São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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AUTORES
A força de George Eliot

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

Foi Freud, em nosso tempo, quem nos ensinou de novo o que os pré-socráticos já ensinavam: "o "ethos' é o "daimon'±", caráter é destino. Uma geração antes de Freud, George Eliot (1819-1880) ensinava a mesma triste verdade aos seus contemporâneos. Se caráter é destino, então não existem acidentes. O caráter, presumivelmente, é algo de menos volátil do que a personalidade; e nossa tendência seria não levar a sério quem dissesse que personalidade é destino.
Não haveria falta de candidatos a grande personalidade entre os maiores romancistas: Balzac, Tolstói, Dickens, Henry James, até o enigmático Conrad. Mas o exemplo máximo de caráter moral, por consenso, é George Eliot. Ela preserva uma autoridade espiritual única, bem definida pelo crítico inglês Walter Allen: "George Eliot é a melhor romancista do mundo nalguns aspectos, coisas que ficam no âmbito de sua interpretação moral da vida. Limitada como era, certamente não se pode dizer que fosse uma visão estreita; nem Eliot jamais esqueceu das dificuldades implicadas na vida moral e da complexidade necessária para reconstrui-la num romance".
Seu talento insólito, quase sem igual -a despeito de seu lugar numa tradição do protestantismo deslocado para a literatura, que inclui a "Clarissa" de Samuel Richardson (no século 18) e a poesia de Wordsworth (no início do 19)- é dar forma dramática às suas interpretações, de um modo tal, que são abolidas as fronteiras entre o prazer estético e a renúncia moral. Tanto a heroína Clarissa Harlowe, de Richardson, quanto Wordsworth, em seus melhores poemas, partilham uma fórmula de compensação: a experiência da perda pode ser transformada em ganho da imaginação. Mas a imaginação de Eliot, apesar de seus antecedentes wordsworthianos e dos muitos modos como Clarissa é a precursora autêntica de Dorothea Brooke em "Middlemarch" (editado no Brasil pela Record), é severa demais para aceitar essa fórmula compensatória. A beleza da renúncia na ficção de Eliot não vem de uma transformação da perda, mas de uma outra força, que não depende absolutamente de ganhos ou trocas.
Eliot nos confronta com o enigma do que se poderia chamar o Sublime Moral. Ela se integra à companhia austera de profetas prosadores do século 19: Carlyle, Ruskin, Newman e Arnold na Inglaterra; Emerson nos Estados Unidos; Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e finalmente Freud na Europa. Mas nenhum desses escreveu romances, embora, à sua maneira, não deixassem de ser contadores de histórias. As afinidades mais profundas de Eliot passam bem longe de Dickens, Thackeray e Trollope, e no entanto a forma de seus escritos nos obriga a lê-la como se lê os três.
Isto cria certas dificuldades, já que ela não era nenhuma grande estilista e estava mais imersa na tradição filosófica do que literária. Sua frequente falta de jeito, evidenciada nos comentários parentéticos e hesitações da narrativa, não tem, contudo, a menor importância.
Ninguém lamenta, também, a sua falta total de senso de humor. Até Wordsworth pode ser involuntariamente cômico (o que inspirou paródias maravilhosas de Lewis Carroll e Edward Lear), mas nunca encontrei uma paródia bem-sucedida de George Eliot e não acredito que seja possível. Não seria prudente fazer piada com nossa necessidade incurável, não só de decidir sobre o que é uma ação moralmente correta, mas de agir de acordo, contra as demandas do prazer e do que tomamos por interesse próprio. Assim como Freud, Eliot é forçosamente uma pensadora moral, traçando em detalhe nosso mal-estar na cultura e verificando sem remorso os pesos e medidas da guerra civil da psique.
As feministas, hoje, parecem levemente desconfortáveis com Eliot. Descrevem como derrotistas certas passagens, como a seguinte, extraída de uma carta de 1867: "O que quero dizer é que, como um fato da mera evolução zoológica, a mulher me parece ter ficado com a parte pior da vida. Mas é por esse motivo mesmo que eu argumentaria, mais uma vez, que na evolução moral nós chegamos a "uma arte que conserta a natureza' -uma arte que é "a natureza em si'. É função do amor, no sentido mais amplo, mitigar a dureza dessas fatalidades".
A "resignação sublime da mulher", de que ela fala na mesma carta, não é exatamente um ideal popular hoje em dia, mas Eliot nunca fala do sublime de maneira leviana e nunca sem consciência das perdas humanas em jogo. A dureza de ser mulher, segundo ela, há de permanecer, não importa até que ponto se possa minimizá-la por uma reforma social. Sua alusão à shakespereana "arte que conserta a natureza" ("Conto de Inverno", 4.4.95) é uma releitura sutil de Shakespeare, na esperança de uma evolução moral do amor.
O sentimento predominante nessa carta é de lamento, mas está longe de ser derrotista. Talvez ela devesse ter falado de uma "sublimidade resignada" e não de "resignação sublime"; mas sua arte, como sua vida, é uma resposta mais que suficiente para qualquer feminista empenhada em diminuir o valor da autora de "Middlemarch", que divide com Jane Austen e Emily Dickinson a distinção de ser a escritora mais forte da língua.
Para Henry James, "Middlemarch" era de uma vez só "um dos romances mais fortes e um dos romances mais fracos da literatura inglesa". A segunda parte desse juízo representa evidentemente uma forma de defesa. "Middlemarch" é um romance tão bom, no mínimo, quanto qualquer outro. E Dorothea Brooke assume uma posição crucial naquela grande sequência de heroínas da vontade protestante que inclui Clarissa Harlowe, Emma Woodhouse ("Emma"), Hester Prynne ("A Letra Escarlate"), Isabel Archer ("Retrato de Uma Senhora"), Ursula Brangwen ("Mulheres Apaixonadas") e Clarissa Dalloway ("Mrs. Dalloway"), entre outras.
Relendo "Middlemarch", só fico triste quando sou forçado a me deparar com Will Ladislaw, um retrato idealizado de George Henry Lewes, o amante nada indigno de George Eliot. Em tudo mais, o romance só me desperta espanto, se não por outros motivos, pelo fato de ser o único de todos os romances capaz de elevar a reflexão moral ao nível da arte mais elevada. Existe Nietzsche, claro, mas seu "Zaratustra" não é um romance -e, de qualquer modo, é um desastre estético. Os grandes moralistas, de Montaigne a Emerson e Freud, não são escritores de ficção; mas George Eliot fica nessa companhia.
Como é possível tamanha autoridade estética nas reflexões morais de Eliot, quando se pensa que autoras contemporâneas nossas, como Doris Lessing ou até mesmo Iris Murdoch, não chegam a tanto? Pode-se dar duas respostas, talvez independentes uma da outra. A primeira é que Eliot não tem rival, entre todos os romancistas, no que diz respeito à força cognitiva; ela está para a ficção como Emily Dickinson para a poesia ou Shakespeare para o teatro.
Não é habitual avaliar escritores literários em termos de capacidade intelectual; mas isto talvez seja um dos pontos perenemente fracos da crítica literária. E a nossa perplexidade continua. Walt Whitman, em minha opinião, é superior até a Emily Dickinson, na poesia americana; mas, comparado a ela, é incapaz de pensar. Dickinson e George Eliot, como Blake, repensam por si mesmos tudo o que há na Terra e no Céu, como Shakespeare também parece ter feito, acima de qualquer outro autor. Uma originalidade cognitiva dessa ordem torna-se claramente um valor estético, em combinação com outros modos de domínio literário; mas está praticamente ausente em poetas maravilhosos como Whitman e Tennyson.
Sem nenhum vínculo com sua força cognitiva, pode-se apontar a outra vantagem estética e maciça de Eliot como moralista: uma total inexistência das intensidades danosas, do tipo errado de autoconsciência, no que tange à moral e à moralização. Não há afetação alguma, nem qualquer hesitação nas ruminações de Eliot sobre dilemas morais. Ela sabe ser de uma vez só intrincada e direta nesses assuntos,como na famosa conclusão de "Middlemarch".
Ali se encontra uma frase como essa, que é ao mesmo tempo um mero truísmo e um momento profundo de escrita sapiência: "Pois não há criatura cuja existência interior seja tão forte que não seja em grande parte determinada pelo que lhe é exterior". Nossa sobredeterminação -pela sociedade, pela posição entre as gerações, pelo passado da família- não poderia ser melhor expressa nem poderíamos ser melhor lembrados de que nós mesmos vamos sobre determinar os que vierem depois, afetando até mesmo heroínas tão intensas como Dorothea Brooke.
A resposta de Eliot, por antecipação, à crítica de Henry James, que a acusava de "desperdiçar" Dorothea no romance, está concentrada em uma frase do último parágrafo do livro: "O crescente bem do mundo depende, em parte, de atos que não fazem história". James talvez concordasse, mas poderia murmurar que o crescente bem do mundo e o da arte da ficção são assuntos um tanto diferentes. A força única de George Eliot está em nos persuadir, mais do que qualquer outro romancista, de que o bem do mundo e o bem do romance são finalmente passíveis de reconciliação.


Harold Bloom é crítico literário e professor nas universidades de Yale e Nova York. Publicou "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva), entre outros. Ele escreve mensalmente na Folha.
Tradução de Arthur Nestrovski.




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