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+ história
Leia o relato de viagem sobre a primeira comitiva persa que aportou no Rio no século 19, escrito por um orientalista inglês, que mostra assombro com a sujeira e a escravidão
VELHO MUNDO NOVO
JAMES JUSTINIAN MORIER
Os persas ficaram exultantes e asseveraram que suas cidades eram mais limpas do que aquela que tinham diante dos olhos
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Alançamos Cabo Frio no dia
11 de novembro de 1810. Ao
aproximarmo-nos da terra,
chamamos os persas para
verem o "Yengee Duniah" -ou Novo Mundo. Em seu país, tinham ouvido coisas maravilhosas acerca desta parte do globo e estavam dispostos a acreditar em tudo que se lhes
dissesse sobre o lugar -sobretudo
em coisas maravilhosas.
Em razão de tamanha expectativa,
mostraram-se um pouco decepcionados quando viram somente terra
e árvores e protestaram que o Novo
Mundo, estranhamente, parecia ser
exatamente igual ao Velho Mundo.
Ao lançarmos âncora próximo à fortaleza de Santa Cruz, os persas insistentemente procuraram por coisas
que se distinguissem do que tinham
visto em outras terras, mas em vão.
O maravilhoso cenário circundante, umas montanhas enormes e irregulares, cobertas até o seus elevados
cumes com a mais rica vegetação,
não lhes causou nenhuma impressão e lhes pareceu muito semelhante
à sua floresta de "Mazanderan".
Os persas geralmente não experimentam nenhum deleite com as paisagens naturais; a palavra "jengel",
que é utilizada por eles para designar
tais paisagens, suscita-lhes os mesmos sentimentos que nós experimentamos quando ouvimos a palavra "selvagem".
O príncipe regente de Portugal [d.
João 6º] gentilmente manifestou o
desejo de que os dois embaixadores
e ambas as comitivas fossem seus
hóspedes durante a estada no país,
ordenando que se preparasse uma
casa para recebê-los. A cozinha de
sua alteza real, a sua adega, seus empregados, cavalos e carruagens foram colocados à disposição das comitivas. Em suma, a corte portuguesa, em todos os sentidos, procedeu
de maneira muito simpática.
Fomos conduzidos para a audiência com o príncipe pelo ministro de
sua majestade, lorde Strangford, e
recebidos com grande cordialidade.
O príncipe lembrou ao embaixador
persa que os portugueses tinham
outrora sido formalmente aliados
dos persas e lhe disse que estava contente em poder, por meio da comitiva, oferecer ao monarca persa uma
prova de sua amizade, amizade que
há tempos unia os dois Estados.
A bem da verdade, a relação entre
Portugal e a Pérsia realmente foi, em
certa altura, muito íntima. Quando
os portugueses dominavam grandes
extensões na Índia, também eram
possuidores das ilhas de Ormus,
Kishmish, Larak e Bahrein, todas situadas no golfo Pérsico; em terra, os
portos e fortalezas de Bender, Abassi
e Congo também lhes pertencia.
Tais possessões, porém, foram todas perdidas entre os anos de 1610 e
1625. Decorrido um tempo razoável,
os portugueses conquistaram Muscat, na Arábia, possessão que lhes foi
de grande valia no comércio do golfo Pérsico, e concordaram em abrir
mão de todas as suas pretensões no
que tange a possessões na costa da
Pérsia, desde que tivessem permissão para pescar nos bancos de pérola
do Bahrein e recebessem metade dos
impostos de alfândega cobrados no
Congo, um porto situado a três dias
de distância de Ormus.
Os portugueses perderam Ormus
em 1623, em razão de um tratado entre a Inglaterra e Shah Abbas, pelo
qual os ingleses concordaram em
ajudar os persas com seus navios e
em transportá-los, num esforço conjunto, para a ilha; Shah Abbas, por
sua vez, permitiu não somente que
os ingleses parassem de pagar tributos em Bender Abassi como ainda
que passassem a receber os impostos de alfândega do porto, desde que
deixassem quatro ou ao menos dois
soldados seus no golfo Pérsico com
o intuito de proteger os portos persas e os seus navios mercantes.
Atualmente, o nome de Portugal é
quase desconhecido na Pérsia.
Passamos uma quinzena no Rio de
Janeiro, ao longo da qual despendemos o tempo fazendo visitas, freqüentando muitos jantares e procurando ver as coisas mais pitorescas
da cidade e de seus arredores. A urbe
é grande e bem construída para uma
cidade colonial, contando com belas
igrejas e portentosos conventos.
Cidade vulnerável
Daí a urgente necessidade de construir para o príncipe regente uma residência melhor do que o mesquinho palácio em que ele atualmente
habita. O prédio não é fortificado,
mas o porto que lhe dá acesso está
protegido por diversas obras de fortificação, entre as quais as mais importantes são o forte de Santa Cruz,
que se encontra na entrada da baía, e
um pequeno forte situado numa ilha
próxima a um lugar de ancoragem,
ao lado da cidade. Acima da urbe,
sobre uma elevação, encontra-se
uma fortificação denominada Cidadela, e há ainda uma outra fortaleza,
localizada na ilha das Cobras. Tais
recursos, porém, estão longe de parecer suficientes para deter um
bombardeio do mar.
As chácaras da redondeza produzem uma grande quantidade de frutas, as quais podem ser compradas
na cidade. As laranjas são muitíssimo apreciadas. O príncipe regente,
inclusive, enviou para os embaixadores alguns exemplares de um tipo
que contém dentro uma pequena laranja incipiente.
Há na região todo tipo de fruta tropical, ainda que a manga e o abacaxi
daqui sejam reputados inferiores
aos das Índias Orientais.
A carne de vaca e as aves são caras,
e tivemos enorme dificuldade em repor os nossos estoques de viagem.
Porcos há em grande abundância,
entre os quais os de uma raça horrorosa, semelhante a cachorros sem
pêlo; são animais com uma pele negra, o corpo e o focinho compridos,
as pernas curtas e tortas e um longo
rabo enrolado. São vistos aos montes, aparentemente sem donos, remexendo o lixo das ruas.
Para nós ingleses, verdade seja dita, a imundice de São Sebastião e de
seus habitantes é bastante desagradável. Os persas ficaram exultantes e
asseveraram que suas cidades eram
bem mais limpas do que aquela que
tinham diante dos olhos.
Deve-se, contudo, considerar que
muito da sujeira das ruas se deve à
comunidade negra, a mais numerosa da cidade. Diante de certas emergências, os negros, em razão de sua
bruta criação, raramente contêm
suas necessidades. Pudemos avaliar
bem isso no Campo da Lampadosa,
uma grande praça, localizada em
frente à nossa casa, a qual, constantemente, estava infestada de negros
durante todas as horas do dia -foi
necessário colocar guardas para
mantê-los à distância.
Durante o período em que ficamos
no Brasil, o comércio de negros estava em pleno vigor. A visita que fizemos a um mercado de escravos convenceu-nos mais da iniqüidade do
tráfico do que qualquer coisa que venha a ser dita ou escrita sobre o tema. De cada lado da rua em que o
mercado está localizado há grandes
armazéns onde os negros são amontoados. Durante o dia, eles agrupam-se melancolicamente à espera
de serem levados pelas mãos de algum negociante, cujos sórdidos negócios estão sustentados nesses seres que, ao serem adquiridos, são
pouco mais do que esqueletos.
Se tal é o estado desses negros em
terra, onde desfrutam das vantagens
do ar e do espaço, qual terá sido as
condições a bordo dos navios que os
trouxeram para cá?
É bastante comum a fuga de escravos para florestas, onde são geralmente recapturados. Quando isso
ocorre, para impedir a progressão
do negro no interior das matas, caso
tente fugir novamente, colocam no
seu pescoço um colar de ferro, com
um longo braço em forma de gancho. Malgrado toda essa miséria, é
gratificante observar que muitos negros freqüentam as igrejas e que, ao
menos formalmente, fazem parte de
alguma congregação cristã.
Vimos poucos aborígines, pois
eles preferem evitar as cidades do
que se adaptarem às suas regras. Os
que conseguimos ver tinham baixa
estatura, uma cor vermelho-cobre,
os cabelos muito pretos, as bochechas salientes, os narizes tortos e os
rostos largos e inexpressivos.
Mostraram-nos a rainha de uma
tribo situada na fronteira das possessões portuguesas, tribo que diziam ser de canibais: sua fisionomia
era aterradora. A índia caíra prisioneira e, desde então, constantes esforços foram empreendidos para
humanizá-la; disseram-nos, contudo, que, até agora, pouco sucesso tinha sido alcançado.
A proporção de negros para brancos puros europeus, na cidade de
São Sebastião, é de nove para um.
Há, no entanto, tantas uniões entre
as raças que se pode encontrar tipos
de todas as matizes: do totalmente
negro ao marrom desbotado.
A beleza dos arredores da cidade
do Rio de Janeiro tem freqüentemente sido descrita, o que torna
quase desnecessário acrescentar
mais uma descrição a essa lista, ainda porque não visitei o lugar na qualidade nem de botânico nem de mineralogista.
No dia 25 de setembro, os embaixadores foram se despedir do príncipe regente. Dirigimo-nos ao palácio
às 20h e encontramos sua alteza retornando de seu passeio habitual.
Estávamos vestidos cerimoniosamente, mas todos os demais estavam em trajes informais, pois o cerimonial é pouco respeitado nas audiências do final da tarde. O príncipe
conversou com os embaixadores
durante um tempo considerável e
pareceu apreciar bastante a descontração do persa, um homem espontâneo e desembaraçado.
De costas para dom João 6º
Ao término da audiência, quando
estávamos em via de deixar o príncipe e nos inclinávamos respeitosamente enquanto saíamos de sua vista, o persa, sem nenhum medo ou
inibição, virou as costas e, sem ao
menos olhar para trás, encaminhou-se para a porta. Tal comportamento
é digno de nota, pois ajuda a desvendar o caráter de todo um povo.
Esse homem, que nunca aparece
diante de seu próprio rei, a não ser
com grande respeito e apreensão, e
que jamais pronuncia o nome de seu
soberano sem experimentar um
sentimento de terror, aqui, diante de
um soberano estrangeiro, mostrou
uma indiferença quase insultuosa e
se serviu de uma linguagem que levava a supor ter ele nascido num
país onde a liberdade reina na sua
plenitude. Talvez tamanho desrespeito diante de um príncipe estrangeiro decorra exatamente da excessiva reverência que tem pelo seu
próprio monarca.
Ao retornarmos da audiência, encontramos o séquito do embaixador
persa muito agitado, em razão dos
problemas causados por dois de
seus membros. Uma dama portuguesa havia lhes dado de presente
um papagaio -ave que, na poesia
persa, tem quase o mesmo significado que tem a rola na poesia inglesa.
Quando retornaram para junto
dos seus camaradas, ambos reivindicaram a preferência da dama e se
disseram donos da prenda. A querela dos dois galanteadores contaminou os outros. Com o intuito de pôr
fim às discussões, um deles, muito
calmamente, se chegou para o lado e
degolou o papagaio. A tempestade,
então, caiu sobre ele, e a coisa se tornou tão violenta que os soldados
portugueses tiveram que ser chamados para aplacar os ânimos.
Logo que o embaixador retornou,
puniu os principais infratores, ordenando que fossem chicoteados diante dele. Aqueles que, no calor dos
acontecimentos, haviam se expressado de maneira pouco reservada, tiveram a boca espancada com um sapato -é o que denominam "kufsh
khorden", isto é, "comendo sapato".
Um criado irritou especialmente o
embaixador, pois, durante as investigações do caso do papagaio, ficou
provado que ele havia acusado o embaixador de amesquinhar a grandeza do seu soberano e de denegrir o
nome dos muçulmanos, pois vivia
somente em companhia de cristãos,
bebendo vinho e, por certo, comendo carne de porco. Esse homem foi
enviado preso para o navio Lion, depois de ser fartamente espancado
com uma vara e ter a boca amassada
pelo salto de um sapato.
O embaixador embarcou no dia
seguinte. Mas, em razão do vento
fraco e da força da maré, fomos obrigados a lançar âncora diversas vezes
na entrada do porto e demoramos
três dias para ganhar o mar.
Tradução de Jean M. Carvalho França.
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