin Kaváfis
e, mais que isso, pelos menos para o
leitor letrado brasileiro -numa
mostra da força da boa crítica-, ao
ensaio "Quatro Esperas" (de "O Discurso e a Cidade"), de Antonio Candido. Ali, o autor comenta, além do
poema citado, "O Deserto dos Tártaros", de Dino Buzzati, "O Litoral de
Sirtes", de Julien Gracq, e "A Construção da Muralha da China", de
Franz Kafka.
Assim, é quase sem esforço que se
coloca este livro de 1980 de Coetzee,
relançado agora por aqui em nova
tradução, nessa mesma série. Afinal,
o débito do escritor sul-africano a
Kafka é mais do que conhecido, e o
enredo do romance apresenta, de fato, muitas relações principalmente
com o poema e com o texto de Buzzati, tais como a "espera angustiada"
e os "atos sem sentido lógico" (para
lembrar pontos que uniriam, segundo Candido, as obras).
"À Espera dos Bárbaros" conta a
história de um velho magistrado em
um posto afastado de um império
que não é nomeado em um tempo
não definido. A aparente tranqüilidade do local é alterada com a chegada de militares destinados a combater os "bárbaros" da região, pessoas que estariam colocando a ordem vigente em risco. O funcionário
público se opõe a tal atitude, já que
não vê perigo algum e considera que
os "bárbaros" não passam de pequenos grupos nômades com os quais
eventualmente faz negócios.
É a tortura, alternadamente descrita com detalhes ou apenas insinuada
e sugerida, primeiro em uma moça
com a qual posteriormente o magistrado cria um jogo de dependência e
erotismo -às vezes bruto, às vezes
delicado- e, em seguida, nele mesmo, o instrumento que modifica a
estrutura de poder no lugar e dita a
própria cadência da narrativa.
E é a tortura, com seu apelo direto
ao que há de mais tenebroso no ser
humano, o mais relevante indício de
que, mais do que semelhanças, é importante neste momento apontar o
que há de diferente entre esta obra e
as estudadas por Antonio Candido
em seu ensaio: "Meus torturadores
não estavam interessados em graus
de dor. Estavam interessados apenas
em demonstrar o que significava viver num corpo, como um corpo, um
corpo que pode contemplar certas
noções de justiça apenas na medida
em que está inteiro e bem, que logo
esquece disso quando sua cabeça é
agarrada, um funil é enfiado em sua
garganta e litros de água salgada são
vertidos dentro dele até ele tossir,
vomitar, se debater e se esvaziar (...)
Eles vêm a minha cela para me mostrar o sentido de humanidade e no
espaço de uma hora me mostraram
muita coisa".
Sem metáforas
Com essa materialidade absoluta
do corpo exposto a seus limites e degradado, "À Espera dos Bárbaros"
cria uma zona de resistência ao recurso alegórico, comum aos outros
quatro textos. Nessas cenas de horror não há remissão a nenhuma outra instância, não há simbologia, não
há metáfora.
O literário se cria pela possibilidade de dizer -intransitivamente.
"Nada é pior do que aquilo que somos capazes de imaginar", afirma a
certa altura o magistrado, sentença à
qual se deve acrescentar outra, que
ele pensa bem depois, ao se confrontar pela primeira vez com seus torturadores: "Que tudo seja dito!". Nem
barulho, nem censura, nem "indizível": o romance parece propor que à
literatura (à arte) cabe o espaço infinito entre o silêncio e esse definitivo
"que tudo seja dito!".
Vale notar ainda que a contraposição entre este livro e as outras quatro
obras se dá também de outro modo,
conseqüente talvez com tal necessidade de "dizer". Se, como escreveu
Antonio Candido, nas "quatro esperas" por ele analisadas se percebia
uma "surda aspiração à morte", aqui
existe uma violenta reafirmação da
necessidade de existir: ""Quero dizer
que ninguém merece morrer". Com
minha túnica e o saco absurdos, com
a náusea da covardia na boca, digo:
"Quero viver. Como todo homem
quer viver. Viver, viver, viver. De
qualquer jeito".".
Adriano Schwartz é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da USP-Leste e autor de "O Abismo Invertido" (ed. Globo).
À Espera dos Bárbaros
208 págs., R$ 37,50
de J.M. Coetzee. Tradução de José Rubens
Siqueira. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/11/ 3707-3500).
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