São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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PONTO DE FUGA

Vasos comunicantes

JORGE COLI
especial para a Folha

"Teatro", o último livro de Bernardo Carvalho (Cia. das Letras), possui uma escrita vertiginosa, pulsante e discreta. Esvaziada de efeitos patéticos, ela conduz, no entanto, a uma inesperada afinidade com o mundo órfão dos grandes românticos que foram ao cerne, dando-nos a experiência do sem sentido, do sem sinal. Como eles -como em "Il Trovatore", de Verdi, por exemplo, cujo "plot" poderia ter sido inventado por Bernardo Carvalho-, "Teatro" insiste em que todos os sinais são enganadores e que sua sucessão atordoante encontra uma misteriosa e falsa verdade em cruzamentos repentinos.
Somos lançados na angústia daquilo que não pode ser conhecido, onde certas vozes falam melhor, ou mais sabiamente, do que outras, tentando traduzir, na nossa língua possível, idiomas inconcebíveis. A voz da loucura é privilegiada, ela indica não a ordem das coisas, a verdade dos seres, mas vasos comunicantes entre o que acreditamos guardar em nós e o que pensamos estar do lado de fora, os outros, o "real" -contaminação entre a escrita e o mundo, diz o autor. Pleno e denso como um beijo na boca, sem abandonar a narração compulsiva que nasce dos mistérios, "Teatro" amarra e arrasta o leitor até a última linha.

Porno-star - O diretor William E. Jones realizou, em 1997, "Finished", não distribuído no Brasil, filme meditativo sobre Alan Lambert, um ator pornô que se suicidou aos 25 anos. Na segunda parte de "Teatro", Bernardo Carvalho inventa um personagem próximo, em quem o ato sexual mecânico reveste-se de sacralização e onde o espetáculo da pornografia -como no filme de Jones- é capaz de desenvolver uma estranha forma de amor nos fiéis ao gênero. Mais ainda, a pornografia passa a ser o lugar da revelação de uma perda essencial, onde o sentido das coisas se esvai "quando menos se está preparado para encarar o vazio do mundo".

Casaco de pele - Há tanta elegância na pintura de Siron Franco, tanta finura no traçado de suas linhas, um prazer tão sentido em suas matérias ricas e nos acordes de suas cores, que seus monstrinhos introduzem um delicado sabor irônico quando a inquietação é degustada. Como se as aberrações desse imaginário repetissem mesuras aristocráticas para apresentar perversamente sua sedução. Siron mostra-se sucessor de Pedro Américo, que retratou Pedro 1º bradando "Independência ou Morte". Como se sabe, o general Figueiredo proferiu uma frase, também histórica, misturando povo, cavalos e cheiros. No quadro "O Figueiredo", Siron fez uma obra-prima de pintura equestre onde a majestade acéfala pertence à irrisão e ao pesadelo.

Coisas nossas - Depois de Camille Claudel e outras, a mostra Siron confirma que o Pavilhão Manuel da Nóbrega, talvez a mais feliz arquitetura inventada por Niemeyer, é, de longe, local perfeito para exposições temporárias em São Paulo e poderia tornar-se o Petit Palais brasileiro. Todavia, pelo que foi divulgado na imprensa, decidiu-se decretar que o edifício abrigará um vago "museu da criança", também chamado "do imaginário". Característico projeto "de estalo", fruto de pouca reflexão e de um autoritarismo muito nosso.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



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