São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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Um jogo de duplos

"Memorial de Buenos Aires" cria um falso diário para fundir Machado de Assis e Jorge Luis Borges

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA


Idas e vindas entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro acentuam os parale-lismos entre os dois escritores

Antonio Fernando Borges é um daqueles escritores que cultivam sistematicamente seus fantasmas. No caso, em primeiríssimo plano, Machado de Assis e Jorge Luis Borges, autores que vinham citados já no título de dois livros anteriores: "Que Fim Levou Brodie?" e "Braz, Quincas & Cia.". Neste "Memorial de Buenos Aires", Antonio Fernando volta a eles e tenta fundir (ou confundir) o Bruxo do Cosme Velho com o criador de "Ficções".
E, em parte, se sai bem.
O livro começa à moda antiga, com uma "nota explicativa" em que Antonio Fernando (assinado AFB) diz estar publicando o "falso diário" do avô, que traz fatos ocorridos entre janeiro e junho de 1939, em Buenos Aires. Falso porque o avô "nunca empreendeu nenhuma viagem"; improvável porque, em 1939, "o velho" já havia morrido.
As alusões à obra de Machado, especialmente a "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Memorial de Aires", já se percebem desde aí, além de possíveis ressonâncias de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de Saramago, etc.
Em 7/1/1939, o autor do falso-diário -entremeado de folhas avulsas e sem data, impressas em tipo diferente- surge instalado no hotel Plaza, com a alma carregada como a de d. Casmurro. Relembra amigos e parentes deixados no Rio, "sobretudo Marilu, oblíqua e dissimulada como a Outra". O trocadilho com Capitu pode provocar no leitor mais irritação que riso, mas Antonio Borges tem habilidades suficientes para superar eventuais tropeços e seguir adiante.
Em poucas páginas, depois da menção a Lúcia Miguel Pereira e da aparição de Escobar, Victoria Ocampo, D. José Cartaphilus ("O Imortal" de J.L. Borges), "Adolfito" (Bioy Casares) e de outras figuras mais ou menos reais, percebe-se que estamos diante de um escritor acometido de "literatose", termo médico-fictício recentemente ressuscitado pelo espanhol Enrique Vila-Matas em "O Mal de Montano". Mas aqui a doença do narrador é mais específica: "O "mal de Assis", que eu sonhava ter deixado no Brasil".
A trama de "Memorial de Buenos Aires" começa a se adensar e a tornar-se mais interessante quando o narrador encontra o estranho Georgie, indivíduo com feições de tapir que, lá pelas tantas, vem a ser reconhecido como o próprio J.L. Borges, então beirando os 40 anos e já próximo da cegueira.

Farpas ao machadianos
Não demoram a se multiplicar os duplos de Borges, encontrados no bonde, no hospital, na "calle" Maipu, em cafés onde também se reúnem Macedonio Fernández, Estela Canto, Silvina Ocampo e personagens já mencionadas.
Idas e vindas entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro, onde o autor do diário deveria apresentar, no centenário de nascimento do fundador da Academia Brasileira de Letras, uma conferência sobre as implicações da cegueira que teria rondado Machado em 1879, acentuam os paralelismos entre os dois escritores.
J.L. Borges e Machado transformam-se, assim, em opostos complementares. O primeiro, empenhado em negar a realidade e transpassar tempo; o segundo, marcado "pela consciência precoce da realidade e a impressão trágica de que o Tempo é sua matéria essencial". Tudo isso, no entanto, cogita o narrador, talvez não passe de "loucura", tema que também atravessa todo o enredo.
O livro tem passagens memoráveis (e não vai aqui nenhum trocadilho), sobretudo os diálogos entre figuras realmente existentes ou não, as perambulações pela Buenos Aires pré-Segunda Guerra Mundial descritas com minúcia de cartógrafo, a suspeição melancólica e galhofeira que constitui o romance.
Não faltam farpas à crítica machadiana: "Tentar enquadrá-lo no papel de "romancista da Corte" ou "cronista do século 19" (e não são poucos os que fazem isso) parece mais do que um erro de compreensão: é um reducionismo invejoso e compensatório, de gente incapaz de suportar tanta grandeza".
Porém, nas páginas finais do livro, a atmosfera de irrealidade e de melancolia se resolve numa trama policial que, mesmo descontada a nota paródica e grotesca, fica aquém do que o livro prometia.
"Todas as idéias são borgianas. Esse é o perigo de ter um gênio nas vizinhanças", disse em entrevista ao Mais! [15/9/2002] o escritor argentino César Aira. Se um gênio incomoda muita gente, dois incomodam muito mais.


Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Memorial de Buenos Aires
224 págs., R$ 39,50 de Antonio Fernando Borges. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).


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