São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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+ história

Leia o relato de viagem sobre a primeira comitiva persa que aportou no Rio no século 19, escrito por um orientalista inglês, que mostra assombro com a sujeira e a escravidão

VELHO MUNDO NOVO

JAMES JUSTINIAN MORIER


Os persas ficaram exultantes e asseveraram que suas cidades eram mais limpas do que aquela que tinham diante dos olhos

Alançamos Cabo Frio no dia 11 de novembro de 1810. Ao aproximarmo-nos da terra, chamamos os persas para verem o "Yengee Duniah" -ou Novo Mundo. Em seu país, tinham ouvido coisas maravilhosas acerca desta parte do globo e estavam dispostos a acreditar em tudo que se lhes dissesse sobre o lugar -sobretudo em coisas maravilhosas.
Em razão de tamanha expectativa, mostraram-se um pouco decepcionados quando viram somente terra e árvores e protestaram que o Novo Mundo, estranhamente, parecia ser exatamente igual ao Velho Mundo. Ao lançarmos âncora próximo à fortaleza de Santa Cruz, os persas insistentemente procuraram por coisas que se distinguissem do que tinham visto em outras terras, mas em vão.
O maravilhoso cenário circundante, umas montanhas enormes e irregulares, cobertas até o seus elevados cumes com a mais rica vegetação, não lhes causou nenhuma impressão e lhes pareceu muito semelhante à sua floresta de "Mazanderan".
Os persas geralmente não experimentam nenhum deleite com as paisagens naturais; a palavra "jengel", que é utilizada por eles para designar tais paisagens, suscita-lhes os mesmos sentimentos que nós experimentamos quando ouvimos a palavra "selvagem".
O príncipe regente de Portugal [d. João 6º] gentilmente manifestou o desejo de que os dois embaixadores e ambas as comitivas fossem seus hóspedes durante a estada no país, ordenando que se preparasse uma casa para recebê-los. A cozinha de sua alteza real, a sua adega, seus empregados, cavalos e carruagens foram colocados à disposição das comitivas. Em suma, a corte portuguesa, em todos os sentidos, procedeu de maneira muito simpática.
Fomos conduzidos para a audiência com o príncipe pelo ministro de sua majestade, lorde Strangford, e recebidos com grande cordialidade. O príncipe lembrou ao embaixador persa que os portugueses tinham outrora sido formalmente aliados dos persas e lhe disse que estava contente em poder, por meio da comitiva, oferecer ao monarca persa uma prova de sua amizade, amizade que há tempos unia os dois Estados.
A bem da verdade, a relação entre Portugal e a Pérsia realmente foi, em certa altura, muito íntima. Quando os portugueses dominavam grandes extensões na Índia, também eram possuidores das ilhas de Ormus, Kishmish, Larak e Bahrein, todas situadas no golfo Pérsico; em terra, os portos e fortalezas de Bender, Abassi e Congo também lhes pertencia.
Tais possessões, porém, foram todas perdidas entre os anos de 1610 e 1625. Decorrido um tempo razoável, os portugueses conquistaram Muscat, na Arábia, possessão que lhes foi de grande valia no comércio do golfo Pérsico, e concordaram em abrir mão de todas as suas pretensões no que tange a possessões na costa da Pérsia, desde que tivessem permissão para pescar nos bancos de pérola do Bahrein e recebessem metade dos impostos de alfândega cobrados no Congo, um porto situado a três dias de distância de Ormus.
Os portugueses perderam Ormus em 1623, em razão de um tratado entre a Inglaterra e Shah Abbas, pelo qual os ingleses concordaram em ajudar os persas com seus navios e em transportá-los, num esforço conjunto, para a ilha; Shah Abbas, por sua vez, permitiu não somente que os ingleses parassem de pagar tributos em Bender Abassi como ainda que passassem a receber os impostos de alfândega do porto, desde que deixassem quatro ou ao menos dois soldados seus no golfo Pérsico com o intuito de proteger os portos persas e os seus navios mercantes.
Atualmente, o nome de Portugal é quase desconhecido na Pérsia.
Passamos uma quinzena no Rio de Janeiro, ao longo da qual despendemos o tempo fazendo visitas, freqüentando muitos jantares e procurando ver as coisas mais pitorescas da cidade e de seus arredores. A urbe é grande e bem construída para uma cidade colonial, contando com belas igrejas e portentosos conventos.

Cidade vulnerável
Daí a urgente necessidade de construir para o príncipe regente uma residência melhor do que o mesquinho palácio em que ele atualmente habita. O prédio não é fortificado, mas o porto que lhe dá acesso está protegido por diversas obras de fortificação, entre as quais as mais importantes são o forte de Santa Cruz, que se encontra na entrada da baía, e um pequeno forte situado numa ilha próxima a um lugar de ancoragem, ao lado da cidade. Acima da urbe, sobre uma elevação, encontra-se uma fortificação denominada Cidadela, e há ainda uma outra fortaleza, localizada na ilha das Cobras. Tais recursos, porém, estão longe de parecer suficientes para deter um bombardeio do mar.
As chácaras da redondeza produzem uma grande quantidade de frutas, as quais podem ser compradas na cidade. As laranjas são muitíssimo apreciadas. O príncipe regente, inclusive, enviou para os embaixadores alguns exemplares de um tipo que contém dentro uma pequena laranja incipiente.
Há na região todo tipo de fruta tropical, ainda que a manga e o abacaxi daqui sejam reputados inferiores aos das Índias Orientais.
A carne de vaca e as aves são caras, e tivemos enorme dificuldade em repor os nossos estoques de viagem. Porcos há em grande abundância, entre os quais os de uma raça horrorosa, semelhante a cachorros sem pêlo; são animais com uma pele negra, o corpo e o focinho compridos, as pernas curtas e tortas e um longo rabo enrolado. São vistos aos montes, aparentemente sem donos, remexendo o lixo das ruas.
Para nós ingleses, verdade seja dita, a imundice de São Sebastião e de seus habitantes é bastante desagradável. Os persas ficaram exultantes e asseveraram que suas cidades eram bem mais limpas do que aquela que tinham diante dos olhos.
Deve-se, contudo, considerar que muito da sujeira das ruas se deve à comunidade negra, a mais numerosa da cidade. Diante de certas emergências, os negros, em razão de sua bruta criação, raramente contêm suas necessidades. Pudemos avaliar bem isso no Campo da Lampadosa, uma grande praça, localizada em frente à nossa casa, a qual, constantemente, estava infestada de negros durante todas as horas do dia -foi necessário colocar guardas para mantê-los à distância.
Durante o período em que ficamos no Brasil, o comércio de negros estava em pleno vigor. A visita que fizemos a um mercado de escravos convenceu-nos mais da iniqüidade do tráfico do que qualquer coisa que venha a ser dita ou escrita sobre o tema. De cada lado da rua em que o mercado está localizado há grandes armazéns onde os negros são amontoados. Durante o dia, eles agrupam-se melancolicamente à espera de serem levados pelas mãos de algum negociante, cujos sórdidos negócios estão sustentados nesses seres que, ao serem adquiridos, são pouco mais do que esqueletos.
Se tal é o estado desses negros em terra, onde desfrutam das vantagens do ar e do espaço, qual terá sido as condições a bordo dos navios que os trouxeram para cá?
É bastante comum a fuga de escravos para florestas, onde são geralmente recapturados. Quando isso ocorre, para impedir a progressão do negro no interior das matas, caso tente fugir novamente, colocam no seu pescoço um colar de ferro, com um longo braço em forma de gancho. Malgrado toda essa miséria, é gratificante observar que muitos negros freqüentam as igrejas e que, ao menos formalmente, fazem parte de alguma congregação cristã.
Vimos poucos aborígines, pois eles preferem evitar as cidades do que se adaptarem às suas regras. Os que conseguimos ver tinham baixa estatura, uma cor vermelho-cobre, os cabelos muito pretos, as bochechas salientes, os narizes tortos e os rostos largos e inexpressivos.
Mostraram-nos a rainha de uma tribo situada na fronteira das possessões portuguesas, tribo que diziam ser de canibais: sua fisionomia era aterradora. A índia caíra prisioneira e, desde então, constantes esforços foram empreendidos para humanizá-la; disseram-nos, contudo, que, até agora, pouco sucesso tinha sido alcançado.
A proporção de negros para brancos puros europeus, na cidade de São Sebastião, é de nove para um. Há, no entanto, tantas uniões entre as raças que se pode encontrar tipos de todas as matizes: do totalmente negro ao marrom desbotado.
A beleza dos arredores da cidade do Rio de Janeiro tem freqüentemente sido descrita, o que torna quase desnecessário acrescentar mais uma descrição a essa lista, ainda porque não visitei o lugar na qualidade nem de botânico nem de mineralogista.
No dia 25 de setembro, os embaixadores foram se despedir do príncipe regente. Dirigimo-nos ao palácio às 20h e encontramos sua alteza retornando de seu passeio habitual. Estávamos vestidos cerimoniosamente, mas todos os demais estavam em trajes informais, pois o cerimonial é pouco respeitado nas audiências do final da tarde. O príncipe conversou com os embaixadores durante um tempo considerável e pareceu apreciar bastante a descontração do persa, um homem espontâneo e desembaraçado.

De costas para dom João 6º
Ao término da audiência, quando estávamos em via de deixar o príncipe e nos inclinávamos respeitosamente enquanto saíamos de sua vista, o persa, sem nenhum medo ou inibição, virou as costas e, sem ao menos olhar para trás, encaminhou-se para a porta. Tal comportamento é digno de nota, pois ajuda a desvendar o caráter de todo um povo.
Esse homem, que nunca aparece diante de seu próprio rei, a não ser com grande respeito e apreensão, e que jamais pronuncia o nome de seu soberano sem experimentar um sentimento de terror, aqui, diante de um soberano estrangeiro, mostrou uma indiferença quase insultuosa e se serviu de uma linguagem que levava a supor ter ele nascido num país onde a liberdade reina na sua plenitude. Talvez tamanho desrespeito diante de um príncipe estrangeiro decorra exatamente da excessiva reverência que tem pelo seu próprio monarca.
Ao retornarmos da audiência, encontramos o séquito do embaixador persa muito agitado, em razão dos problemas causados por dois de seus membros. Uma dama portuguesa havia lhes dado de presente um papagaio -ave que, na poesia persa, tem quase o mesmo significado que tem a rola na poesia inglesa.
Quando retornaram para junto dos seus camaradas, ambos reivindicaram a preferência da dama e se disseram donos da prenda. A querela dos dois galanteadores contaminou os outros. Com o intuito de pôr fim às discussões, um deles, muito calmamente, se chegou para o lado e degolou o papagaio. A tempestade, então, caiu sobre ele, e a coisa se tornou tão violenta que os soldados portugueses tiveram que ser chamados para aplacar os ânimos.
Logo que o embaixador retornou, puniu os principais infratores, ordenando que fossem chicoteados diante dele. Aqueles que, no calor dos acontecimentos, haviam se expressado de maneira pouco reservada, tiveram a boca espancada com um sapato -é o que denominam "kufsh khorden", isto é, "comendo sapato".
Um criado irritou especialmente o embaixador, pois, durante as investigações do caso do papagaio, ficou provado que ele havia acusado o embaixador de amesquinhar a grandeza do seu soberano e de denegrir o nome dos muçulmanos, pois vivia somente em companhia de cristãos, bebendo vinho e, por certo, comendo carne de porco. Esse homem foi enviado preso para o navio Lion, depois de ser fartamente espancado com uma vara e ter a boca amassada pelo salto de um sapato.
O embaixador embarcou no dia seguinte. Mas, em razão do vento fraco e da força da maré, fomos obrigados a lançar âncora diversas vezes na entrada do porto e demoramos três dias para ganhar o mar.


Tradução de Jean M. Carvalho França.


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