São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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Nova tradução para o português do livro clássico de James Joyce usa linguagem menos erudita e rebuscada que a empregada por Antônio Houaiss e consegue, com deslizes ocasionais, ser fiel à coloquialidade da obra

E dá-se que de novo lê-se "Ulisses"

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "much ado" que se vem fazendo a propósito de uma nova tradução do "Ulisses" suscita de imediato a pergunta: é melhor que a anterior? Ou -mais categoricamente- vale a pena fazer-se uma nova tradução do "Ulisses"?
Quanto à última, a resposta será sempre positiva: toda grande obra merece ser retraduzida de tempos em tempos, atendendo-se à própria evolução da língua, à modernização do entendimento do tradutor diante dos novos estudos e análises que surgem entre uma e outra tentativa. Em benefício do leitor, sonha-se que a nova tradução deva ser sempre melhor, superior à antecedente, por um motivo ou outro. Tal é a expectativa que vem ocorrendo em relação ao trabalho de Bernardina da Silveira Pinheiro, que a Objetiva acaba de lançar em comemoração do 101º aniversário do Bloomsday.


O perigo dessa facilitação seria transformar o texto numa espécie de "livro condensado", com todas as arestas devidamente polidas para atender à ignorância do leitor


A tradução anterior do "Ulisses", feita por Antônio Houaiss, deveu-se a uma série de circunstâncias que se conjugaram: a um gesto mecênico de Ênio da Silveira, que procurou assegurar ao tradutor num momento difícil um estipêndio condigno (Houaiss tinha sido cassado do Itamaraty e passava por problemas de saúde na família); ao fato de ser este, na ocasião, o único escritor com uma "linguagem adequada" para a transposição do texto joyciano; e à necessidade editorial de se lançar no Brasil um livro reconhecidamente fundamental para todas as literaturas e que nos chegava com um atraso de 44 anos.
Sobre a importância da obra há quase unanimidade nos meios intelectuais; chega-se mesmo a considerá-la um divisor de águas, a conquista de um patamar inultrapassável na técnica narrativa, o modelo-princeps a que estaria submetida toda a produção ficcional que viesse depois. Em 1956, a 34 anos de seu aparecimento inicial na França, surge no Brasil um fenômeno estilístico semelhante: João Guimarães Rosa, que já surpreendera a crítica em 1937 com a coleção de contos intitulada "Sagarana", lança o romance "Grande Sertão: Veredas", que parecia, em termos nacionais, destinado a marcar, como "Ulisses", o modelo absoluto da prosa vindoura.
Mas a verdade é que, passado o efeito devastador do tsunami joyciano (bem como o da pororoca vimaranense), as populações ribeirinhas da literatura mundial (e nacional) voltaram a construir seus enredos com os destroços do mesmo material que haviam herdado das literaturas clássicas, não-revolucionárias. E hoje, em parte alguma do mundo (ou do Brasil) pode-se encontrar quem esteja escrevendo à Joyce ou à Rosa, não obstante a contribuição de ambos para a renovação dos estilos literários.
Quanto à adequação do trabalho transpositivo de Houaiss, não obstante ter sido considerado o "right man" para um feito daquela envergadura, houve certa ironia subjacente por parte de alguns que já se arrepiavam com seu "estilo cipó", vendo no texto em português uma extrapolação das dificuldades do original. É certo que Houaiss, após dominar a técnica joyciana da "palavra-amálgama", aplicou-a em muitos trechos em que ela não aparecia em inglês, mas que se prestavam para aquele tipo de "sanfonamento" em nosso idioma, lançando mão de uma técnica compensatória de que se valem não raro os bons tradutores, talvez para enfatizar o "stil nuovo" joyciano. Seu "Ulisses" foi bem-vindo por todos os apreciadores de Joyce que não sabiam inglês e chegou mesmo a alcançar uma parte do público acostumada a ler tudo o que está na moda. Tornou-se um "sucesso de estima", prerrogativa dos "unhappy few", auto-flagelação dos sísifos literários capazes de carregar essa pedra até a página 846, embora o "leitor da moda", como é sabido, não tenha conseguido ultrapassar uma trintena delas.

Menos rebuscamento
A nova tradução, devida à professora Bernardina da Silveira Pinheiro, a que vinha se dedicando há nove anos, profunda conhecedora da vida e da obra de James Joyce, de quem já traduzira "O Retrato do Artista Quando Jovem", chegou precedida das informações de que ela se divertira muito enquanto executava seu trabalho e nele havia preservado o coloquialismo e a musicalidade que permeia a obra joyciana.
A leitura comparada das duas traduções revela, desde o início, que a linguagem de Bernardina é menos erudita, menos rebuscada que a de Houaiss, e seu coloquialismo procura estar a passo com o linguajar atual. Isso não quer dizer que a obra se tenha tornado menos complexa, mais compreensível. O perigo dessa facilitação seria transformar o texto numa espécie de "livro condensado", à maneira "digest", com todas as arestas devidamente polidas para atender à ignorância do leitor. Felizmente, isso não acontece e, se em muitas passagens parece que o texto de Houaiss sofreu apenas um copidesque, com a mudança ocasional de uma palavra arrepiada por outra mais lisa -a tradutora, segundo a própria, teve o critério de traduzir de costas voltadas para o precedente-, as soluções são dela própria, por mais que se possa argüir contra sua propriedade ou funcionamento.
No prefácio, há de fato uma insistência quanto à musicalidade da prosa joyciana (não esquecer que ele começou como poeta, num sintomático "Música de Câmara"). Essa musicalidade dificilmente poderia ser preservada em português na transposição de monossílabos seqüenciais que não temos, aliterações que não podemos fazer etc. Em alguns trechos é possível dizer que Houaiss foi mais feliz em captar essa "música" ao submeter a frase quase a uma contagem métrica. Mas a nova tradutora também se esforçou para obter efeitos à sua maneira.
Intraduzíveis são os jogos de palavra, os trocadilhos, as deformações léxicas, que não funcionam quando transpostos à risca ou se alheiam inteiramente do contexto quando substituídos por improváveis equivalências. Desta forma, grande parte do divertimento da tradutora teria que ficar na leitura do original, prática recomendável àqueles que conhecem inglês. Na tentativa de permanecer fiel ao texto, preservando-lhe supostamente todas as nuanças, a tradutora chegou a afirmar que, em certas passagens, errou de propósito na composição da frase em português para corresponder aos intencionais deslizes de Joyce que constavam do original.
Contudo aqui parece que Bernardina incidiu na mesma tentação de Houaiss em criar mais do que lá estava, pois seria pouco provável que Joyce, se escrevesse em português, cometesse frases como: "Parado, ele perscrutou"; "solenemente ele avançou"; "ele se inclinou a ele"; "ele raspou"; "ele esbravejou" [capítulo inicial], em que o pronome, indispensável em inglês, é de praxe omitido em português, em proveito da elegância da frase, por estar subentendido na flexão verbal. Igualmente, na escolha de certas palavras (como "fazer um banzé", para traduzir "give him a ragging"), é de crer que Joyce tivesse usado sinônimos mais em sintonia com o tom da frase (como, por exemplo, "dar um pito", "passar um sabão"), igualmente coloquiais, mas não tão pés-na-cozinha.

Legibilidade
Haverá inúmeros trechos, sem dúvida, em que a nova tradutora terá sido mais legível que o antigo mestre, seja pela solução vocabular mais imediata, menos arcaizante, seja buscando uma expressão mais próxima da forma léxica empregada por Joyce, e não de suas intenções estilísticas. Também é certo, como já previa Houaiss, que outras traduções venham a surgir depois dessa. A de João Palma-Ferreira, em Portugal, data de 1989. Sabe-se que o professor Caetano Galindo, da Universidade Federal do Paraná, já tem a sua pronta, realizada como trabalho para sua tese de doutorado na USP.
É possível até mesmo que, na tentativa de popularização do "Ulisses", surja mais tarde uma tradução cheia de plebeísmos como "cara", "eu lhe vi", "o livro que eu mais gosto", "essa semana" etc. Contudo o problema não está na tradução, mas no livro em si: eis uma obra a ser lida por escritores, não para lhe imitarem o estilo, mas para conhecerem as audácias estilísticas que um autor de gênio pode conceber. Nenhuma publicidade ou facilitação será capaz de transformar "Ulisses" em um novo "Código Da Vinci".

Ivo Barroso é poeta e crítico, autor de "A Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.


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