São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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Elisabeth Roudinesco defende a psicanálise dos ataques da psiquiatria e do relativismo cultural
A ideologia da sociedade depressiva

Isaias Pessotti
especial para a Folha

Nesse seu livro, como de hábito, Elisabeth Roudinesco mostra seu compromisso humanista, sua competência em história das idéias e um conhecimento aprofundado do pensamento freudiano. Dessa mistura de talentos resultou um texto ardoroso, com farta documentação histórica; tanto sobre a gênese da metapsicologia freudiana quanto sobre os sucessivos ataques editoriais contra ela e sobre o significado mais profundo de uma crescente oposição à psicanálise. A busca desse significado é a motivação principal da obra. Produto de uma fina análise da cultura contemporânea, ela é, antes de tudo, um brado de alarme. A crescente ofensiva dos meios intelectuais e outros contra a psicanálise sinaliza uma cultura gravemente enferma. Uma sociedade depressiva: não porque circunstancialmente nela aumentam os episódios de depressão, mas por ser ela a produtora direta da depressão. Se os fármacos podem tudo, se as leis da genética e da neurobiologia podem tudo e tudo explicam, se o sofrimento íntimo de cada homem não conta, é ingênuo esperar que ele assuma sua ansiedade e seus conflitos a fim de superá-los e se tornar mais forte. De que serviria o autoconhecimento para um homem conformado à condição de objeto e, irresponsável por seus males, munido de seus Prozacs, à procura de empatar com os outros, de não ficar para trás, de não ser diferente? Por que procurar entender os conflitos e contradições que lhe trazem sofrimento, se é possível anestesiar-se quando a inaceitação de si mesmo aflora? Um sintoma da sociedade depressiva é a hostilidade à psicanálise, que tem várias formas: a rejeição epistemológica à sua pretensão a um estatuto científico, ou a oposição moralista, que pega a dinâmica inconsciente da sexualidade, mas adota a teoria da sedução (para, justamente, procurar ali os pecados de Freud), ou a alegação da baixa rentabilidade terapêutica. Por trás dessas oposições está a verdadeira doença da sociedade liberal: a negação da subjetividade, com seu corolário; a imposição cultural de uma "normalidade assassina" que mata em cada homem o que torna único, a sua subjetividade e a força criadora do dinamismo inconsciente.

Cadeia de processos
A lúcida análise dessa "sociedade depressiva" mostra algo alarmante: uma concepção da vida psíquica ou mental como mera cadeia de processos neurobiológicos, comportamentais, de origem genética ou mesmo cultural despoja o sujeito de qualquer autoria de seu crescimento pessoal. E já que essas determinações externas explicam qualquer conflito ou angústia, não há razões para uma percepção de si mesmo como sujeito nem para descobrir suas motivações pessoais: a causa está fora do homem; está no neurônio, no gene, na cultura ou na etnia. E a depressão epidêmica de hoje é típica de um homem cuja significação é buscada pelo enquadramento proposital ou forçado, na normalidade objetiva. É preciso ignorar seus conflitos e recusar a causalidade psíquica. Dessa postura a uma "ideologia medicamentosa" a distância é ínfima. O antidepressivo abole o sintoma, reduz a angústia e livra o homem da responsabilidade por seu mal. Temos hoje uma psiquiatria biológica que, desinteressada dos processos causais do sofrimento psíquico, afasta o homem do encontro de si mesmo e o torna até fármaco-dependente: já que a "solução" (passageira) está no medicamento, volta-se a ele sempre que o conflito (não resolvido) aflorar.

Males equivalentes
Essa psiquiatria anestesiante nega a subjetividade já a partir do diagnóstico, baseado numa falsa nosologia, que não vê diferenças relevantes entre o luto pela perda de um pai, o desânimo por uma reprovação acadêmica ou a tristeza pela perda do emprego, desde que os sintomas objetivos se encaixem nas mesmas categorias prefixadas, no mesmo quadro formal. São males equivalentes, já que o mesmo antidepressivo pode ser eficaz nos três casos. Elisabeth Roudinesco aponta o famigerado DSM-4 (código internacional de classificação das doenças mentais) como causa imediata da psiquiatrização da vida e da psiquiatria farmacológica (pesquisa recente mostra que, entre o franceses, 7% consomem tranquilizantes e 22% são usuários de antidepressivos). A fuga de si mesmo, da própria subjetividade em crise, mostra-se também no apelo ao irracional, às "explicações" e terapias mágicas para os males psíquicos (Roudinesco considera intrigante um resultado de pesquisa: 25% dos franceses acreditam, hoje, na reencarnação). Também um certo relativismo cultural mina a subjetividade, quando minimiza a singularidade do sujeito, para conformá-lo aos quadros étnicos ou socioculturais "típicos" de seu grupo.

Máquina de neurônios
Transformar o sofrimento em vitimismo seria outra forma de destruir o sujeito, pois "nada é mais destruidor para um sujeito do que ser reduzido a seu sistema físico-químico. E nada é mais humilhante para esse mesmo sujeito do que ver seu sofrimento íntimo nivelado à falsa diferença de uma origem étnica".
A questão, crucial, do inconsciente é o alvo polêmico da segunda parte da obra. Uma análise contundente de escritos que, no ambiente acadêmico, em diferentes frentes, se opõem ao princípio da dinâmica do inconsciente, principalmente por um apego obstinado a um modelo experimentalista de ciência, que rejeita a análise de processos não observáveis. Sobre esse ostracismo da psicanálise, interrogada sobre o motivo que a levou a escrever esta obra, a autora respondeu numa entrevista: "Foi uma loucura de um certo discurso sobre a ciência. A transformação do homem em uma máquina de neurônios. Cada vez mais, notadamente nos Estados Unidos, tudo é explicado pelos genes, o biológico, a hereditariedade e, sobretudo, o cérebro. Como há cem anos". O intrigante é que esses opositores deploraram a desistência, de Freud, de realizar o programa científico esboçado no "Projeto", mas, curiosamente, adotam a teoria da sedução (traumática) que o próprio Freud repudiou. E a autora aponta, sutilmente, quanto essa opção pela teoria do trauma da sedução sexual fundamenta uma rejeição moralista à doutrina freudiana e uma concepção distorcida sobre a mulher. O foco da discussão se restringe ainda mais, na terceira parte da obra. Mesmo tratando do "futuro da psicanálise", Elisabeth Roudinesco não resiste à tentação de escrever história. O futuro da psicanálise é, mais que tudo, subentendido a partir de uma preciosa genealogia da psicanálise na França até as tendências das gerações mais recentes de psicanalistas franceses. Essa reconstrução historiográfica não esquece a influência das "feridas narcísicas" de psicanalistas de renome, nos processos de cisão e conflito entre escolas e grupos franceses de psicanálise.

Missão heróica
O interesse agora é, obviamente, mais doméstico, não obstante a indicação dos nexos que unem o pensamento de Freud ao de Melanie Klein e ao de Lacan. Os inimigos internos da psicanálise, que Roudinesco aponta, são: instituições esclerosadas, "panelinhas", o apego a pensamentos já crônicos e a propensão ao dogmatismo.
A psicanálise precisa renovar suas instituições e teoria, se pretende acompanhar as mudanças socioculturais e a crise de seu próprio objeto. Para cumprir a missão, até heróica, de resgatar a subjetividade ameaçada de morte pela sociedade depressiva. E pelas variadas oposições (acadêmicas ou não) a uma doutrina que admite como processo instituidor da subjetividade os entrechoques na dinâmica do inconsciente.
Do ponto de vista da autora, a essência do sujeito estaria circunscrita a essa dinâmica inconsciente, ao contraste entre as pulsões e o recalcamento (com as consequentes motivações e sofrimentos). Seria então quimérico o projeto de outras doutrinas ou terapêuticas que também pretendem salvar ou restaurar a subjetividade, como a psicologia do "self" ou a psicoterapia existencial (para não falar das angústias da filosofia contemporânea)? Elas estariam exorbitando ao se presumirem competentes para tais propósitos?
Se sim, podemos supor ("age ergo somniemus") que, para o homem de hoje, esvaziado de subjetividade, fora da psicanálise não há salvação? As entrelinhas deste belo livro parecem dar razão a esse sonho. Então caberia perguntar: "Por que só a psicanálise?".



Por Que a Psicanálise?
164 págs., R$ 23,00 de Elisabeth Roudinesco. Tradução de Vera Ribeiro. Jorge Zahar Editor (rua México, 31, sobreloja, RJ, 20031-144, tel. 0/ xx/21/240-0226).



Isaias Pessotti é professor de psicologia médica na Universidade Federal de São Carlos (SP) e escritor, autor de, entre outros, "Os Nomes da Loucura" (Ed. 34).


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