|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um jogo de duplos
"Memorial de Buenos Aires" cria um falso diário para fundir Machado de Assis e Jorge Luis Borges
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Idas e vindas entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro acentuam os parale-lismos
entre os dois escritores
|
Antonio Fernando Borges é
um daqueles escritores que
cultivam sistematicamente
seus fantasmas. No caso, em
primeiríssimo plano, Machado de
Assis e Jorge Luis Borges, autores
que vinham citados já no título de
dois livros anteriores: "Que Fim Levou Brodie?" e "Braz, Quincas &
Cia.". Neste "Memorial de Buenos
Aires", Antonio Fernando volta a
eles e tenta fundir (ou confundir) o
Bruxo do Cosme Velho com o criador de "Ficções".
E, em parte, se sai bem.
O livro começa à moda antiga,
com uma "nota explicativa" em que
Antonio Fernando (assinado AFB)
diz estar publicando o "falso diário"
do avô, que traz fatos ocorridos entre janeiro e junho de 1939, em Buenos Aires. Falso porque o avô "nunca empreendeu nenhuma viagem";
improvável porque, em 1939, "o velho" já havia morrido.
As alusões à obra de Machado, especialmente a "Memórias Póstumas
de Brás Cubas" e "Memorial de Aires", já se percebem desde aí, além
de possíveis ressonâncias de "O Ano
da Morte de Ricardo Reis", de Saramago, etc.
Em 7/1/1939, o autor do falso-diário -entremeado de folhas avulsas
e sem data, impressas em tipo diferente- surge instalado no hotel Plaza, com a alma carregada como a de
d. Casmurro. Relembra amigos e parentes deixados no Rio, "sobretudo
Marilu, oblíqua e dissimulada como
a Outra". O trocadilho com Capitu
pode provocar no leitor mais irritação que riso, mas Antonio Borges
tem habilidades suficientes para superar eventuais tropeços e seguir
adiante.
Em poucas páginas, depois da
menção a Lúcia Miguel Pereira e da
aparição de Escobar, Victoria
Ocampo, D. José Cartaphilus ("O
Imortal" de J.L. Borges), "Adolfito"
(Bioy Casares) e de outras figuras
mais ou menos reais, percebe-se que
estamos diante de um escritor acometido de "literatose", termo médico-fictício recentemente ressuscitado pelo espanhol Enrique Vila-Matas em "O Mal de Montano". Mas
aqui a doença do narrador é mais específica: "O "mal de Assis", que eu sonhava ter deixado no Brasil".
A trama de "Memorial de Buenos
Aires" começa a se adensar e a tornar-se mais interessante quando o
narrador encontra o estranho Georgie, indivíduo com feições de tapir
que, lá pelas tantas, vem a ser reconhecido como o próprio J.L. Borges,
então beirando os 40 anos e já próximo da cegueira.
Farpas ao machadianos
Não demoram a se multiplicar os
duplos de Borges, encontrados no
bonde, no hospital, na "calle" Maipu, em cafés onde também se reúnem Macedonio Fernández, Estela
Canto, Silvina Ocampo e personagens já mencionadas.
Idas e vindas entre Buenos Aires e
o Rio de Janeiro, onde o autor do
diário deveria apresentar, no centenário de nascimento do fundador da
Academia Brasileira de Letras, uma
conferência sobre as implicações da
cegueira que teria rondado Machado em 1879, acentuam os paralelismos entre os dois escritores.
J.L. Borges e Machado transformam-se, assim, em opostos complementares. O primeiro, empenhado
em negar a realidade e transpassar
tempo; o segundo, marcado "pela
consciência precoce da realidade e a
impressão trágica de que o Tempo é
sua matéria essencial". Tudo isso, no
entanto, cogita o narrador, talvez
não passe de "loucura", tema que
também atravessa todo o enredo.
O livro tem passagens memoráveis
(e não vai aqui nenhum trocadilho),
sobretudo os diálogos entre figuras
realmente existentes ou não, as perambulações pela Buenos Aires pré-Segunda Guerra Mundial descritas
com minúcia de cartógrafo, a suspeição melancólica e galhofeira que
constitui o romance.
Não faltam farpas à crítica machadiana: "Tentar enquadrá-lo no papel
de "romancista da Corte" ou "cronista
do século 19" (e não são poucos os
que fazem isso) parece mais do que
um erro de compreensão: é um reducionismo invejoso e compensatório, de gente incapaz de suportar
tanta grandeza".
Porém, nas páginas finais do livro,
a atmosfera de irrealidade e de melancolia se resolve numa trama policial que, mesmo descontada a nota
paródica e grotesca, fica aquém do
que o livro prometia.
"Todas as idéias são borgianas. Esse é o perigo de ter um gênio nas vizinhanças", disse em entrevista ao
Mais! [15/9/2002] o escritor argentino César Aira. Se um gênio incomoda muita gente, dois incomodam
muito mais.
Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Memorial de Buenos Aires
224 págs., R$ 39,50
de Antonio Fernando Borges. Cia. das Letras
(r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: + história: Velho Mundo Novo Índice
|