São Paulo, domingo, 26 de março de 2000 |
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+ livros O psicanalista Jurandir Freire Costa discute a dissolução das fronteiras entre o público e o privado A moral impotente
Olgária Matos
A tematização das formas de amar,
viver e morrer constitui a idéia reguladora dos escritos sobre livros, filmes e
ocorrências do cotidiano -de que se
compõe "Razões Públicas, Emoções Privadas". Ensaios redigidos originalmente
para a Folha, operam como uma "filosofia prática", convidando ao conhecimento de nós mesmos, dos outros e do mundo. "Máximas e reflexões", poderíamos
dizer, tomando por referência o título de
uma obra do duque de La Rochefoucauld, a quem Jurandir, por vezes, e não
marginalmente, se refere. Nos salões do
século 17, na corte que se toma por toda a
sociedade e pelo próprio mundo, o moralista reconhece, nas falhas de seus semelhantes, seus próprios vícios.
No entrecruzamento das categorias de
público e privado, ou melhor, na tendência à sua inversão ou mesmo dissolução,
esse livro revela um intuito ético. Em
"Para o Amigo Que Não Me Salvou a Vida", de Hervé Guibert - retrato dos
tempos sombrios da Aids-, é toda uma
crítica à cultura panóptica, de extroversão globalizante, que, na senda de Foucault, Jurandir desenvolve. Até a época
clássica, por ocasião de cerimônias e festas públicas, o corpo "mágico e sagrado"
do rei é objeto dos olhares que o vêem
em todas as suas partes. Sua contrapartida "em negativo" encontrava-se na prática simultânea da exibição em praça pública de um condenado, entregue aos insultos da multidão.
O autor enfatiza seu alcance ao comentar "A Etiqueta no Antigo Regime", de Renato Janine Ribeiro: "(Sua) intenção não é idealizar, conservadoramente, o que passou. Sua pergunta é mais sutil e urgente: como reacender o (...) "amor ao mundo", presente no estilo de vida nobre? Ou, em outros termos, como conciliar apreço pela igualdade, liberdade e solidariedade com uma participação democrática afetivamente investida? (...). A importância do estudo é grande, sobretudo se confrontada ao pano de fundo da moralidade contemporânea". Nesse campo, Jurandir associa nossa concepção de amor a questões que abrangem a dimensão do político, em um sentido próximo àquele que Adorno confere à educação em crise: "Crise da cultura é crise da capacidade de amar". Lembre-se, também, Hannah Arendt, autora recepcionada por Jurandir Freire Costa. A exemplo de Horkheimer, ela dá continuidade ao problema da solidariedade e da compaixão, isto é, do amor ao semelhante. Questão tanto mais importante quanto nos tornamos insensíveis aos valores iluministas de "igualdade, liberdade, fraternidade", tolerantes com o intolerável, reativando passadas e produzindo novas figuras da barbárie em meio a grandiosos desenvolvimentos do controle da natureza, da "saúde do corpo" e do acúmulo de bens. Banalização do mal O descompasso entre aquisições tecno-científicas e carência de recursos morais para os controlar requer, para o autor, reinterrogá-los em meio aos poderosos efeitos econômicos e sociais da "banalização do mal" e do eclipse da pergunta sobre o sentido da vida. Em "Ritos da Insensatez", lemos: "O sentimento de impotência é o espelho do narcisismo de hoje. Porque reduzimos nosso tamanho moral, agigantamos o fetiche do sexo, das paixões, do mercado, da solidão, da violência, das drogas e, por fim, de palavras como "vida" e "morte", que se tornaram o último argumento cínico contra os que permanecem acreditando no poder da vontade humana para construir um mundo melhor. Os ensaios deste livro são filosofemas morais que retomam o pensamento de Sócrates e Freud, o existencialismo e o pragmatismo contemporâneos. São suscitados pela "insensatez que ronda a imprevisibilidade da vida (...). Estamos todos na estrada. Vamos em frente, perseguindo o que desejamos, evitando o que tememos, conhecendo o que ignoramos e, no final, somos apanhados de surpresa por algo que destroça nossas previsões e supera nosso entendimento (...), o que mostra quão insano é o impulso narcísico para controlar racionalmente o que nos leva a desejar, fazer ou falar". O que torna imperativa a volta "às questões primeiras", pois, já diziam os gregos, se fôssemos felizes, não seria necessário filosofar. E se não o pudéssemos ser, seria inútil fazê-lo. O presente trabalho tem vocação militante. Reabre a dimensão ética da leitura e faz da palavra ação, ação renovadora, para elaborar um mundo justo, compartilhado na solidariedade do bem comum. "Razões Públicas, Emoções Privadas" dá vida ao projeto de Aristóteles que, em sua "Ética a Nicômaco", escreveu: "Não nos entregamos a essas indagações para saber o que é a virtude, mas para aprender a tornar-nos virtuosos e bons, pois que de outra maneira este estudo seria completamente vão". Razões Públicas, Emoções Privadas 148 págs., R$ 18,00 de Jurandir Freire Costa. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). Olgária Chain Féres Matos é professora titular do departamento de filosofia da USP, autora de, entre outros, "Os Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense). Texto Anterior: + livros - Isaias Pessotti: A ideologia da sociedade depressiva Próximo Texto: + réplica - Paulo Ghiraldelli Jr.: Questão de fidelidade Índice |
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