São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ conto

Valêncio Xavier

MEU NOME É JOSÉ

Eu já fui um saco de coisas na vida, coisas para até Deus duvidar. Até Pai de Santo já fui. Na minha iniciação para Pai de Santo fiquei isolado 90 dias na camarinha: o Quarto de Santo, quarto pequeno, fechado, sem móveis, só folhas no chão, que eram a minha cama, e em cada folha estava a alma de um orixá. Eu usava o quilé, que é um colar lavado com sangue dos animais sacrificados para os orixás: um carneiro, calçado em cada pata com um frango branco. Um cágado calçado nas patas com quatro frangos de pernas brancas. E um animal silvestre, uma tiriva para Osanhe, orixá dos encantamentos da mata.
Comigo na camarinha, só a cabeça, as patas, o couro e os órgãos genitais de cada animal. Eu só comia sardinha e arroz sem sal. Passados 21 dias, a Mãe de Santo entra e me avisa que os orixás estavam pedindo comida. Então não ia mais sobrar para mim, e eu tive de ficar comendo restos dos animais, tudo podre fedendo, cheios de vermes que os orixás chamam de flores. Eu tinha nojo de comer aquilo, então os orixás se incorporaram em mim e eu passei a comer.
Como aqueles testes para daltônicos que a gente faz no Detran para tirar a carteira de motorista, meus sonhos/visões se montavam em bolas coloridas formando homens e mulheres gigantes que não dava para distinguir os rostos. Estavam em aldeias incendiando, eu ouvia o crepitar do fogo, o ranger dos dentes, os gemidos. Eu não via, sentia aqueles horrores, o que é bem pior do que ver. Tudo isso nos meus sonhos na camarinha. Dormir sem sobressaltos é o sonho do homem. Mas eu sempre digo que só o Deus Verdadeiro conhece esse segredo. É como está no Salmo 4.9: Em paz também me deitarei e dormirei, porque só vós Senhor me fazeis habitar em segurança.
Eu dormia pouco, porque às três da madrugada, hora de Xangô, me acordavam e eu ia nu para o pátio e enterrado até a boca dum pote de barro tinha que tomar banho de ervas, Abô. Vinte e uma ervas maceradas postas na água, uma para cada orixá que trabalhava comigo.
Depois de sair da camarinha, eu tive de trabalhar no centro onde fui feito santo, porque na época eu não tinha dinheiro para pagar o custo da iniciação. Fiquei devendo. Às vezes eu fazia algum biscate fora e conseguia algum dinheirinho para passar melhor.
Passaram dois anos e aquilo tudo foi me enchendo, e eu tinha medo de sair dali e acontecer coisa ruim em mim. Os demônios me apareciam em sonhos, eram iguais a pessoas normais, mas tinham pé de cabra. Me ameaçavam e eu acordava doído como me tivessem batido, durante a noite toda.
Um dia eu estava indo de ônibus para a cidade. Era naqueles dias de congestionamento infernal no trânsito, fiquei umas duas horas dentro do ônibus. Do meu lado estava sentada uma pretinha bonitinha. Puxei conversa com ela, não tinha outra coisa que fazer, naquele tempão parado.
Falamos de tudo; do congestionamento e o mais. Que ela ia chegar atrasada na loja de saldos em que ela trabalhava; o patrão era capaz de cortar o dia. Quando eu disse o que fazia, ela baixou a cabeça e ficou algum tempo quieta. E eu só olhava para ela pensativa, cabeça baixa. Teve um momento que uma gota d'água pingou dos olhos dela. Estava chorando? Não sei, deixei de olhar, fiquei olhando pela janela o trânsito parado...
Para encurtar a história, quando o ônibus chegou no ponto na cidade, já descemos de mãos dadas, e sorriso nos lábios. O sorriso dela é coisa tão bonita! O nome dela é Maria. Nos beijamos ali mesmo na rua, todo mundo olhando.
Teve uma hora, quando ainda estávamos no ônibus paradão, depois do choro, é que eu contei tudo da minha vida, e lá no centro o que era eu, e não sabia mais o que ser. Ela ficou um tempo pensando, depois falou que eu tinha que largar de lá, daquele atraso de vida, largar daquele lugar de horrores, esquecer daqueles demônios dos sonhos e de novo voltar a sonhar e a viver a vida.
Na verdade meus sonhos estavam realizados. Tinha uma mulher que me amava e que eu amava. Não foi fácil, mas arrumei um trabalho de frentista, num posto de gasolina, bem pertinho da casa dela. A gente passou a dormir junto, logo que tudo tiver engrenado vamos nos casar.
Deixei de sonhar com demônios. Agora eu só sonho com nosso filho que na barriga da Maria está para nascer. O nome dele vai ser Emanoel.


Valêncio Xavier é escritor, autor de, entre outros, "Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido" (Cia. das Letras).


Texto Anterior: + autores: A pulsão de morte da concorrência
Próximo Texto: Conto faz parte de série de textos literários
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.